segunda-feira, 24 de junho de 2013

SINHÁ MOCINHA

Desde piquititita era da pá-virada ou nascera com. Andava acompanhada pelos moleques mais sacanas e pervertidos. Um pouco mais crescida não mudou a preferência. Quanto mais maltrapilho, vagabundo ou desqualificado mais se identificava. Seus amigos não podiam demonstrar nenhum pitaco de bondade. Quem recaía praticando amores, agradecimentos, era banido de seu bando. Passou por colégios internos em Paracatu, Patos, Araxá, Uberaba, Uberlândia, sendo expulsa de todos nas primeiras semanas de aula, antes de completar doze anos. Aos treze ameaçou matar siá Genésia porque não tinha um xixi de segurar, mas rachadura estranha no meio das pernas. Aos quatorze mudou de comportamento no completo. Uma manhã de agosto entrou arrepiada na cozinha da casa-grande. Siá Genésia, como de costume, comandava as cozinheiras. Sem que ninguém esperasse, tascou a pergunta desconcertante. Queria porque queria uma resposta. Não arredaria pé. Fez a mãe ajoelhar diante do fogão talequal faria se estivesse defronte do altar-mor de sua igreja preferida, prometendo jura eterna. Veio a questão arrodeada de elogios. Já que pr’ela a mãe sabia tudo, então verborragiu de pronto, sem pestanejos, indagando o que o bom Deus colocaria no mundo em lugar da música. O inesperado da pergunta deixou siá Genésia quase tontificada, a não ser pela mão rápida em pegar graúda colher de pau desfechando dolorosa bordoada na cabeça da atrevida. Dali pra frente Sinhá Mocinha não mais dirigiu olhares ou palavras pra siá Genésia. Emudecera de inteiro. De sua boca, na casa-grande, não se ouviu mais uma palavra até as férias, quando conheceu Gregório Tomba-Tomba. Se viu coberta de profunda apaixonite juvenil. Quando o traste aparecia na Goiás, cabelo emplastado de gumex, blusão de napa preta, golas alevantadas, ela suspirava profundo, enrubescia, molhava a calcinha, as mãos tremiam. O mundo parece que vinha abaixo. Calor imenso tomava conta de seu corpo, mal se aguentava sobre as pernas. Eta mundão sem porteira, diriam os mais velhos. Ela só que olhava, e fugia correndo pra dentro do sobrado. Um dia ele se aproximou de surpresa, com ramalhete amarrotado de onze-horas, suando bicas. Indefesa, Sinhá Mocinha não teve forças pra correr. Nem achou chão. Tremia como vara verde em tarde tempestuosa. Quando menos esperava se viu agarrada. O moço estranho tascou intenso desentupidor de pia na boca. Longo beijo quase a fazendo perder o fôlego. Escândalo generalizado deixando todo mundo boquiaberto. No outro dia não se falava em outra coisa senão na beijação espalhafatosa que Gregório Tomba-Tomba deu em Mocinha desesperando te todo em todo Belarmino B. Ninguém daquelas bandas pode negar que Tomba-Tomba tinha topete. Menos de semana depois, a notícia chegou até a casa-grande. Furiosa, siá Genésia, mais que Izé Cabedelo, mal selou a montaria, se despachava pra cidade. Não quis conversa. Arrastou Sinhá Mocinha pelos cabelos, arrebanhou as outras meninas rumando pra fazenda. No caminho um latinório sem fim. Mocinha, desmilinguida, desconfortada, muda, mal ouvia o que siá Genésia gritava. Nem assim as palavras ousavam sair de sua boca. Do jeito que deixara o sobrado chegou na casa-grande. Parece que até os cachorros foram proibidos de festejar a chegada. A casa parecia velório de tristeza sem medida. Só Izé Cabedelo se via contente com o desafio imposto pela filha. Siá Genésia de há tempão precisava enfrentamento daquele tamanho. Não podendo agradar o destempero da filha, se fez feliz por rir-se por inteiro, por dentro, enquanto amaciava uma folha de milho pra preparar o pito que acenderia prenhe de satisfações. Genésia o esconjurava arrematando que riria em grandes gargalhadas chegando o fim daquele acontecimento. No que derradeiramente talvez pudesse acobertar-se em razões. Os dias passaram depressa como os carneirinhos que a gente conta no céu, de noite, pra chamar o sono. As férias acabaram pra meio sossego de siá Genésia. Parece que nem bem Sinhá Mocinha voltara pra capital, estava novamente em casa. Era costume de Izé Cabedelo festejar Santantônio atrasado toda vez que Mocinha vinha pra fazenda nas férias de meio ano. Foi como encontrou seu modo de compensar a filha que sempre perdia a semana dedicada ao santo padroeiro da Lua Cheia, principal herdade sua deixada por dona Nhaiá, mãe falecida de saudosa memória. Após mais de três anos em completo jejum de palavras, uma mágica e morna manhã Sinhá Mocinha contestou siá Genésia. A mãe reprimindo corriqueira tarefa de Menina Morena, aprendiz de cozinheira ah! não. Sinhá Mocinha rápida, rasteira, corrigiu dizendo ser anão um homenzinho, pessoa qualquer que se recusara a crescer. Foi gargalhada geral, motivo de lágrimas encachoeiradas, renascendo alegrias na família, promovendo novas festanças na Lua Cheia. A notícia correu mundos e fundos. Chegou até ouvidos surdos, quando tinha necessidade, de Gregório Tomba-Tomba. Lá na fazenda o rasta-pé arrancaria todos do sério, prolongaria por dias, quem sabe semanas. Sua hora tinha por fim madrugado. Quando a cidade anunciou o esvaziamento, já sabendo cada um sua ausência de eterna lembrança na mente de Izé Cabedelo, Gregório Tomba-Tomba aboletou na primeira carroça com vaga confortável, ele não nem era de pôr sua bunda em qualquer madeira. Seus traseiros careciam de confortos. Foi o que achou na condução de Nhô Bernardes, velho fofoqueiro que logo o reconheceu e tão logo se prometeu colocar em silêncio eterno, desde que fosse conhecedor dos segredos por acaso nascentes dendiante. Eis que somente ele poderia esparramar qualquer boato surgido pela chegança em surdina de Tomba-Tomba. Trato feito, seguiram parceiros, como fossem eles de antanhos conhecimentos. Trocaram longos goles de pinga, confidências que no futuro renderiam a Gregório Tomba-Tomba encontros amorosos, furtivos com as mais recatadas viúvas ou senhoras bem-casadas. Sua sede não tinha limites. A delas também. No que deu. Fudeu-se. Não ele, que saiu ileso, mas elas que arreganharam as pernas, abriram xuranhas. Como Divina explicaria ao Nego Bastião que o filho lá deles era loirim, loirinho da silva, se não trepara com outro. Por dúvidas, até que pudera ele pensar que o façanhoso autor daquele filho fosse Frei Norberto, vindo das Holandas para empacificar as brigas no Vale do Urucuia. Mesmo assim havera traição a ser punida com morte. E as outras? As outras como ficariam? Com chifres ou reticentes, inconformadas e irrespondíveis respostas? No que ele garanhão dos cerrados dos Gerais nem sequer sonhara. Seu divino pau duro só queria mesmo encontrar buraco fofo pra adormecer, sonhar com seus cansados anjos. Mal chegaram na primeira cancela da fazenda, Gregório Tomba-Tomba descresceu em antigos agradecimentos e reverências. Antes bem de ser respostado já se pôs longe, modo não ser reconhecido. Ele que viera pra ser avistado preferiu buscar outros pagos, que bem eram ali ao lado, quase no final da casa, aos próximos do monjolo onde, em adonde, o barulhar da roda-d’água, o martelar constante no vai que vem das estranguladas peças daquela máquina de antigo uso encontrou guarida. Mal a festança esquentou, ele atacou, praticando seu modo de agir, fatal certeza de ser sedutor irresistível. Naqueles sertões nunca se houvera nascido um tão tremendo filho da puta conquistador. Todos concordavam sem relutança. Sinhá Mocinha enlouqueceu peões peados, velhos coronéis que mal se mantinham sobre as pernas, moças recém-liberadas, prontas pra experimentar a novidade do sexo entre iguais. Tudo na mais perfeita liberdade, que nos cerrados até a aberração parece normal. E ele ali na escuita, na espreita, esperando vagar seu momento de ataque. Nem bem fora assuntadamente combinado, o final se aconteceria por igual. Num cochilo de Belarmino B., Gregório Tomba-Tomba se aproximou silencioso, por detrás, enlaçando Sinhá Mocinha, fungando no seu cangote, causando arrepios, mais que desfalecendo, semimorta de amores e destemperos, ela em sua virginal inocência se deixou levar pelos beijos ardentes do homem sonhado pra companheiro de uma vida inteira. No crescer das luzes, no justo momento em que peões atiçavam as brasas colocando mais angico-vermelho sobre o tapete ardente, foi em daí que a visage tomou corpo, projetando Sinhá Mocinha e Gregório no mais fogoso dos agarramentos. Vendo entre a fogueira o povaréu aplaudindo aquele teatro muquetrefe, Izé Cabedelo teve um treco, ficou meio zureta das cabeça, saiu às tontas chamando o diabo de Deus, e Nosso Senhor Cristo Jesus do coisa dos avessos. Perdera porcertamente sua inteira razão. Belarmino B. puxou as armas atirando pro alto. Num salto de sapo-cururu Gregório Tomba-Tomba sumiu na imensidão do escuro, enquanto todo mundo, cada bicho de dois pés acudia siá Genésia loucamente desmaiada por desesperos de suposta avozice prematura.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

