Grata surpresa encontrar em minha caixa de correspondência o prometido e tão esperado exemplar de Uma melodia histórica. Li aos poucos, economizando páginas, pois queria saborear o livro como saboreamos uma boa comida. Tal e qual. Aos poucos fui percebendo os motivos que levaram Abel Santos Anjos Filho, mineiro de Uberaba, a se aprofundar em seus estudos sobre a Viola de Cocho, instrumento tradicional da cultura popular mato-grossense. Ela remonta a dezenas de séculos, vinda talvez do Oriente Médio, com passagem importante pelas terras portuguesas até chegar às barrancas do rio Cuiabá, de onde nunca mais saiu.
Se, por um lado, desvendar os mistérios da Viola de Cocho causou imensa alegria, por outro há um sentimento de perda que não consegue aquietar-me. Os jovens, mesmo os ribeirinhos, me parece, não estão preocupados em dar continuidade ao que seus antepassados cultuaram com amor por séculos. O cocho, renegado pela elite dominante como instrumento de pobre e para o pobre, foi durante o período colonial o objeto maior do lazer de inúmeras famílias de ribeirinhos que não só aprenderam a fabricá-lo como se tornaram exímios instrumentistas.
Hoje a Viola de Cocho não encontra adeptos entre os jovens, seja para tocá-la, seja para construí-la.
Abel Santos Anjos Filho veio do Triângulo Mineiro e logo saiu em defesa do instrumento mais significativo da cultura popular mato-grossense. E o fez com brilho, arte e a sensibilidade que só os que realmente amam a música ousam fazer.
Infelizmente como a grande maioria dos apaixonados pelo belo que não tem a sua mesma origem Abel Santos Anjos Filho quase foi crucificado pela cuiabania que, injustamente, o acusou de tentar roubar seu símbolo maior. Nada mais falso e enganoso. Ele veio resgatar um instrumento que, sem sua ousadia, eu arriscaria dizer estava fadado ao esquecimento. Mais que isso. Abel Santos Anjos Filho fez renascer em muita gente o desejo de que esse instrumento talhado a suor e sangue ressurgisse das cinzas e alçasse voo como se valesse das longas asas do tuiuiú indo pousar suavemente nas entranhas da principal orquestra do estado de Mato Grosso.
A tendência natural agora é correr o mundo mostrando que o passado pode muito bem coabitar com o presente e o futuro.
Mato Grosso tem uma dívida impagável com o historiador e pesquisador da Viola de Cocho, Abel Santos Anjos Filho e tenho como certo que ele jamais a cobrará, porque seu amor pelo instrumento é muito maior que o apego às coisas mundanas. Entretanto o estado não pode simplesmente fechar os olhos não reconhecendo no professor, que atravessou o Atlântico para pesquisar a Viola de Cocho em terras lusitanas e de lá voltou com a certeza de que a raízes fincadas em Portugal são as mesmas raízes que levaram um ribeirinho cuiabano a fabricar a primeira Viola de Cocho em terras mato-grossenses, é o maior responsável pelo resgate histórico do instrumento que, esperamos, por muito tempo perdure alegrando a rica cultura popular mato-grossense. A Viola de Cocho é, sem sombra de dúvidas, o coração das principais manifestações populares de Mato Grosso. Ela está presente no boi à serra, no cururu e no siriri. Deixou de ser simplesmente mato-grossense para assumir sua universalidade no toque suave e harmonioso que Abel Santos Anjos Filho imprimiu e que a Orquestra do Estado de Mato Grosso soube reconhecer e aproveitar.
O instrumento continua recebendo a atenção da camada mais pobre da população – a ribeirinha – que não renega o filho, para muitos um quase bastardo.
Quem sabe um dia os “intelectuais” volvam os olhos para o passado e abracem a causa tão bravamente defendida por Abel Santos Anjos Filho colocando, definitivamente, a Viola de Cocho em seu devido lugar.
Por Romulo Netto - jornalista e escritor.
sábado, 3 de setembro de 2011
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