DIDÃO

Já fazia calor quando os primeiros raios de sol pincelaram com aquarela davinciana as poucas nuvens que pairavam mansas por sobre as águas verde-lodo do São Marcos, meio Gerais, meio Goiás. Arreliado, Didão fincou os pés no chão ainda encharcado pela última chuvarada. A cara vermelha pegando fogo de tanta raiva provocada por sandices de Zé do Corgo. O patrão pegou corda acreditando que logo ele, Didão, pau-pra-toda-obra, pudesse ser um vendido traidor a cuspir no prato que sempre comera do bom, do melhor. — Nhor que não! Juro por meu santim que não fiz nada. Sou apenas amansador de burro brabo. Monto nele sem medo, quebro o freio com força uma vez pras esquerdas outra pras direitas, enfio o esporão nas ancas que é pra ele distinguir quem está no comando. Na segunda montada, só um leve toque na garupa, puxãozinho no freio, nadica de nada, um pitaco, ele obedece sem zanga, sem sofrer cansaço. Assim venho amansando cavalos, burros desde que me entendo por gente, sempre nas terras secas do meu patrão – Coronel Elesbão. Nhor que não! Sou lá homem de fazer essas criaturas do bom Deus padecer na ponta da espora? Tudo são invencionices. Ciumaria de quem não sabe pelejar a vida botando olho gordo no bem querer dos corretos. Quem não se lembra de quando folguei a peonada vesprando Santantônio? Todo mundo desembestou rumo a Ingazeiras dando tiros ao léu, invadindo o povoado de uma rua só, escandalizando recatadas mulheres ou ainda quando um peão desaforado agarrou à força Rosinha, finura de moça-donzela de bons costumes, tão recolhida em seus pudores que só deixava à mostra as mãos finas delicadas – verdadeira pintura –, os pés além do rosto dono de dois olhos verdes mais verdes que broto de capim navalha após a primeira chuva primaveril. Logo ele que pra manter as aparências apoiou a greve de dona Orobó, mulher do vendeiro Chico Fumaça, maior autoridade de Ingazeiras quando cismou que não queria ter as casas com as portas dando de frente pras das muié-damas. Brava, decretou greve, obrigou todas as mulheres a fechar as pernas em grave greve de sexo. Durou mais de mês, mas no fim lacraram as portas que se abriam pra rua única, as mudaram pro fundo olhando cada uma a morraria distante, o poço d’água bem doce, fresquinha a poucos passos da nova porta. Não fosse sua posição de firmeza, Chico Fumaça teria acabado com a greve no grito, na marra. Justa. Justíssima a reivindicação das mulheres de bem. Agora ele, acusado de bandear pro lado de Zeca Fortuna, inimigo jurado de morte de seu patrão Coronel Elesbão. Vingança é um prato que se come frio. Quando o coronel resolvesse destirar a bunda dos sofás da casa grande da capital retornando ao sertão, poria tudo em pratos limpos. Nhor que sim! Que ele não prega os olhos com desconfianças rondando sua cabeça. Nem havera-de... Queria que um raio dos graúdos o partisse ao meio se debandasse pro lado daquele um. Tinhoso. Falso como mulher de político em véspera de eleição. Apois! Nenum era pra ser daquele jeito sua vingança. Mais trinta anos trabalhasse sol-a-sol, ainda assim Coronel Elesbão continuaria acreditando nas invencionices de Zé do Corgo. Dianho que ele não entendia nadica desses amores desrevelados à queima-roupa: quem bandeara proutro lado fora ele – o coronel – parece que nasceu com o dito cujo dentro do corpo. Não era de estranhar sua postura, seus medos. Só então Didão se apercebeu que estava jurado de morte. Guardava tantos segredos, por eles, não merecia continuar vivendo. Entendia. Conhecia de tudo naquele cerrado; cada curva no caminho, cada galho de pau quebrado na estrada ou entre os arbustos denunciava a seus olhos todos os perigos, todos os mistérios. Assim que, aliviando o calor sentado debaixo de um buritizeiro com os pés na água fria da veredinha, viu ao longe um dois, três reflexos. Poderia não ser nada, mas também poderia anunciar jagunços em tocaia: ele, a vítima, já se antecipando em raivas, espumando pela boca, soltando fogo pelas ventas. Decidiu não esperar o ataque. Desarreou o cavalo, deixando-o livre a pastar; quebrou duas curvas pras esquerdas. Depois de duas horas andando a sol pleno, penetrou num pedaço de cerrado podre; sambaibeiras e pequizeiros ladeados de pequena morraria bem ao pé da curva da Cacunda Velha. Afrouxados, estavam lá três capangas do Coronel Elesbão, atocaiados, sabedores eles, os três de seu caminho. O sangue ferveu na cabeça. Só teve forças pra gritar: — Estão me assuntando?! — No mesmo instante, a parabélum cuspiu bala. Mal tiveram tempo de virar a cabeça, foram mortalmente feridos. Didão puxou a aba do chapéu em sinal de respeito aos recém-defuntos. Aprumou o corpo, pegou os animais selados, descansados, precisava escondê-los longe dos olhos da jagunçada do Coronel Elesbão. Resolveu buscar guarida num esconderijo seguro. Da última vez que se viu obrigado a matar quando os bate-paus do delegado Simplício fizeram serão nas imensas terras do coronel, nem pestanejou. Rumou pras bandas da Serra da Aldeia bem perto do ribeirão São Pedro; naquele fim de mundo, descobriu a Caverna da Onça. Onça mesmo fazia já um quartel de século que elas tinham desaparecido a custo de muito cachorro brabo, zagaia, balas de parabélum, winchester de papo-amarelo. Construiu ali pequena fortaleza. Pra não ser descoberto, quase não acendia fogo. Vivia mais de comer frutas ou mascar nacos de carne-seca. Luxo mesmo só de quando em vez na chegada do frio, que subia pela morraria carregado por vento incessante, cortante, doído. Aí não tinha gueriguéri: pegava uns gravetos, acendia seu binga, velho companheiro, sentia o fogo crepitar levemente; enquanto assava um pernil de cateto, ia rememorando sua vida. Não era senhor de si. O coronel o tinha preso. A hora que bem entendesse, ou matava ou entregava pro doutor delegado. Confiante que ninguém o conhecia, passou por alguns sítios perto da Lagoa de Santo Antonio onde barganhou um bornal de couro por um galo e duas galinhas caipiras; tinha tenção de dar início a um criame de aves dentro da caverna. Seria a economia da sobrevivência. Parando aqui, acolá um mês, depois se viu defronte da Serra da Aldeia após dois estirões a Caverna da Onça: não dava sinal de que uma viv’alma tivesse feito pousada, por pequena que fosse a demora. Seu segredo ainda era segredo. Só seu! A velha rede estava no lugar que deixara há muitos meses. O fogão de pedra com sua inseparável panela, duas ou três latas onde punha mantimentos. Desceu a bruaca do cavalo cansado desarriando-o em seguida, pegando com cuidado a manta de carne colocada debaixo do baixeiro, espetando num pedaço de pau em boa altura pra que nenhum bicho pudesse roubar sua refeição dos próximos dias. Amarrou a criação na estaca da rede, depois prepararia um galinheiro. Desacostumado a tomar banho o que mais deseja agora é pôr o corpo na rede, mordiscar levemente um bom bife de carne salgada pelo suor do cavalo, saborear suave talagada da pinga Segura o Tombo, a predileta dos vaqueiros do Paracatu. Deixou- se levar pelos sonhos desencontrados, a vingança atravessada na garanta. Estava selado. O coronel aguardasse. Não tinha muita pressa. De vez em vez, se arriscava indo a alguma corrutela. Sentado, ouvia conversas; só espiava, não perguntava. Trouxe linha, anzol. Já se sentia novamente quase homem livre. Variava sempre de local de pescaria, ora no ribeirão São Pedro ora no Aldeia que era pra não encontrar nenhum bicho homem desconfiado perguntador. Já ia pra meses que ele estava ali. Escondendo, aparecendo furtivo. O criatório de galinha rendera perto de dez frangas, seis frangos. Tudo tinha dosagem certa. Os frangos iriam pra panela. As frangas virariam poedeiras; quando pensava, lambia os beiços. Gostava de beber ovo recém-botado ainda quente pelo calor das tripas da galinha. Dois ou três de uma vez só. Um dia, acordou destrambelhado, com a avó atrás do toco. Tinha fome, queria comer comida caseira, os seus dotes culinários eram muito curtos. Fechou os olhos, se viu moleque no fundo do quintal de sua casa. Donana segurava a velha galinha pedrês pelos pés enquanto arrumava a tigela. Assistiu a toda a cena. Dela não esqueceria jamais. Acendeu o fogo pôs água pra ferver no latão grande, afiou cuidadoso a faca. Sobrepesou dois frangos, escolheu o de pescoço pelado; pegou a cuia, prendeu entre as pernas já sentado num tamborete; deu duas batidas no pescoço do frangote que era pro sangue subir, cortou a veia, aparando o borbotão vermelho denso. Pôs o sangue pra descansar com algumas gotas de limão, pois não tinha vinagre. Depenou o frango semi-vivo. Decepou a cabeça, sapecou as penugens, foi pra beira da vereda abrir a ave, separou as iguarias: fígado, coração, moela seriam cozidos em separado. Destrinchou pescoço, peito, asas, coxa, santantônio, sobrecu, pés. Espremeu um limão galego, jogou sal, algumas folhas de manjericão, cebolinha, deixando marinar. Esquentou a panela com banha de piaba, jogando na gordura quente os pedaços, dourando cada parte, cobrindo depois com água fervente. O cheiro suave recendeu pela caverna. Mexeu duas vezes com improvisada colher de pau; no borbulhar da água, viu que era chegado o momento de jogar o sangue. Remexeu a cuia algumas vezes, colocando um pouco de farinha de mandioca para engrossar o molho. Derramou de uma só vez na panela fervendo, tampando em seguida. Coração, fígado, moela cozidos eram seu tira-gosto. Breve beiçada de cachaça. Agora, sua fome poderia esperar. Duas horas depois, as partes do frango pareciam ter derretido no grosso, cheiroso molho pardo. Abastecido, refestelou na rede; roncou, sonhou. Apaziguada a primeira temporada das chuvas, pressentiu que o natal rondava seus dias, véspera das andanças solitárias do Coronel Elesbão, que escondidinho se afogava nos seios fartos da brejeira Terta. Nada mais justo. Aquele seria o momento do acerto de contas. Esperaria por ele bem próximo da curva do Ó. Uma bala, nem um ai ou ui! Penou cinco dias debaixo de um sol capaz de fazer inveja ao fogo do inferno, nada do homem aparecer. Mudara de amante ou de caminho? No sexto dia, a recompensa. Lá vinha ele em seu elegante terno de linho branco, imenso chapéu Panamá, soltando intensas baforadas do inseparável palheiro. Não! Um tiro era muito pouco. Decidiu. Fez mira cuidadoso. Prendeu a respiração. A bala certeira cravou na cabeça do cavalo. Desgovernado, desabou no chão caindo por sobre uma das pernas do coronel. Sem pressa, Didão acendeu um pito, tomou ligeiro gole de cachaça, limpando os beiços com as costas das mãos. Nem sôfrego nem atabalhoado, escorregou pela pedra do Lagarto ganhando a curva do Ó. Viu o terror estampado na cara do Coronel Elesbão. Desembainhou o punhal de prata. Deu apenas uma espetada de cinco centímetros no coração. O homem estrebuchou. Didão puxou a aba do chapéu... Por Romulo Nétto - Jornalista e Escritor

REVOLTOSOS

Minha caduquice faz com que as lembranças se percam no tempo, remexendo a história, contando-a pela metade. O ano talvez se situe nos trinta, quando a coluna de revoltosos invadiu a cidade, tomando posse da prefeitura, delegacia, correios. O uniforme deles, um tanto desbotado, ainda denunciava pálida cor de brim cáqui. Não vieram em boa paz. Entravam casa adentro remexendo baús, latas de mantimentos, e revolvendo colchões, pois pensavam que todo mundo guardava lá seus tostões. A comida nem cozida estava iam eles destampando panelas, queimando os dedos, palmas das mãos nos pedaços de costelinhas de porco ou coxas de galinhas. Davam a entender que havia meses não sentiam o cheiro de boa comida, incapazes de esperar a refeição ficar pronta comiam como selvagens. Depois, buscavam o descanso nas redes armadas nas varandas, o fuzil carregado sempre às mãos; dormiam com um olho aberto, o outro fechado. Coisa do demo. Quando bêbados, amontoavam as pessoas na praça da Matriz espancando-as a golpes de coronhadas dos pesados fuzis. Queriam porque queriam saber onde se esconderam o doutor-delegado e o juiz de direito. Somente se acalmavam quando padre Bento saía da Matriz de Santo Antônio jurando excomungá-los, condenando-os ao fogo eterno dos quintos dos infernos. Temerosos se aquietavam, permitindo que as famílias retornassem aos lares, mas, quando o amanhã renascesse, o primeiro deles lavasse a boca com o matinal gole de cachaça, a tortura recomeçava. Tio João, irmão mais moço de papai, quis dar uma de valente: se meteu em farda de soldado, ficava na porta da casa do vovô, ora aparecendo ora se escondendo. A cena foi se repetindo horas, dias sem fim. O ato de rebeldia enchera de furor o mais exímio atirador revoltoso. Ele estava sentado num banco tosco à frente dos Correios, de guarda; de quando em vez, pegava o fuzil, fazia a mira, pensava duas vezes, ao final desistia de apertar o dedo no gatilho. Tio João continuava praticando impune sua fanfarronice até que, num sábado pela manhã, nem bem eram oito horas, começou seu jogo de esconde-esconde. Talvez o revoltoso já tivesse mamado sua primeira grande dose de cachaça, por isso o gesto. Mirou calmo, prendeu a respiração, apertou o gatilho. A bala certeira explodiu no meio da testa de tio João. O atirador viu o corpo cair. Caminhou a passos largos para certificar que o “soldado” estava mesmo morto; dois ou três minutos depois, estava diante do cadáver ensangüentado. Meu pai ajuntava os miolos do irmão sem entender nada. O revoltoso apenas disse: — Num gostou? Se está descontente, ainda tenho munição na agulha. Papai nada disse. Recolheu no chapéu o que pôde, chorou por dentro a morte do irmão, parte do preço pago por uma revolução que ninguém naquelas bandas até então conseguira descortinar a razão. por Romulo Nétto - jornalista e escritor

segunda-feira, 10 de junho de 2013

BELARMINO B.

Ficava fincado de plantão. Talequal pastor das moças, guarda-cabaços pra modo ninguém se apresentar em excessivas ousadias quando as meninas em férias vinham da capital. Belarmino B. pior que o coisa-ruim. Mas dizia a si mesmo que cumpria ordens. Maldosas, as crianças diziam que o B. era de bundão. Em altos gritos passavam diante do sobradinho no largo do Santana, onde sabiam da presença de Sinhá Mocinha gritando, sem cerimônia, Belarmino Bundão. Ele furioso, babando fel, soltando fogo pelas ventas pegava o rebenque, a pistola, ao mesmo tempo que estalava o chicote, atirava a esmo tentando espantar quem desde minutos antes tinha se escafedido. Só pra mostrar valentia, serventia. Passava horas diante do espelho penteando o bigode-escovinha, as sobrancelhas, cavanhaque, costeletas, a vasta cabeleira, se gabando do pretume do cabelo emplastado por grossa camada de glostora. Chorava no seu recolhimento por saber-se bonito. Só que alguns olhos tortos não decifraram sua beleza, principalmente siá Genésia, aquela flor de maio, tão proximal da própria belezura dele, mas mesmo o vendo todos os dias não se encantecia de Belarmino B. causando imensa tristeza. Dizia que o ano tem muitos dias, num deles, quem sabe, siá Genesia se apaixonaria. Enquanto a paixão não acontecia, buscava proteger Sinhá Mocinha com suas inúmeras convidadas. Até que o pior aconteceu. Izé Cabedelo não pôs culpa. Reconheceu que a filha era tão fogosa como sua Genésia, também lhe saíra a ele, que não desperdiçava ocasião pra trepar. Tinha comido mocinhas, mulheres casadas, viúvas, até uma freira caiu em sua lábia. Não gostou apenas de quem foi comido por Sinhá Mocinha. Qualquer um, menos aquele traste. O mal estava feito. Agora era se resguardar evitando que o acontecido caísse na boca do povo. Aloitasse nas conversas das beatas o nome da menina valia nada. Só com o sangue haveria paga. Isto Izé Cabedelo queria evitar de maneiras todas. A seu modo amava Sinhá Mocinha. Era turrão, duro na queda, mas não alimentava saber a filha envolvida em nenhuma barafunda. Belarmino B. tinha agora a incumbência de ficar entre ela e Gregório Tomba-Tomba, não permitindo aproximações, rela-relas desnecessários. Foi um namoro sem graça pra quem já sabia fazer muito mais na cama. O casal acatou a decisão de Izé Cabedelo. Não muito. Houve um momento em que o tesão falou mais alto. Daí eles começaram a dormir juntos, pra desespero de Belarmino B. mais as desesperanças dos pais de Sinhá Mocinha. Acabada a função de guarda-cabaços de Belarmino B., iniciava devastadora vida de crimes e barbaridades. Desconsolado por não ter protegido Mocinha, desatinou em peregrinação por todo Vale do Urucuia, sangrando na peixeira, furando na bala todo ser vivente que tivesse desonrado qualquer rapariga. Se deu ao luxo de beber o sangue dos desinfelizes, assou corações como fossem carne do mais precioso churrasco. Seu nome correu cerrado, grimpou sertões. Nunca ninguém o pegou com a boca na botija. Pôde por diversas vezes retornar à fazenda sem que nele lançassem as mais pequeninas suspeitas. Belarmino B. não desdeixava de seu lado o amor por siá Genésia. Continuava se arrumando solene diante de um espelho quase sem aço, de tanto uso. Via refletida a imagem encantadora que nunca permitia fisgar a mulher amada. Teve arroubos de loucura, mas se manteve recatado. Se guardando em sofrido silêncio, sem pensar em deitar com outra mulher. Quando se masturbava na mais escondida das veredas, ainda assim ficava apavorado temendo alguém vê-lo em seu solitário desespero, ou quem sabe adivinhando pensamentos, vendo que ele via, no momento de tensão, tesão maior, o corpo moreno, nu, seios duros, empinados de siá Genésia, quebrando o encanto da imaginária posse. Mais que nunca Belarmino B. se sentia um órfão de esperanças. Saiu da água fria, revigorante, como deixasse pra trás o peso de passados pesados, inquisidores, preocupantes, malvividos e descortinados. Pra ele era novo homem que se redescobria na posse ilusória de uma mulher que suas rudes mãos de capanga jamais tocariam. Mesmo sentindo esse destino, permitiu largo sorriso desprovido de dor, carregado em assanhamentos. Tão difícil sua vida, tão estranho seu caminho, mas ele sabia detentor de todos os segredos das curvas do coração, por isso mesmo não deixava que suas angústias aflorassem na cara a marca pela indomável feiura, macilenta cor. Vez por outra em sinal de brincadeira Izé Cabedelo mandava que ele acompanhasse os peões em comitiva. Pro patrão era jogo de descobrir lealdades, pra ele certeira certeza de no lombo do cavalo baio poder sonhar desavergonhadamente com sua príncipa. Voltava cheio das forças, alegre. Brincalhão. Sem no entanto encontrar na cara de siá Genésia menor brilho de contentamento por seu retorno. Acostumado a sofrer ,nem mais se dava ao luxo de chorar o desprezo. A olhos vistos admirava o bucho de Sinhá Mocinha crescer. Via ali o neto-torto que poderia ser muito bem seu. Balançava a cabeça em reprovação quando tinha essas súbitas recaídas, sem esmorecer, que o sonho sempre havera-de ser companheiro de seu peito. Como essas, todas outras esquisitices, escalafobetices, acompanharam seguidamente os pensamentos, quando sozinho ou peladamente solitário no burburinho dos peões em comitiva. Tinha esperanças que um dia a príncipa reinaria dona de seu mundo, embora soubesse que futuro é um fiapo de tempo que, mal chega, vira passado. Belarmino B. fingidor de felicidades foi se indo, esparramando sorrisos pelos imensos caminhos tortos dos cerrados dos Gerais. Romulo Nétto - Jornalista e Escritor

domingo, 9 de junho de 2013

SIÁ GENÉSIA

Mal desapearam amarrando as rédeas das montarias no primeiro pé de pau, um forte cheiro de enxofre açucarado tomou conta das redondezas da casa-grande. Nhá Parteira sentiu profundo calafrio percorrer o espinhaço. Se benzeu repetidas vezes, rezando baixinho suas herdadas rezas de espanta coisa-ruim. Pra ela ali tinha coisa feita, pesada, de difícil desmanche. Mas quem havera-de mal querer Sinhá Mocinha? Tão doce, tão nova, como pode ela ser causadora de maldades pra outras pessoas, que não seja apenas o mal do amor não corespondido? Siá Genésia fincou dois palmos de sorrisos na cara sulcada por frescos sofrimentos. Recebeu de bom grado Nhá Parteira e Plug, levando-os até a cozinha. Sorriu satisfeita como pressentisse cheiro de novidade no ar. Pr’ela, Nhá Parteira trazia escondido um acontecido que ainda não conseguira desvendar. Pra Nhá Parteira pairava no ar certo odor de desconfiança. Mal entrou na imensa cozinha, o calor infernal tomou conta de tudo. Nhá Parteira sussurrou aos meus ouvidos que ali cada palmo de chão cheirava trepada, da boa, feita com paixão, durante horas. Perguntou se pousara antes naquela fazenda, causando em mim estranheza, raiva prematura, perturbadora. Seu faro de bruxa tinha pressentido fodelança futura no ar. Siá Genésia chamou, batendo palmas seus empregados. Um deles me levou até o banheiro, onde pude deixar a água fria escorrer pelo corpo durante incontáveis minutos. Por seu lado Nhá Parteira conversou longamente com Sinhá Mocinha, sempre intermediada pelas atenções de siá Genésia. Mas o pensamento das duas escapava dali. Uma se lembrando das trepações no mato, a descoberta do homem que a penetrara em todos os lugares. A outra entresonhando possibilidades de se sentir mulher desejada novamente, sendo possuída selvagemente por aquela perdição de capanga surgido em sua vida repentino, sem aviso, sem que ela ousasse esperar ou sonhar. Mas que no fundo de suas carnes vibrantes soube que mais cedo ou mais tarde aconteceria. Pois que sem ninguém pensasse se assucedeu de pronto, religiosamente. Naquela noite não faria nada. Não estava de todo preparada. Melhor deixar o bom arrasta-pé comemorar a chegança de Nhá Parteira pra dar o bote depois. Foi assim que a noite varou em bordejar da oito-baixos conduzida por Neguinha Prampam, acompanhada por Dentuça nas cantorias e Bem-te-vi na viola. Foram tantos goles, uma engolição sem fim dos quitutes mais ricos que em nenhum cerrado perdido daquela porção dos Gerais dantes nunca se houvera notícias. Nessa inesperada noite, ninguém atacou ninguém. Izé Cabedelo sossegou seu facho não bolinando nenhuma garotinha, velha especialidade sua. Nhá Parteira se contentou em olhar de soslaio pro seu príncipe que já desconfiava não tão bem-encantado, mas, segundo criteriosos pensamentos, ainda seu. Se divertiu contando causos, distraindo ao lado do fogão a fogosa Genésia, a buchuda Mocinha. Bebeu todos os goles que sua vida enciumada pôde permitir naquela hora, sem achar desprezada ou diminuída. Era de seu conhecer que novos rumos aconteceriam dali em diante, queria entregar-se inteiramente lúcida para cada momento das brigas. Sua mente jamais a dirigiria pra outras estradas. Siá Genésia apazigou seus sorrisos se contentando com o marasmo do trabalho na cozinha. Só de longe em longe ouvia os risos de jagunços, capangas, cobras e lagartos. Sua xandanga pegava fogo a ponto de obrigá-la a ir ao banheiro, onde retirou a calcinha de rendas que incomodava seu grelo entumescido. Voltou apressada sem descobrir desconfianças perdidas no ar. Tinha o controle da noite em suas mãos. Não permitira que ninguém o roubasse. Continuou festeira sem deixar de servir os convidados lá de fora, como acontecia desde que aquela fazenda fora aberta. Izé Cabedelo se gabava de ser o maior recebedor de visitantes do Vale do Urucuia, destinando grande porção da cachaça produzida em seus alambiques para presentear os chegantes. Quanto maior o consumo, maior sua alegria. Todos se encontravam ali unidos, reunidos em festança que atravessaria os cerrados, sertões, veredas, se projetando em inesperados futuros. Siá Genésia era bem parte de tudo isso. Ninguém dava um passo, por mais pequenino que fosse sem o dedo de sua maquinação. Não escondeu a avantajada pança de Sinhá Mocinha, nem a ausência de Gregório Tomba-Tomba. Os desavisados podem ler que já era carta fora do baralho, bem a gosto de Izé Cabedelo, a quem o genro tão era somente um caçador de dotes que ali nas beiras do Urucuia fincou suas unhas macilentas à cata da mais rica jovem e inocente casadoura. Foi no que deparou com Sinhá Mocinha. Inexperiente, sonhadora, facilmente seduzível pelo moço da cidade grande, onde por deveras pode ter praticado com bastança de sucesso seu plano, pois que engavetou rápida gravidez em Sinhá Mocinha, sem necessitar ou provocar desconcertante visita ao delegado Porciúnculo Destrão. Todos aceitaram com as pás-viradas o ajuntamento dela. Nem num era pra não ser diferente. Agora naquela hora avançada, quando a lua prometia inteirar total rebeldia, cheiando na noite seguinte, desconhecendo as fumaças das queimadas das matarias, tudo se conformaria em estreitas, estranhas mudanças, do vento e do tempo. Lá fora diante da fogueira, da claridade das brasas, recém-somada pela lua que invadira o terreno da ventania arrastando, de longe, um cinzento de há tempos esperado, a festança prosseguia como misturando outonos e primaveras, passados e presentes, coroando num belo chifre futuro que por certo os maldosos pinchariam na testa de Izé Cabedelo. Será que ele viveria nas indiferenças? Ou será que ele sentiria o calor dos cornos crescendo, mesmo que imaginário, por sobre a testa brilhante? Se aconteceu, o sentir morreu ali. Nunca ninguém ousou tocar no assunto, bêbado ou são. Mas que o chifre cresceu, ah! Pois que bom! Cresceu de imenso tamanho que o corpo de Izé Cabedelo começou a curvar nos meses seguintes sem que o falatório aumentasse ou diminuísse. Siá Genésia nem não se apreocupou com nada. Naquele justo momento ela se destacava em saber seus modos de atender os que festejavam as presenças de Nhá Parteira ladeada por Plug. O de antes descrito era apenas fruto de pensamentos futuros e tão só isso. Quando o dia aconteceu com seu causticante sol, muitos ainda bebidos, outros já desbebidos, dormitavam na grama orvalhada do imenso jardim de palmeiras imperiais, ipês amarelos, roxos, brancos, quaresmeiras desdormidas florescendo em frouxas flores matinais, trazendo aos olhos dos visitantes o encantamento de um cenário que só os loucos eram privilegiados de assistir. Mas siá Genésia bem que queria outro final pra sua história. Não se viu, nem se via coberta por aquele estranho vestido que Izé Cabedelo trouxera de Belzonte. Sonhara outros sonhos, encabeçara novos voos que seu corpo ainda possuído por carnes duras, firmes, permitiam voar. Ela era dona de suas fuças, cansada das fudelanças de papai-mamãe que sabidamente sabia nas conversas travadas, traçadas com tantas outras sinhás em suas visitas de recíprocas voltas. Queria mais. Visualizava que mais hora menos hora alguém chegaria pra lhe ensinar com a língua e o pau duro o verdadeiro caminho do gozo supremo. Siá Genésia determinou que os vaqueiros escolhessem um boi bem gordo pra matar, dando início às festanças do nascimento do primeiro neto. Foi um deus nos acuda de tanto movimento, primeiro no curral, depois na cozinha, por fim no pátio da casa-grande, onde cavucaram o chão enchendo de grossas achas de angico-vermelho formando intenso braseiro. As costelas cozinhariam por indefinidas horas, no fogo do chão, enquanto homens e mulheres descascavam mandiocas, catavam feijão, pilavam carne seca pro preparo de deliciosa paçoca de pilão. Siá Genésia sabia que o neto demoraria ainda uma semana pra aparecer. Ela não podia desconvidar ninguém, então que todos se habilitassem com seus préstimos no preparo das longas refeições. Tudo era mais por distração que necessidade,. Ocupando os visitantes, eles não ficariam como barata-tonta bisbilhotando quartos, porões e outras dependências da casa-grande, nem se dariam ao trabalho de atentar mocinhas e mocinhos nas casas dos agregados. Bulir com filha de peão é como meter a mão em caixa de marimbondo, pensava ela. Por dias deixou de queimar pestanas sobre Plug. Esqueceu por momentos em como tê-lo por cima dela em vigorosas estocadas. Adiou seus planos, nada mais. Todo mundo errou em seus cálculos. O forte garoto só veio à luz no décimo dia após a chegada de Nhá Parteira, pra inteira paz, alegria de Izé Cabedelo com siá Genésia. A partir daí as festas recomeçariam. Devidamente carimbados como avós, Izé e Genésia liberaram as frangas. Estavam prontos pro ataque. O décimo dia de festa completou o ciclo com o batizado de Sinfrônio Cabedelo. Saído não se sabe de onde, apareceu meio desconfiado, com ares de quem tinha ido apenas procurar um montinho pra modo de dar uma cagadinha, Gregório Tomba-Tomba levou esculhambação a perder de vista. Só mesmo os bichos ou animais de criação não soltaram xingamentos. Mas burros e jumentos relincharam surdamente como desaprovassem seu chá de sumiço. Pra muitos ele não fizera falta. Uns até detestaram o retorno, pois estavam ensaiando investidas pro lado de Sinhá Mocinha. Além do dote, ela era muito bonita. Pedaço de mau caminho pra ser precipitadamente descartada. Izé Cabedelo cofiou a barba, retorceu bigodes, esfregou as mãos como esperasse mortal disputa entre o genro e algum pretendente. Pois quê. Siá Genésia torceu o nariz como se estivesse diante de ave de mau agouro. Não deixaram Gregório Tomba-Tomba pegar o filho no colo. Saiu murcho como chegou. Entrou mudo, saindo calado. O caminho fora deliberadamente escancarado. Qualquer simpatizante responsável seria bem-aceito na vida de Sinhá Mocinha. O leilão estava aberto. O mais prendado, atencioso e gentil, arremataria a prenda. Se fosse do agrado de Izé Cabedelo mais siá Genésia, melhor ainda. A música correu solta por três noites e três dias. Foi um rela-bucho imemorável. Muita prenhez ocorreu no meio do mato, nos galpões de guarda de mantimentos. O casal festeiro continuava seu jejum sexual. Siá Genésia mijava fogo de tanta vontade de entregar sua xuranha pra Plug. Se escondia no quarto por horas, se apalpando, se esfregando num grosso pepino que de quando em onde deixava penetrar numa firme e sentida estocada. Masturbar-se virou rotina. Borrifava a cama com leite de colônia pra disfarçar o bodum do sexo malfeito e solitário. Enquanto isso continuou pensando em como faria para comer Plug. Uma semana depois do batizado Sinhá Mocinha começou a perder o sono. Não dormia nem de dia nem pela noite. O socorro veio pelas mãos de Plug que ofereceu um chá feito de plantas encontradas cerrado adentro. Era forte. Carecia ser enfraquecido com bastante água. Siá Genésia viu ali a oportunidade de realizar seus devaneios. Tinha ciúme danado das licoreiras de cristal importado, de seus conteúdos. Passava semanas fazendo as mais diversas receitas. A preferida era a de jabuticaba. Quando retirava a tampa o perfume adocicado se esparramava pelo salão de festas, inebriando visitantes que imploravam uma segunda dose. Nessa noite as coisas seriam diferentes, bem diferentes. Desde o meio-dia a leitoa já se encontrava no forno de barro sendo assada devagarinho, como manda a cozinha dos Gerais. O couro ficaria pururuca, estalando ao primeiro toque da faca que trincharia os quartos dianteiros e traseiros. Delícia divina. Desgranhenta perdição. Pra modo não errar na dose, siá Genésia experimentou a poção num amassado de farelo de arroz. Tinha separado bom cachaço pra fazer o teste. Tiro e queda. Cinco minutos depois de comer a porção, o porco dobrou os joelhos caindo em repentino sono profundo. Passou a noite em roncos. Siá Genésia não cabia em si de contentamentos. O peixe morre pela boca. Pela boca seus empregados e visitantes dormirão. Mal o relógio da sala expulsou o cuco anunciando duas da tarde, Siá Genésia dispensou os serviçais que moravam mais longe, cobrindo com pequenos mimos, tudo corriqueiro pra no depois não chamar atenção. Ficaram somente os imprescindíveis pra que o jantar fosse preparado, servido como assuntara. Sinhá Mocinha dormiu cedo, esgotada pelo suga-suga do filho, ajudada sem cerimônia com a dose dupla daquela poção que acalmava os ânimos permitindo doces sonhos. Às oito da noite a imensa mesa da sala de jantar da casa-grande estava posta. Ao todo dez pessoas participariam da comilança. Siá Genésia pensadamente mal tocou na comida. Plug mordiscou rodelas de tomate, provou pequeno pedaço de pururuca regado com molho apimentado, bem a seu gosto. Dizia ele por mor de dar maior tesão, como se antevisse o que o esperava. Aforante Plug, siá Genésia, cada um se lambuzava mais que outro, como se o mundo fosse acabar logo depois, em perdição de comida e lambanças que tais. Ela, serena, se ria por dentro seu riso de vitória, contentamento por saber que todos recordariam anos a fio daquela noite, sem no entanto se alembrar do sono duro imposto sabe-se lá como! Nem Izé Cabedelo estranhou quando ela se levantou indo servir o licor. Passou como normal, não merecendo destaque ou desconfianças. Ela era assim, dona de fazer o inesperado. Agrado supremo pra visitantes. Isaura, mulher de Tonhão Carcará, lambeu os beiços estalando no depois a língua estridentemente. Mal conseguiu pedir nova dose, se esparramando no chão. Pouco depois só restaram sóbrios Plug, siá Genésia. De assustado ele nem viu quando foi arrastado até o porão, onde, mal entrou, viu a porta ser ruidosamente fechada a sete chaves. Num relance estava nu. Ela implorando que rasgasse suas roupas, chupasse sua xuranha afogueada, enquanto engoliria o mastro de sua bandeira flamejante. Foi uma chupação de mais de horas onde cada parceiro encheu a boca com o suco quente do corpo do outro. Plug já perdera a conta das muié-damas que vagaram por sua cama. Mas aquela ali tinha vulcões escondidos em cada buraco do corpo. E foi por baixo, foi por cima sem cansaço, repetidas vezes. Quando o sol ameaçou surgir, ela pediu uma última vez. Pegou com as duas mãos o peru em brasa do amante, fazendo com que sua xandanga o comesse de uma só vez. Um cheiro de carne assada invadiu o imenso porão. Plug acariciou um dos seios de siá Genésia, duros, durinhos como um coco-babaçu. Sugou o mamilo com gosto, mordicou levemente, enquanto ela subia e descia, frenética cavalgada, transpirando prazer, satisfação, colocando um dedo no grelo, lambendo depois, saboreando seu próprio sumo. Finalmente o dia antemanhou. Siá Genésia pediu a Plug que a possuísse mais uma vez, durante o banho. Implorou que enfiasse sua espada no rabo, coroando a primeira das muitas noites de amor que travariam juntos. Por Romulo Netto - Jornalista e Escritor

VENDETA

As ruas estreitas da cidadezinha histórica foram seduzidas por grossa camada de asfalto, o mesmo aplicado na rodovia que rumava do Rio de Janeiro pra Brasília. Paracatu era apenas mais uma entre tantas outras localidades encravadas na passagem da BR-040. Os aventureiros não arriscavam demorar mais que algumas horas. Além do pouco casario colonial, igrejas barrocas pedindo a Deus pra serem demolidas, o lugar só tinha pra oferecer dois ou três butecos, o puteiro da Praça da Distribuidora, açougues, vendas e o bordel de Ferreirinha. Não estava preparada pra receber os visitantes que fatalmente chegariam aos montes quando Brasília fosse declarada Capital Federal. O dinheiro aqui era escasso fruto de pequenas lavouras, aluguel de casas caindo aos pedaços, garimpo dos muito ricos fazendeiros de cria recria de bois que sempre eram levados pra Barretos. Somavam-se a eles os afortunados funcionários públicos dos Correios, da Coletoria, e professores do Colégio Estadual. O resto era pobreza que nem tinha linha de separação. Papai era afortunado. Funcionário dos Correios, tinha por profissão guarda-fios. Cuidava de uma distância de trinta quilômetros saindo de Paracatu rumando pra Uberaba. Sua responsabilidade consistia em limpar semestralmente dois metros à esquerda, dois à direita de toda a extensão por onde desembocavam os postes de seu trecho, fazendo um aceiro. Ainda que funcionário público, o salário mal dava pra cobrir os gastos com a família. Fazia bicos como carapina, depois comprou uma máquina pra lixar, sintecar assoalhos, tacos. Não era rico, mas não deixava faltar carne, verduras, legumes, até bacalhau, na Semana Santa e no Natal em nossa mesa. Acompanhava pelo Correio da Manhã o que acontecia no país e no mundo. Via com bons olhos a chegada da STER, companhia responsável pelo asfaltamento da BR-040. Olhar bem diferente do nosso, pois os trabalhadores da grande empresa despertavam a atenção das moças casadouras da cidade. Havia prenúncio de prosperidade. Os Botelhos, donos da metade do dinheiro circulante na cidade, anteviram o futuro, construindo na rua Goiás o primeiro hotel: Walsa. Paracatu já era parada obrigatória para todos que buscavam Brasília, que fervia na sanha construtora do presidente Juscelino. Nossa terra estava fadada a sair do esquecimento. O Repórter Esso anunciou que Brasília seria inaugurada em vinte um de abril em homenagem a Tiradentes. Os Botelhos, mais uma vez, previram o futuro. O Walsa Hotel não seria suficiente para receber tantos turistas que debandariam de seus Estados rumo ao Planalto Central para assistir à inauguração da capital. Decidiram construir o Hotel Presidente. Vez por outra, nós, alunos do Colégio Estadual Antonio Carlos, subíamos a avenida Deputado Quintino Vargas até alcançar a Olegário Maciel, onde o Presidente estava em construção. Fazíamos alguns biscates, quando ganhávamos poucos trocados, mas suficientes para saborear sorvete no bar do Jóquei Clube. Quinze ou vinte dias antes da inauguração da capital federal, o Hotel Presidente estava pronto para receber visitantes: deputados, senadores, jornalistas, daqui ou das estranjas. Nós passávamos pela entrada sem ousar adentrá-la. Seríamos escorraçados pelos recepcionistas, muitos dos quais nossos vizinhos ou ex-colegas de escola. Pra nossos olhos, que não conheciam nada além do que os filmes do Cine Paracatu nos mostravam ou imaginávamos pelas novelas da Rádio Nacional, um luxo. Dizem que tinha copo pra água, vinho ou bebida destilada, um diferente do outro. Coisa de louco pra nós daquelas Gerais, acostumados a comer no mato em lata de goiabada, beber da água na concha das mãos. Inaugurada a capital, debandados os das estranjas, os daqui, o Hotel Presidente nem não ficou jogado às traças e baratas. Primeiro chegaram e se aboletaram num quarto que eles chamavam de apartamento, os irmãos franceses Cornier. Entendidos de som como o quê. Logo, sentiram que no hotel não realizariam suas experiências. Precisavam de espaço amplo sem preocupação de incomodar a vizinhança. Foi na casa deles que, pela primeira vez, ouvi um tal de som estereofônico. A maquininha separava tudo. Eu podia ouvir violão, violoncelo, piano, voz, cada um por sua vez. Mas o Hotel Presidente continuava lá, bem defronte da rua que despencava da BR-040 como fosse continuação do posto de gasolina de Walter Neiva. Dali, olhava-se pro futuro ou menormente o mundo que rodopiava naquela estrada invasora da tranqüilidade cerradesca das Gerais. Um dia, ele chegou suando às bicas mal descido do automóvel. Na recepção, mostrou os documentos. Pagou por mês. Só disse: — Buon giorno! Duas horas depois, já estava esparramado sobre a cadeira de descanso na calçada do hotel. Camiseta branca sem mangas, calças de caubói cortadas até o joelho grosso, trancelim de ouro pendurado no pescoço, relógio dourado no pulso esquerdo, chapéu branco de abas largas, um jornal nas mãos. Gastei semanas pra decorar o nome: Corriere della Sera. Eu o via com o jornal entre as mãos, mas como saber se dia após dia era o mesmo? Nem por sonho adivinharia em que língua estava escrito. Mas houve um dia em que fui mostrar meus iniciantes poemas pras sobrinhas de tio Luiz no centro espírita que ficava ao lado do Hotel Presidente. Tropecei no pé do homem. Ele levantou num só pulo. Esbravejou na língua dele. Emudeci. Enfiei o rabo no meio das pernas e escafedi. Demorei quase um mês pra passar novamente perto do Hotel Presidente. Numa sexta-feira à tarde, o reencontro aconteceu. Estava sentado na cadeira de descanso com seu surrado Corriere della Sera. Quando me viu se levantou, pediu-me para arranjar uma puta. Disse o nome, colocando em seguida uma nota de cinco cruzeiros em minhas mãos. Fui pro bordel de Ferreirinha, indaguei por Diva. Disseram que ela estava na praia do Vigário. Com o coração apertado, saí em desabalada carreira. Quando cheguei na praia, lá estava ela deitada sobre uma toalha branca, o que ressaltava ainda mais sua cor. Nua como viera ao mundo. Pernas, coxas longas bem servidas de carne, seios lindos, xandanga totalmente raspada deixando à mostra aquele sexo rosado parecendo um bibelô, tamanha a formosura. Meu pinto endureceu. Tentei arrumá-lo pra que não percebesse minha excitação. Falei do recado do italiano. Agora, já sabia de onde era: da Sicília. Se levantou pedindo para ajudá-la com as roupas. Colocou com graça a calcinha, o sutiã, olhou maliciosamente pro meu pinto perguntando se já tinha fodido alguma vez. Disse que, se o pagamento do italiano fosse bom, me ensinaria. Quase nem achei o chão pra pôr meus pés. Minha cabeça foi às nuvens e voltou. Eu? Trepando com Diva a puta mais linda do noroeste das Gerais! Só mesmo em sonho. Os encontros continuaram a cada quinzena. Sempre ia encontrar com Diva na praia do Vigário, ficava me remoendo de ciúme sabendo que o italiano comia a mulher de meus sonhos juvenis. Se estava satisfeita não sabia, pois não dava sinais de cumprir o trato, proporcionando minha primeira transa. Mas só o fato de vê-la nua, de onde-em-onde permitindo que tocasse os seios, os chupasse, já bastava. Houve uma vez que me deu um beijo na boca tão demorado provocando uma zonzeira, tremedeira pior que as das febres quando as amígdalas se inflamavam. Era praticamente seu cãozinho de guarda. O italiano ó! Só que trepava. Um dia contei as gorjetas economizadas, ofereci pra ela. Disse não. Pegou minha mão, escolheu um dedo, pôs no seu sexo, beijou minha boca tirando minha roupa, segurou meu pau duro, engoliu de uma só vez. Gozei na hora. Limpou a porra que escorria pelos lábios, perguntou se gostara. Fomos pro Hotel Presidente. O italiano disse pra buscá-la na próxima sexta-feira treze. Não gosto de sexta-feira treze, principalmente quando é agosto. Mas trato é trato. Ganhava uns trocados pra isso. Na tarde da marcada sexta-feira, soprava um vento frio, o sol brilhava sem esquentar. Mês do cachorro doido, das ventanias. Subi a Quintino Vargas desapressado: quando dobrei a Olegário Maciel vi que, defronte do Hotel Presidente, havia uma pequena multidão. Alonguei os passos. Levei um baita susto quando vi o italiano caído com um buraco na testa, outro no coração. O delegado fez perguntas. Ninguém viu ninguém, ouviu nada. Hoje, acredito que foi mais uma vendeta da máfia italiana. Depois da morte de Domenico, nunca mais fui à praia do Vigário ou passei pela porta do bordel de Ferreirinha, mas guardei na memória enquanto pude o corpo escultural de Miss Brasil de Diva, a mais bela puta que meus olhos viram. Por Romulo Nétto - Jornalista e Escritor

sábado, 8 de junho de 2013

OS DOIS

Os Dois O susto do encontro durou apenas poucos segundos. Malalá notou que o estranho não oferecia nenhum perigo. Aproximou-se em passos lentos seguros, desconfiada. Pousou a mão no ombro esquerdo do ferido, que gemeu de dor. Perguntou pelo nome; sem esperar, disse o seu. Com a mesma rapidez que tinha pra sacar a arma, imaginou que não deveriam permanecer ali por muito tempo. A peonada da Buriti Perdido não tardaria aparecer atraída pelo estrondar dos tiros. Ajudou Bastintim a montar em seu cavalo rumando pra Mundo Novo. Naquelas paragens, cuidaria do ferimento. Avançavam durante o dia descansando à noite. Três dias de viagem, alcançaram os contrafortes da Serra da Aldeia. Passara diversas vezes em fuga pela localidade. Escolha perfeita. Encontrou pequena caverna onde preparou uma cama com folhas de árvores forrando em seguida com sua capa Ideal. Deitou Bastintim no leito improvisado, retirando a camisa ensangüentada. Não conseguiu desviar o olhar do peito musculoso do jagunço. Balançou a cabeça, se reprimindo. Apanhou duas balas da cartucheira, separou o chumbo; colocou Bastintim de costas, esparramou a pólvora sobre a ferida, atiçando fogo em seguida; urrou de dor talequal onça zagaiada. Repetiu a dose na ferida do peito, tomando cautela de colocar um pedaço de pau em sua boca, assim evitaria que ele mordesse a língua. Bastintim desmaiou. Aproveitou pra fazer uma maceração de ibatimô, cicatrizante do mato. Aprendera a usá-lo na pouca convivência que teve com sua avó Isaura. Velou por três dias e três noites o sono de Bastintim, passando a todo momento um pano molhado na testa, no rosto, no peito, pra acalmar a febre, retirando o suor que corria em bicas. Bastintim delirou seguidamente, revelando casos, segredos inimagináveis. Pra ela, de pouca valia. Eram dois com a mesma vida de violência sanguinária. No décimo dia, a febre cedera, mas Bastintim permanecia sonolento. Malalá o ajudava a se levantar pra fazer as necessidades; logo depois, caía em sono profundo. Não se fez de rogada. Afinal, era mulher virgem. Cautelosa, tirou sua roupa, alisou suavemente seu parangolê, sentiu leve reação; começou a chupá-lo vagarosa. Em poucos minutos, estava duro como mourão de cerca. Levantou a saia, tirou a calcinha, enfiou dois dedos em seu sexo pegando fogo; estava molhado. Apontou a cabeça pra dentro da xandanga engolindo o mastro em brasa de uma só vez. Esfregava os seios enquanto cavalgava o homem que instintivamente decidira comer. Gozou em golfadas suaves, eletrizantes; leve calafrio percorreu a espinha deixando-a inebriada, satisfeita: mulher. Saiu de cima de Bastintim deliciada, vagarosa. Foi ao córrego, nadou demoradamente, relembrando cada momento. Preparou ensopado de bagres, amassou a carne fazendo um caldo grosso. Forçou Bastintim a comer um pouco. Estava faminta. Repetiu duas vezes, deitou ao lado do seu homem, adormecendo em seguida. Na manhã seguinte, continuou na rotina. Pescar, armar arapucas, fazer almoço, janta. Escurecendo, acendeu a fogueira que os aqueceria noite afora. Arrancou com os dentes a rolha da garrafa de pinga, sorveu graúda talagada. Bastintim dormia ou fingia que. Descobriu o corpo de seu cobertor seca-poço, mordiscou os bagos, caiu de boca no cacete, que logo endureceu. Engoliu pela segunda vez o mastro em brasa. Agora tinha certeza de que este era o homem de sua vida. Cavalgou mais de meia hora rebolando fazendo o membro entrar sair com fúria. Segurou o gozo enquanto pôde. A explosão aconteceu. O corpo tremeu. Seu sexo mais parecia fogueira, os seios duros doíam como tivessem sido mordidos. A boca seca ansiava um beijo. Calma, saiu de cima do macho, tombando em sono profundo. Bastintim assistiu a tudo acordado. Olhou o traseiro da mulher iluminado pelo clarão da fogueira, arremessou todo peso do corpo em cima de Malalá penetrando de uma só estocada. Os dois rolaram na cama até o sol raiar, enchendo a caverna com o cheiro dos amantes. O esconderijo em Mundo Novo não oferecia segurança; muitos caçadores, pescadores, acostumados com a fartura dos ribeirões, faziam acampamento durante o ano inteiro um risco que os dois não podiam nem pretendiam correr. Com Bastintim restabelecido, norteou pra Cangalhas. Encontrou pequeno sítio próximo ao Ribeirão do Carmo. Ficara com o dinheiro da primeira parcela a ser paga pelo gado. Sua recompensa. Adquiriu no vilarejo uma carroça, mantimentos, enxadão, pá, picareta, facão, martelo, prego, outras bugigangas úteis na reforma do casebre; não se esqueceu de uma cama larga com colchão acolchoado; com Malalá, começaria nova vida, longe da jagunçagem. Desmontaram as duas papos-amarelos, as parabéluns, os colts de cano curto. Limparam peça por peça, engraxaram com cuidado; remontaram, colocando as armas em lugar seguro, mas de fácil alcance. Nunca se sabe quando precisariam delas, mormente por terem matado tantos. A terra prometia ser boa pro cultivo de milho, feijão, hortaliças. Abriram pequeno roçado. Findada a chuva, as sementes brotaram causando alegria aos dois. Anteviam fartura. Gastaram algumas semanas até comprar boa vaca leiteira. Construíram, próximo à casa, o paiol onde armazenariam milho, feijão, arroz. Estavam descobrindo a verdadeira razão de viver em paz. Assim decorreram os três primeiros anos na vida do casal. Numa manhã, Malalá acordou enjoada, vomitando, sentindo repulsa de seu homem; não podia sentir o cheiro que desandava a enxotá-lo de casa; descobrira finalmente seu estado de gravidez. Tempos difíceis pra Bastintim, acostumado a receber, dar prazer. Resistiu à prenhez de Malalá. Na aproximação do aniversário, a mulher sentiu contrações; assustado, foi pra Cangalhas, retornando no dia seguinte com Tiana parteira. Malalá entrou em trabalho de parto no final da tarde. À noitinha, tinha parido bela menina de olhos azuis; Malalá decidiu chamá-la Josefa. Tiana disse que viria outra criança. Meia hora depois, novas contrações. De repente, um berreiro só. Nascia menino-macho. O nome do menino ficaria a cargo do marido. João. Mal tiveram os umbigos amarrados, os dois buscaram os peitos cheios de leite da recém-parida. Felizes, mamaram até cair no sono. Malalá observou o resguardo como recomendara Tiana parteira: nada de comida remosa, banho frio no ribeirão, rigorosa abstinência de sexo. Mesmo quisesse, os cuidados dispensados aos filhos a deixavam cansada demais pra mergulhar nesses assuntos. O casal vivia agora vida de gente de bem, longe do passado próximo, carregado de ódio e turbulências. Josefa, João cresciam a olhos vistos. Completaram nove anos. Numa das poucas andanças por Cangalhas, Bastintim ouviu de longe falar do Coronel Zaú. Apurou os ouvidos. A vida da família corria perigo. Nem tudo era como parecia ser. Em casa, contou seus assustamentos pra Malalá. A proteção dos filhos não saía da cabeça; foi quando acharam chegado o momento de ensiná-los a atirar. Munição farta escondida no paiol; pegaram as armas que causavam menor impacto ao atirar; criaram alvos. À medida que passavam os dias, foram diminuindo de tamanho. As crianças não sabiam ao certo a razão daquela mudança repentina. Logo porém se apegaram ao manuseio das armas; viviam pra cima, pra baixo com elas nas cinturas. No natal foram assistir à missa do galo em Cangalhas, como faziam todos os anos. João perambulou pelos botecos à procura de sorvete. Na venda de Seo Fulô achou o que procurava. Ou mais. Ninguém o conhecia; talvez por isso mesmo, a conversa dos adultos tenha corrido tão solta, descontraída. Ouviu detalhes sobre as andanças de Olhos Azuis, cuja descrição batia perfeitamente com sua mãe: verdadeiro retrato falado. Nas conversas paralelas, ligou Malalá a Olhos Azuis, o jagunço musculoso, a Bastintim. Seus pais eram criminosos sanguinários. Não teve estômago pra continuar escutando a conversa. Cambaleando, procurou a irmã, detalhando tintim por tintim tudo que ouvira. Nessa noite, nem apreciou os cânticos da missa, tão perdido estava em seus pensamentos. Os dois se fecharam em conchas; no amanhecer, mal tocaram nos presentes colocados nos sapatos ao pé da cama. Levantaram. Lavaram a cara, escovaram os dentes, tomaram café, municiaram as armas. Saíram pela porta do fundo. Deram volta; a porta da frente escancarada. Josefa sorriu atirando duas vezes no peito de Malalá. João mal fez mira pipocando bala certeira na cabeça do pai. Os dois. Tomaram gosto pela coisa... Relembranças. Por Romulo Nétto - Jornalista e Escritor

BASTINTIM

Bastintim Desde pirralho, demonstrava ter parte com o coisa ruim. Nascera pra viver a vida pelo avesso. Enquanto outras crianças brincavam com carrinhos de bois feitos de sabugo de milho, mangas, mamonas, sua diversão era degolar pintinhos no terreiro do sítio onde morava. Houve uma vez que levou boa surra de Honorato por ter trucidado mais de vinte numa só manhã. Apanhou até as costas ficarem marcadas com sulcos profundos em carne viva. A mãe assistiu a tudo sem poder socorrer o filho. Justo o castigo. Quando indagado o que seria ao crescer, dizia apenas: jagunço. Cutucado pra outras respostas, falava que queria sentir gosto de sangue na boca, ver como os olhos do desinfeliz ficavam diante do revólver pronto pra disparar a morte iminente. Os pais decidiram deixá-lo de lado. Bastintim não tinha conserto. Só causaria dor, tristeza, por onde andejasse. Nem bem completou doze anos, furtou a espingarda e o cavalo do pai, caindo no mundo. Melhor assim, sem choro nem despedidas. Vagueou por veredas, riachos, dormiu ao relento, em cavernas, sempre à espreita de algum bando que o acolhesse. Sentiu na pele a dureza da solidão sem reclamar. Não tinha também pra quem. Essa a vida que escolhera. Entrava nos vilarejos onde trocava teiús, tatus, frutas por mantimentos que no mato não conseguia. Um pouco de sal, café, rapadura, até mesmo bom naco de fumo goiano. Deitado debaixo de um pé-de-pau ou na caverna, gostava de dar breves baforadas no cigarro de palha que indesde criança aprendera a fazer pro pai. Desconfiado, assuntava nas vendas sobre brigas políticas, desavenças por heranças de terras, fugitivos das cadeias afilhados dos coronéis. Colhia daqui dali informações que permitiram tecer o perfil ideal do bando de que faria parte ou criaria pra aterrorizar as divisas do noroeste das Gerais com Goiás. Enquanto o destino não se cumpria, começou praticando pequenos furtos, estuprando mocinhas despreocupadas que gastavam horas tomando banho nuas em pêlo no Riacho Doce. A fama do desconhecido correu o cerrado, despertando a atenção do coronel Zaú. Com as constantes pelejas com o povo do Retiro Alto, ele bem que precisava de um destemido jagunço talequal esse se lhe aparentava. Despachou doze homens com a finalidade de trazê-lo por bem ou por mal, a ferro fogo. No decorrer de oito anos fugindo de caçadores, Bastintim aguçou os ouvidos, podia distinguir se o estalo de um galho quebrado a centenas de metros fora causado pelas patas de onça pintada ou de homem. De longe, sabia contornar o ninho de cascavel, percebia o som do chocalho como se estivesse segurando com as mãos. Essa experiência salvou sua vida inúmeras vezes. Os homens do Coronel Zaú jamais sonhariam com a matreirice de Bastintim. Conhecia cada palmo daquele sertão cerrado. Só seria encontrado se assim decidisse. Um mês depois que o bando saiu do Brejo Encantado, divisou três homens bem armados. Conhecia de vista um deles. Era jagunço de confiança do coronel. Resolveu mantê-lo sob estrita vigilância. No momento exato, daria o pulo do gato. Na terceira semana de espreita, desconfiou que o jagunço pressentira sua presença, pois mudara radicalmente de hábitos. Já não deixava a parabélum presa no coldre; a faca estava na bainha, mas sem amarras, fácil de ser retirada, manuseada. Por não saber das intenções do pequeno bando, o melhor seria aguardar os acontecimentos. Observou de longe com a luneta confiscada da Casa Rocha que o jagunço estava cevando pacas. Aquele seria o ponto ideal prum encontro. Por certo, ficaria na espera, em jirau improvisado aguardando os animais acostumados com a farta comida. Depois do tiro certeiro, o jagunço desceria para apanhar a presa; um bom atirador, em ocasiões tais, matava pelo menos três animais. O jagunço mal colocou os pés no chão e sentiu o cano frio do chimitão pressionar os rins. A conversa durou menos de cinco minutos na avaliação de Bastintim; pra Zuzu Cabelo-de-fogo, pareceu a eternidade. Acalmados os ânimos, esclarecidos os motivos do rastreio, os quatro buscaram a caverna da Onça Pelada onde passariam a noite saboreando um assado de pacas. Bastintim ouviu, contou histórias entre gole outro de boa cachaça dos alambiques paracatuenses. Pra seu governo, a oferta do Coronel Zaú: irrecusável: cama, comida, mulheres, bebida, dinheiro, proteção. Estava com a vida que o coisa ruim lhe reservara. Nos três anos seguintes, o noroeste das Gerais foi varrido por uma onda de assassinatos, roubos, estupros, nunca antes imaginados. Bastintim tomou gosto pelo sangue, jagunçagem, cabaços. Em cada vila, vangloriava estuprar pelo menos três ou quatro moças; nas rodas de viola, gabava-se que saía das vilas com o pau esfolado de tanto penetrar cus, xandangas. Não tinha remorso nem piedade. Perto dele, o Belzebu era santo. Na coronha da papo-amarelo tinha quarenta marcas; quarenta mortes sem contar as causadas pelo chimitão, a parabélum, as degolas com peixeira. As façanhas de Bastintim causavam medo até no Coronel Zaú, que, acovardado, planejou acabar com a vida de seu protegido. Traçou plano meticuloso com três homens de estreita confiança. Esses, em conluio com os recém-chegados baianos a mando do Coronel Valêncio, cuidariam da execução quando a maioria dos fazendeiros passava a semana inteira em comilança nas festas do Bom Senhor, em Buritis. Coronel Zaú não faltava uma vez sequer. Ninguém o acusaria da morte de seu braço direito. Afirmando ter fechado a compra de quinhentas cabeças de gado na fazenda Buriti Perdido, despachou Bastintim com homens que escolhera pra cumprir a tarefa. Na cabeça de Bastintim, algo não soava bem. Qual a razão de ter sido o escolhido? Era homem de ação, de pistolagem, não de aquisição e transporte de gado. Um sinal emitido pelo cérebro colocou o ouvido treinado em constante alerta. Qualquer descuido, por menor fosse, lhe custaria a vida. Fazia suas necessidades por trás de um frondoso pequizeiro, quando ouviu Zuzu Cabelo-de-fogo ordenar o tiroteio cruzado já amplamente treinado pra pôr fim à vida de Bastintim. Ele não contava com a presença, a poucos metros, de Malalá e seu bando espreitando o gado do Coronel Zaú. Ao iniciar a troca de tiros, Cabelo-de-fogo foi apanhado pelas balas vindas do veredão. Atônito, correu até Bastintim. Furioso, atirava a esmo. O momento chegara. Puxou a peixeira da cintura atracando com o rival, desferindo certeira facada pouco acima do peito esquerdo. Imaginando o inimigo morto, Cabelo-de-fogo chamou seus homens rumando pro São Marcos, cantando vitória, a morte de Bastintim. Do outro lado do veredão, Malalá esperou chegar a calmaria, puxando seu cavalo cansado, água até a cintura, a blusa ensopada deixando entrever o contorno dos seios duros, empinados. Sua decisão era reunir as últimas cabeças de gado, sumir no cerrado. Foi quando viu Bastintim ferido caído, sangrando. O coração acelerou. Os olhos reviraram quando Bastintim sorriu... como fosse pela última vez. Por Romulo Nétto - Jornalista e Escritor

MALALÁ

Malalá A primeira morte aconteceu mal completara onze anos. Todo final de semana, era a mesma agonia. Piorra enchia a cara no boteco do mestre Zanzá, voltava pra casa faminto, reclamando da vida, exigindo comida no prato. Como pôr comida em casa se não trabalhava, o pouco ganho da mulher era consumido em suas intermináveis bebedeiras? Naquela morna manhã, Piorra ultrapassou todos os limites. Chegou ao casebre quebrando a porta, arremessando tamboretes pela janela, derrubando pratos, velhas panelas no chão. Postou-se como senhor patrão, o verdadeiro macho do território. Branca, que de branca não tinha nada estava deitada no catre do casal, vez por outra sentia falsas contrações contorcendo-se em dores, jurava que não perderia o filho. Piorra chamou pela mulher, ouviu apenas um gemido, furioso partiu pro quartinho começando a pancadaria. Branca gritava pedindo perdão, socorro. A chamava de vagabunda, preguiçosa; quanto mais implorava, mais violento Piorra se transformava. Na primeira hora, Malalá assistiu assustada a irmã ser espancada; ouviu ossos estralando, o sangue jorrando como fonte. De tanto medo, não conseguia chorar. Aos poucos, a tortura da irmã foi enchendo sua alma de coragem; quando viu a afiada faca de limpar peixe por sobre a velha mesa da cozinha, nem não pensou duas vezes. Correu possessa apanhando a arma. De costas, o companheiro da irmã não pressentiu sua aproximação. Com fúria, cravou a peixeira na altura do rim esquerdo, torceu, puxou, enfiou novamente com determinação no lado direito, o danado só teve tempo pra exclamar: — sua putinha safada! Tombando em seguida sobre o corpo todo machucado da companheira. Por várias vezes, Malalá chamou por Branca. Sem resposta, achou melhor cair no mundo. Encontrada, seria acusada das duas mortes. Nas leis dos homens, o pobre sempre é culpado em primeiro lugar até prova em contrário. Malalá nunca escondera seu gosto pelas armas de fogo. Aprendera ainda pirralha a atirar com a espingarda do pai, depois com um velho revólver. Dali pra frente, sabia qual caminho a seguir: a jagunçagem. Após a fuga no primeiro retiro por onde passou, roubou um cavalo, uma winchester, munição. Começou a correr seu novo mundo. Quinze dias de tropel firme parou pra descansar na Vereda da Traição. Foi onde decidiu cortar o cabelo bem rente, deu um jeito de esconder os peitinhos que despontavam. Precisava mostrar que era um rapagote, somente assim conseguiria guarida em algum bando. Se se apresentasse como mulher, seria pasto fácil praqueles abutres que, desnorteados, gastavam meses sem tocar numa mulher. A viadagem entre jagunços era punida com a morte. Vagou por quase dois anos sobrevivendo de araçás, mangabas, teiús, peixes que pescava com facilidade nas imensas veredas. Procurou guardar munição. Não atirava só por economia, mas pra manter segredo sobre sua localização. Desfrutava da sombra de um jatobazeiro, quando ouviu o tropel. Pôs-se de prontidão, arma em punho esperando pelo pior. A primeira cara que viu foi de Desdum, misto de beato, curandeiro e macumbeiro. Velho conhecido de seus pais. Baixou a arma afirmando ser de paz, precisando do aconchego de um bando. Desconfiado como no em sempre, Desdum provocou sua ira dizendo que o velho Tão com a comadre Dasdor não tinham filho homem, apenas mulher. Rebelde, agressiva Malalá perguntou se ele queria vê-lo nu diante de todos pra provar que era menino-homem. Desdum amoleceu. Malalá, a partir daí, renasceu como homem, pronta pra todas as atrocidades que o cerradão seco estava predestinado a presenciar: mortes, mais mortes sem julgamento. Desdum decidiu acampar com o bando na Vereda da Sabedoria, bem próximo do Santa Isabel. O esconderijo era bom, farto de caça, pesca. Ali, passaria até meses com seus homens esperando o chamado de algum coronel. Serviço na época da política não faltava nunca. Os homens comiam, pescavam, dormiam, praticavam tiro ao alvo, a vida desse modo por muito tempo tornaria monótona, provocando irritação, descalabro. Meses antes das eleições de cinqüenta, Desdum foi chamado pra executar um serviço na beira do Urucuia. Os principais coronéis desaprovavam o indicado do governador Mello Franco pra prefeito de Buritis, recém-emancipado distrito. Desdum achou oportuno colocar à prova não só a pontaria como a lealdade de Malalá, a quem chamava de Olhos Azuis. Chegaria sozinha na cidade, hospedaria na Pensão de Nhábenta, vistoriaria as principais ruas, assistiria aos comícios procurando se familiarizar com a rotina do candidato a prefeito e a morto. Apenas três dias bastaram pra Olhos Azuis saber como seria fácil executar sua tarefa. No dia doze de outubro, seu décimo terceiro aniversário, foi à missa, rezou, cantou, comungou. Saiu antes de todos. Mal Vitoriano apontou pela porta da igreja, sapecou três tiros no peito, nem esperou a queda já esporeava o cavalo com o sabor do dever cumprido, a sina de jagunça iniciada. A morte de Vitoriano Neiva correu o sertão das Gerais. Diziam uns que foram cinco jagunços, outros pormenorizavam dez ou doze, descrevendo até cangaceiros das Bahia, das Alagoas. Olhos Azuis foi recebida em festa no acampamento de Desdum; a cria estava precocemente preparada pra seguir sua trilha. Os anos passaram, ela perdeu a conta de seus mortos. Com vinte anos nas costas, por certo chegariam a quarenta, todos realizados em perfeito prazer, alegria. No fundo de sua alma sabia que nascera pra ser jagunço. Mas o corpo de mulher escondia desejos que, vez por outra, afloravam violentamente. Foi assim quando viu Bastintim pela primeira vez. Estava com o bando roubando alguns bois na fazenda Buriti Perdido, logo depois do São Marcos. Os touros bravios relutavam subir o barranco do rio pra adentrar o cerrado de Paracatu, de onde não sairiam jamais. Bastintim estava deitado com as mãos no peito, sangrando ofegante. Ferido a faca. Se fora bala, de há muito teria morrido. Malalá aproximou calma. Os olhos disseram tudo. Por Romulo Nétto - Escritor e Jornalista

Poemas de Os Deserdados da Sorte

39. Para o vivente que tem/ de espiar nas lonjuras/ a proximidade da comida/ a cegueira de um olho/ é pior que a cegueira das letras. 40. Um olho só lhe basta/ para enxergar a miséria do mundo. 28. Se lhe ardem os olhos/ pela fumaça tanta/ se lhe dói o estômago/ pela fome tanta/ se lhe incham os beiços/ pela sede tanta/ ainda haverá esperança/ Filisberto? Quanta?! 29. Nunca um salário teve/ nunca um natal festejou/ trapos - de roupas lhe servem -:/ de seu só o nome Filisberto/ recebeu honrou. Por Romulo Netto - Escritor e jornalista

sexta-feira, 7 de junho de 2013

PLUG

Ia indo, solitário, lendo estrelas, revendo sertões, decifrando esquecidas, mal-dormidas luas sem que vivalma, por pequenina fosse, ousasse acompanhá-lo. Ele um pobre favorecidamente reconhecido deserdado das sortes, que, no bom andar de seu esquartejado destino, punha a cara bexiguenta à prova dos murros e urros da molecada. Em sua ruamundo tudo girava pra trás. Ele buscava sempre passear na contramão da vida, enquanto nos pequizeiros, as pombas do bando reinavam. Se dizia sozinho. Mas de suzim mesmo só tinha um buriti perdido no meio da selvagem vereda azul que sorrateira sobreviveu entre morrotes agarrados ao descampado, onde o Urucuia resolveu beber as águas de fracotes riachos. Sentado sobre rachados calcanhares, escarafunchou unhas negras corroídas pelos pedregulhos, assuou duas vezes seguidas as narinas cabeludas, olhou vago pro céu assuntando as horas, sentindo pequena comichão na mão esquerda, ou foi na direita? O dedo indicador se torceu em contorcida dor de apertar gatilhos. Em sua paz mórbida, experimentou se renascer novamente no sangue derramado de próximos defuntos. Fosse pelo contrário. O sertão era sua roupa preferida. Nem o diabo travestido da mais faceira morena tomava sua atenção. Gastava horas magicando caminhos outras vezes regressos. O futuro não sabia como lidar com seus antecipados pensamentos. Era tão distraidamente perdido como se tudo não passasse de desafios pro tempo. De quando em quando se engabirobava esperando maduras cascavéis com intuito único de vê-las sofrendo, esperando despencar amarelado fruto que teimava resistência não cedendo nunca, antevendo de véspera que o chão daquele cerrado sempre foi sinônimo de morte. Logo ele viril patrão de seu desanonimado destino. Por certo jamais se cedera em angústias, mesmo quando a fome, a sede, o cercavam nas mais plenas voracidades. Acreditava que nascera pra se perder em derradeiras glórias encontradas nas bandas esquerdas do Urucuia ou, sabe-se lá, mesmo até nas próximas sofridas águas do desavisado Paracatu. Ele que nunca foi seu dono, agora, depois de tanto sol resvalando pelo velho chapéu furado se via possuído por senhor desconhecido. Viramundo. Vira-lata faminto, sanguinário. Porco sedento, desenfreado. Herói de machucados instantes. Um só que se busca no buscar dos outros, que se olha penetrando no terceiro olho do que nunca foi ou jamais será. Plug marcou sua vida sobre tantos destinos, pouquíssimos sóis, luas derradeiras. Descansou sob a sombra de esquecidos jatobazeiros, bebeu da água das pequenas cacimbas anfitriãs, jantou no descampado dos sertões milagreiros as carnes ensopadas de tatus encardidos pelos tempos imemoriais, sobressomados, sobreamassados por mandiocas amarelas de prenhez precoce. No sonhar de seu pesadelo príncipe, desejou mumificar todos os gostos como se o estômago satisfeito conseguisse reter o milagre da alimentação per omnia secula seculorum. Mal completara vinte e cinco anos, quando decidiu arranchar a vida perto de secular cumbaruzeiro que o tempo pariu esquecendo no pós-depois das terras do coronel Teodoro Fuquefuque. Fincou ali dúvidas, saudades, dores, lembranças, sonhos e ilusões. Mais que isso. Jurou de pés juntos sair dali só morto. Suzim, suzim mesmo, não arredaria um piscar de olhos. Bom pois! Assim fosse, se sucedesse. No quê! Ele, seus santos, entrecortados por imensa curriola de santas, desafiariam sertões, cerrados, no justo distribuir de sentenças sem defesas ou desavenças. Se somaram alguns penosos anos de solidão, até que Nhá Parteira perdida, ou pode té ser deixada de propósito, pôde descortiná-lo peladão, peladim nadando num vai-vem profundo nas foscas águas do Urucuia. Meio que desavisada, desavergonhada, gritou pelo moço implorando adjutório. Era de justa necessidade chegar o quanto antes nas terras de seo Izé Cabedelo onde assistiria Sinhá Mocinha em seu parto de difícil primeira parição. Um olho no tresoitão, outro meio que avermelhado na peixeira afiada, moveu o corpo vagaroso, mas acobertado de decisão. Ouviu os rogos da parteira, torceu a boca, coçou o subaco com a mão esquerda, deixando entender que a de bom uso estava livre. Peladão, peladim. Saiu das mornas águas como veio ao mundo, deixando seus balangandãs sacudirem ao ar em frenética música ancestral. Se pôs em guarda já sabendo que de graça ninguém chegava àqueles pagos. Antes, bem antes, de mirar os olhos de Nhá Parteira, pegou pequeno pedaço de fumo goiano do picuá, preciso, mas com vagar, cortou esparramando em seguida sobre a fina palha de milho. Olhou pro longínquo horizonte sobrefechando seu olho ruim, ao mesmo tempo em que enrolava o palheiro. Desatencioso, procurou seu binga no bolso da calça mesmo sentindo o peso sobre o coração. Acendeu o pito. Somente após sentir na cara a fumaça quente, o cheiro suave do fumo, se deixou conduzir pela trepidante conversa da alquebrada parteira. Ali lançara sua sina. Se conduziu ou foi conduzido pela contagiante conversa da velha-moça. Gastaram horas de perdidos sóis, enfraquecidas luas, até chegarem aos domínios de seo Izé Cabedelo. Três ou quatro homens descansados, de pronto, se ergueram quando ouviram os lamentos de Nhá Parteira. Pra eles naquela hora ela nem existia. Mediram de rabo a cabo o acompanhante. Relutantes, deixaram que o estranho seguisse em frente rumo à casa-grande. Deus e o diabo seriam testemunhas do que viria daí em diante. ROMULO NÉTTO - JORNALISTA PLUG - publicado originalmente no livro Tarenço, o Capanga de Lata - Carlini & Caniato Editorial

BEATO TERGISALO

Há muito tempo decidiu fazer jejum – de silêncio. Cinco anos ou mais sem proferir uma só palavra. Tudo começou quando deslizou sua canoa da primeira margem do Escuro Grande, sentindo que não adiantava mais sofrer. Não tinha nenhuma dor disponível no estoque para desativar o coração abalado pela perda da mulher e do filho assassinados em morna manhã pelo beato Tergisalo. Quem encontrou os corpos maltratados foi Nhacema. De susto, saiu em desabalada carreira gemendo, gritando como tivesse visto o tal, o dianho. A vila inteira acudiu ao escarcéu de louca; ninguém ousou acreditar no que os olhos viram. O pobrezinho todo estropiado, rasgado da goela até o umbigo num rasgão só. Era sangueira esparramada casa adentro, casa afora. No final da tarde, com a enxada sobre os ombros, ele chegou da rocinha. Admirou de ver aquele povaréu ao redor de seu casebre. Só pôde entender quando deparou com a mulher e filho estirados no jirau, de mãos postas, olhos fechados. Mal esperou o enterro pra se perder no mundo; os olhos juravam vingança, a boca nada dizia. Destrinchou Arinos, Buritis, subiu desceu as serras das Almas do Boqueirão, vasculhou pela Canastra, remou rio Verde abaixo, bandeando de João Pinheiro para o rio da Prata, caindo no córrego Rico, volteando pro Escuro Grande, onde sentou “praça” de barqueiro solitário em sua dor constante. Pescava o dia inteiro: pacus, dourados, piracanjubas; limpava, punha pra secar; esta sua moeda. Vendia ou trocava por sal, farinha, arroz de luxo passageiro, um naco de fumo de corda, café. Ninguém bulia com ele ou lhe passava a perna. Combinavam preço, tamanho, prazo. A encomenda certa no tempo exato. Tudo dentro de seus conformes: sua lei seca de palavras e gestos. Foi remando a vida como remava sua canoa pelas águas tranqüilas do Escuro Grande. O coração quieto sabia que a vingança tinha dia, hora marcados, questão de aguardamentos. Soube de conversas alheias que o beato Tergisalo passara pela Canastra, Retiro, Bocaina, mas pretendia se estabelecer com o bando de fanáticos nas Veredas, fazendona antiga de desdeixados donos mortos em morte duvidosa quinem o doutor delegado de Paracatu conseguiu descobrir autores ou mandantes. O coração sobressaltou desordenado causando sensações, inquietudes estranhas tidas-havidas como de tempos finais esquecidas. Sabe-se hoje estavam apenas adormecidas. Noite dia, dia noite escondidinho na caverna onde secava defumava seus peixes, ouvia o embrenhar dos jagunços do beato Tergisalo procurando seus rastros. Já se fizera de manhãzinha quando ouviu um chamado do outro lado do Escuro Grande. Não era barqueiro atravessador de gente, mas sabia como penava qualquer cristão que desejasse transpor o rio caudaloso naquele extremo. Não divisou acompanhantes. Pegou o remo; sua tralha de pescaria não saía nunca da canoa, nem a papo-amarelo escondida sob a surrada capa Ideal. Vinte minutos depois, estava ancorando na outra margem. — Dia! — Com o dedo apontado em riste mostrou onde o chegante se acomodasse. O outro falante declinou o nome: beato Tergisalo. O sangue se transformou em vulcão dentro do corpo. Todo o passado veio à tona. O beato indagou se as terras de Nhaporá ficavam praquelas bandas. Meneou a cabeça assentindo. Pra ouvir mais, arriscou oferecer um gole de cachaça. Tergisalo bebeu, aprovou. Soltou a língua. Destravado o falatório, Bitão escutou horrores. Como a mulher fora assassinada; os requintes de crueldade quando o beato dançando em círculos se empapuçava comendo o coração de seu filho. A margem pareceu-lhe um século para chegar. Sisudo, jogou as tralhas no chão e pegou a capa segurando sua arma encoberta. Num piscar de olhos, puxou a parabélum. Varou o joelho de Tergisalo que caiu uivando de raiva. Depois de cinco anos, recobrou a fala: — Este foi procê nunca mais andá! Atirou nas palmas das mãos; foi desfiando seu rosário de dores, quase a perder o fôlego, contou que a mulher e a criança mortas eram sua família. Tergisalo suspirou. Um suspiro profundo quando a última bala penetrou entre os olhos. ROMULO NETTO - JORNALISTA E ESCRITOR O conto Beato Tergisalo foi originalmente publicado no livro Contos dos Gerais. Carlini & Caniato Editorial

MOÇA NA BICICLETA

Costumeiramente, nós a víamos pedalando sua bicicleta Leão de pneus finos pelas ruas do Santana, Alto do Córrego, caminhos estreitos da Chapadinha. Na Direita, ela parava sempre pra trocar um fiapo de prosa com Julinha, Rosilene, Célia, Nira, dona Enedina e Preta. Era muito singela. Lavínia, embora fosse da família mais rica de Nasquebradas, carregava no sangue a simplicidade. Naquela manhã ensolarada, ela desceu da bicicleta e ficou especulando como tínhamos nos saído nas provas parciais. Segredou-me que estivera péssima em Matemática. Se esforçava pra compreender as explicações do professor Gesner, mas de nada adiantava. No segundo semestre, tinha que fazer média boa pra não ser reprovada, senão o destino seria o colégio São Domingos, em Araxá. Alguns minutos depois, Lavínia foi embora deixando-nos com o coração em frangalhos, acelerado. Também pudera. Estava vestida com um short minúsculo, deixando entrever que dispensava calcinha. Os bicos dos seios duríssimos apontavam em nossa direção como dois punhais. Corremos a turma toda pra casa grande, velha construção abandonada ao lado da Santa Casa de Misericórdia, e nos perdemos numa punheta que pareceu durar horas. Cada um de nós possuiu Lavínia inúmeras vezes em nossos sonhos. Loucuras de inverno prenúncio de primavera. Todos tínhamos vontade de convidá-la pra passear mas na hora “h” perdíamos o fôlego com medo de um não. Nunca saberemos se recusaria um convite. A sexta-feira amanheceu ensolarada, bonita. A Lyra Euterpe Nasquebradense, desde cedo, atacou furiosa com seus dobrados, marchas anunciando que o dia de São Cristóvão seria alegre, festivo com desfile de caminhões, charretes r carroças como acontecia todos os anos. Depois do café com bolo de arroz em profusão como tínhamos combinado, iríamos à rua Goiás assistir ao desfile; lá pelas nove, rumaríamos pro São Sebastião, onde pretendíamos passar o restante da manhã até a tarde. Vovô junto com Cadinho ficou encarregado de preparar as varas de pescar, iscas, faca, sal, farinha, matula e uma lata pra fritarmos os pescados. Quem sabe alguns piaus, na pior das hipóteses: no açudão havia uma fartura de piabas graúdas. Do Santana até o São Sebastião, caminhada pra mais de hora. Sempre a fazíamos parando à cata de alguma fruta, às vezes de um tatu, ou de uma preá que, com sorte, abatíamos: início de nossa farra juvenil. Aquele São Cristóvão não havera de ser diferente. No alto do céu azul despossuído de nuvens, o sol prometia brindar o dia com muito calor. Mais que isso, jamais sonharíamos. Juntos, buscamos nosso recanto: João Queijo, Vovô, Cadinho, Edvar, Anum-Branco, Izebeiju, Pexico, Robertim, e eu. As meninas pediram, insistiram, choraram, rogaram pragas tentando nos convencer a deixá-las nos acompanhar. Nem que não. A estrada era longa, as meninas só atrasariam nossa jornada. O sol estava a pino. Tiramos as camisas; as costas ardiam quando atingimos a porção norte do açudão. Era o ponto mais farto de piaus, piabas, além de guardar as pedras que transformávamos em fogão pra fritar ou assar peixes, nambus, tatus. Da estrada, viemos de mãos abanando. Restava a pescaria ou a descoberta de frutas; fome, porém, não teríamos, pois trazíamos na matula farinha, rapadura, alguns pães. Meia hora de pescaria. O jacá já estava quase cheio, pelo menos uns dez piaus que se debatiam movimentando de um lado pro outro aquele cesto de bambu deixado dentro d’água pra conservar vivo o pescado. De repente, ouvimos um grito. Quem achou primeiro a bicicleta, logo depois o corpo, foi João Queijo que preferia buscar frutas ao invés de dar banho em minhoca, como ele definia nossas pescarias sempre. Corremos todos. Lá estava ela nua. Os seios duros com sinais de mordidas selvagens; o sexo machucado, as pernas grossas torneadas longas manchadas de sangue. Os olhos expressando terror, incredulidade. A garganta com corte profundo. Nossa Lavínia morta, estuprada. Raspava os cabelos da parte de baixo em forma de estreito triângulo eqüilátero de cabeça pra baixo, pouca espessura, em olhar de relance acredito não mais que meio centímetro de altura. Apesar de machucada e morta, nunca vi Lavínia tão perdidamente linda. A lembrança de sua xandanga coberta por aqueles tênues fios de cabelo em forma triangular, até hoje decorridos mais de quarenta anos, não me sai da cabeça. Nem sei bem como reagimos. Decidimos que Queijo e eu iríamos correndo pra Delegacia. Mais de uma hora depois, chegamos com o coração na boca, o terror estampado na cara. Só conseguimos dizer: — Seo Adriles! Lavínia está morta na beira do açudão. Ele gritou pelo Cabo colocou-nos na traseira do Jipe e rumou pro local indicado, seguindo a estrada que conhecia de cor, salteado. Dez minutos depois, já estava examinando o corpo de Lavínia. Ao lado de um pé de caju do mato, encontrou pequena faca de cabo de chifre de boi. Apenas sorriu, pensando alto que o crime estava solucionado. Mandou-nos pra casa. O Jipe levaria o corpo de Lavínia pro necrotério do Hospital do Vale. Foi a última vez que vimos Lavínia. Faltou-nos coragem para olhá-la dentro do caixão... Romulo Nétto - jornalista e escritor O conto Moça na Bicicleta foi originalmente publicado no livro Contos dos Gerais, Carlini & Caniato Editorial.

É PROIBIDO LER - por Romulo Nétto

A notícia varreu os quatro cantos do País. O povo estava sendo chamado pra participar da grande marcha cívica em comemoração ao dia da Independência. Ninguém de sã consciência se atreveria a faltar a tão importante evento. As mães devotadas aos filhos começaram a costurar roupas de gala, queriam, todas elas, que seus filhos fossem eleitos os mais elegantes e bem vestidos. Até as pobrezinhas das favelas se esmeraram em aproveitar restos de panos e costurar vestidos, calças e camisas pra seus rebentos. Carros com sistema de alto-falantes foram esparramados por todos os bairros das cidades conclamando o povaréu a comparecer ao dia mais importante da República. O que o povo não sabia é que nos quartéis havia intensa movimentação conspiratória pra derrubar o governo. A crença era de que o presidente dera forte guinada pra esquerda e em breve adotaria o regime comunista. Os militares não podiam aceitar pacificamente a mudança de regime. Urgia uma tomada de posição e nada melhor do que conclamar o povo pra participar com toda sua energia. As ruas foram embandeiroladas de verde e amarelo, símbolo maior de amor à pátria. Das janelas das casas e dos prédios públicos despencavam enormes bandeiras do País. Os ânimos ferviam nas ruas. Nas câmaras de vereadores, assembleias legislativas e no Congresso Nacional oradores exaltados se alinhavam contra e a favor da marcha pela liberdade. Não encontravam o menor indício de mudança na condução do regime político, ninguém suportaria prisão perpétua, julgamentos sumários, deportação pra ilhas distantes, trabalhos forçados, tortura. Não! Essa ideia era inadmissível. Algo andava muito errado! Os coordenadores do movimento acertaram em cheio. O povão queria mesmo era pão e circo. A seleção brasileira de futebol foi convocada às pressas pra efetuar diversos amistosos, com inexpressivas agremiações do Caribe e da África. Estavam procurando tapar o sol com a peneira. Seo Miguelim, vendeiro de longa data, assíduo leitor de jornais, ouvinte contumaz da Rádio de Moscou, desconfiou daquela movimentação. Alisou seus bigodes e pensou em voz alta: Marx não será vencido! Acredito que era o único verdadeiro comunista no Estado, o resto era de enfeite, corria de uma ideologia pra outra de acordo com seus interesses. Ele não! Nunca abandonou a leitura das obras de Marx, embora não aprovasse o regime imposto por Joseph Stalin, depois seguido por Nikita Kruschev. Aqueles ditadores não conheciam os limites entre o dever do Estado e os direitos dos cidadãos. Eram criminosos comuns, investidos nos mais altos cargos do Comitê e não representavam a essência da doutrina marxista. A bodega de seo Miguelim não ficou ornada com a bandeira do Brasil, nem com bandeirolas verdes e amarelas. Tampouco colocou uma foice e martelo simbolizando sua crença. Fiel a seus princípios, mas amante inveterado das coisas brasileiras, não sairia defendendo, de armas nas mãos, comunismo ou democracia, fosse o que fosse esperava o melhor pro povo. Muitos tinham o mesmo pensamento que seo Miguelim, porém despossuíam a coragem explícita do velho bodegueiro. O que mais o assustou foi a movimentação na rodovia que cortava a cidade. Os caminhões com soldados fortemente armados, com alguns mísseis e tanques cruzavam a estrada rumando pra Capital Federal. Pra ele não se tratava meramente de simples comemoração do dia da pátria, mas da derrubada do governo legalmente constituído. Os dias passaram e os mais pequeninos povoados, cidadezinhas que mal se encontravam nos mapas, até as maiores capitais estavam engalanadas. O povo acorreu às praças em clima de festa e alegria incontidas. Nos edifícios milhares de pessoas começaram a jogar papel picado que caía em cascata simbolizando a adesão ao chamamento pra comemorar tão significativa data. Enquanto o povão aplaudia o desfile cívico-militar, na Capital Federal, as tropas das três forças cercaram o palácio presidencial forçando a renúncia incontinente do mais alto mandatário do País. Nas ruas das cidades com maior população os estudantes nem tinham acabado de exibir seus uniformes de gala quando a notícia extraordinária do principal jornal da televisão explodiu: — os militares acabaram de depor o presidente da República. Foi um período duro de transição. Milhares de jovens, mulheres, funcionários públicos, artistas, escritores, políticos e gente simples do povo acabaram atrás das grades ou em campos de futebol transformados em prisões. Estava implantado o regime de exceção. Os anos foram passados e a população acabou por conviver com a ditadura, mesmo sem entender a razão de tão drástica mudança. Alguns poucos formaram movimentos clandestinos de combate ao regime ditatorial e eram caçados ferozmente pelo que denominaram forças da repressão. Seo Miguelim ficou transtornado quando viu o pelotão policial se aproximar da bodega. Atrás vinha a multidão constituída pelos principais dependuradores de contas do seu pequeno estabelecimento comercial. Com o dedo em riste o apontavam e gritavam: — prendam ele! Ele é comunista! Vive falando de um tal de Karl Marx! – O velho bodegueiro se assustou com a ferocidade da turba, que semanas antes não deixava o balcão, passando horas ouvindo contar histórias acontecidas na época da Segunda Grande Guerra Mundial. Não representava perigo algum, senão pra seus devedores, pois que suas contas um dia seriam cobradas. Quem pensar que o calejado comerciante era bobo se enganou completamente. Guardou em lugar bem protegido todas as cadernetas, já antevendo que mais cedo ou mais tarde seria levado pra prisão. Quando saísse cobraria, de todos, com juros e correção monetária a divida, não pela dívida em si, mas pela falsidade! Os tempos passaram e os militares reconheceram que tinham cumprido, mais uma vez, seu papel na História. Decidiram convocar eleições pra vereadores, prefeitos, deputados estaduais, governadores, senadores e presidente. A maior parte da população achou que a notícia era brincadeira de mal gosto de repórter sem ter o que fazer, mas não! A Junta Militar que governava o País fez pronunciamento em rede nacional de teleisão comunicando que a missão estava concluída e que a democracia fora plenamente restabelecida. O assanhamento do povo foi geral. Em poucos meses o que mais se via pelas ruas eram santinhos espalhados pelo chão, enormes cartazes de candidatos, faixas enaltecendo fulano ou sicrano como o melhor candidato. Uma balbúrdia sem fim. Não piorassem as coisas porque os militares estavam de olho no procedimento dos civis e se necessário fosse interviriam novamente. Pra seo Miguelim, civil no poder significava corrupção e era o que mais temia. Dinheiro público destinado à Saúde, à Segurança Pública, à Educação e às tão necessárias obras de infraestrutura seriam desviadas, como sempre foram, para as contas de políticos nos maravilhosos paraísos fiscais e não havia um só promotor ou juiz federal capaz de enfrentar a máfia infiltrada nos governos. Não lamentou o tempo passado nos porões da ditadura. Lamentou isto sim, a volta ao poder dos velhos caciques que agora vinham com apetite redobrado. As acirradas campanhas eleitorais pra todos os níveis pipocavam exaltando todos os ânimos. Inventaram partidos que possuíam apenas dois ou três filiados. A perniciosa proliferação de siglas fora instituída pra mais tarde cobrar dos eleitos o preço do apoio. Em breve seria implantada a máxima de São Francisco: é dando que se recebe. E como os urubus da política receberiam! O País acordou em festa no três de novembro, dia da eleição. Cabos eleitorais emporcalharam as ruas e ruelas de todas as cidades, esparramando santinhos de seus candidatos, a grande maioria constituída por analfabetos, fichados na polícia por crime de corrupção. Mas o processo eleitoral era um vale-tudo incomensurável. Seis candidatos concorreram à presidência. Os dois mais bem votados disputariam o segundo turno. Com quarenta e quatro por centos dos votos, Asdrúbal Camaleão foi o candidato da oposição, antigo aliado do regime, ele pensava que era benquisto pelos militares. Em segundo lugar, com vinte e oito por cento ficou Marginaldo Sinfrônio. A bem da verdade o segundo colocado não era páreo pra Asdrúbal Camaleão, cujo nome já dava pra ter vaga ideia de sua esperteza. O povão estava atarantado com as promessas de Asdrúbal Cameleão. No primeiro ano de seu governo não existiria mais nenhum desempregado no País, todas as estradas seriam asfaltadas, construiria milhares de escolas e hospitais, importaria as mais modernas armas pras polícias, implantaria moderno sistema único de saúde pra população carente, coisa de fazer inveja aos países do primeiro mundo. Logo após sua posse não foi bem isto o que se viu publicado no Diário Oficial. Os ministros de Estado, escolhidos a dedos, eram notórios componentes das máfias que durantes anos desviaram milhões de dólares dos cofres públicos, mesmo inclusive no período da ditadura. Encontrar um indicado honesto em qualquer dos escalões do governo era tarefa mais difícil que achar uma agulha no palheiro. A outra grande surpresa veio estampada no Diário Oficial do segundo dia de governo. Um decreto determinava o fechamento de todas as bibliotecas públicas, sob a alegação de que todas seriam reformadas, enquanto o edital da maior licitação pra aquisição de novas obras estava sendo preparado. O jornal oficial não alcançava a grande massa, mas a televisão sim. Estarrecidos entrevistadores se postaram diante do palácio presidencial à cata de maiores esclarecimentos. Não havia engano. As bibliotecas estavam terminantemente proibidas de funcionar até que o processo licitatório fosse concluído e as obras entregues. Não havia a menor condição de recorrer, também não havia pra quem. Absurdos daqui, absurdos dali, e Asdrúbal Camaleão foi levando seu governo de desmandos, sem que acontecesse o menor esboço de resistência. O Congresso Nacional não estava engessado. Era simplesmente corrupto, fazia o que o presidente determinava quando as emendas eram liberadas. Sem emendas, sem dinheiro no bolso. A única reação nascia e crescia no seio das universidades federais. Indignados alunos e professores começaram a movimentar criando subterrâneo movimento de resistência. Alunos e professores dos ensinos fundamental e médio se aglomeraram ao redor da primeira grande manifestação contrária às atitudes de Asdrúbal Camaleão. Chamava constantemente o ministro da Justiça procurando encontrar brechas na lei pra enquadrar alunos e professores, sem sucesso, Era preciso editar um decreto, pois temia demora na aprovação de medida provisória. Tinha o Congresso nas mãos, mas não sabia até quando. E os desmandos continuaram assustando a população. Obras começavam e paravam mal concluídas as fundações. Nos hospitais públicos a falta de medicamentos e materiais pras cirurgias era uma constante. As estradas não suportavam o transporte das sucessivas safras de grãos, que batiam todos os recordes. Nas escolas, até mesmo nas universidades os alunos eram obrigados a levar suas cadeiras, pois os equipamentos públicos estavam em pandarecos. O crime organizado dirigia até os presídios de segurança máxima. Nas favelas os cadáveres de integrantes de facções rivais apodreciam. Os rabecões caindo aos pedaços não eram suficientes pra transportá-los pro Instituto Médico Legal e nem havia profissionais suficientes pra realização de tantas autópsias. Nos aeroportos o movimento era intenso, milhares de pessoas decidiram sair do País temendo uma guerra civil. Enquanto isto Asdrúbal Camaleão reinava impunemente. Inconformado com a queda de popularidade determinou o fechamento de todos os jornais e editoras, exceção feita ao Diário Oficial da União. Em sua extremada loucura mandou publicar no dia da Independência o lacônico decreto: Decreto número 2001. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere a Constituição da República Federativa do Brasil, DECRETA: Artigo lº – É proibido ler. Artigo 2º - Este Decreto entra em vigor na data de sua Publicação. Brasília, 7 de setembro de 2020, 208º da Independência, 131º da República. A indignação com o ato presidencial foi generalizada. Estivesse ladeado por assessores capacitados não teria cometido a mais tremenda de todas as suas burrices governamentais. As crianças do ensino fundamental foram as primeiras a repudiar o decreto. Incitaram os pais a rebelar contra a extremada medida. A revolta alastrou-se país afora. Nos dias seguintes a movimentação tomou corpo e milhares de ônibus rumaram pra Capital Federal. Aqueles pequeninos se sentiram ultrajados com a proibição da leitura nas escolas, nas pracinhas, em casa. Certo é que o governo não tinha como fiscalizar, mas só a truculência do aparato policial já era suficiente para inibir o prazer de apanhar um livro na estante e começar a lê-lo. Os mais importantes jornais do mundo estamparam nas primeiras páginas enormes manchetes e extensas reportagens expondo o terror implantado pelo primeiro presidente civil pós ditadura militar. A Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes ficaram pequenas pra abrigar tantas crianças que abriram suas faixas exigindo a renúncia do presidente da República. Elas não queriam a revogação do decreto, pois ardiloso como demonstrara ser, logo arranjaria outro meio de tentar amordaçar a população. Acamparam. Promoveram estardalhaço de tal magnitude que ninguém conseguia trabalhar, fosse nos ministérios, fosse no Congresso, no palácio presidencial ou no Supremo Tribunal Federal. O embate prosseguiu com o presidente tentando resistir ao pedido de renúncia. Os congressistas começaram a debandar, esvaziando a base aliada. Asdrúbal Camaleão se viu perdidamente só. No palácio não restou um só funcionário que fosse, mesmo o menos graduado. Apenas a secretária, que de quando em onde, servia seu cafezinho e as refeições que ela mesma preparava. E mais ônibus chegaram transformando as imediações da torre de televisão e o Palácio Buriti em acampamento. A criançada amadureceria ali, sem temer qualquer represália. Foram semanas de comoção até que, na única atitude sensata, Asdrúbal Camaleão optou por renunciar à presidência da República. Agora as crianças podiam voltar novamente a ler.