sábado, 8 de junho de 2013
OS DOIS
Os Dois
O susto do encontro durou apenas poucos segundos. Malalá notou que o estranho não oferecia nenhum perigo. Aproximou-se em passos lentos seguros, desconfiada. Pousou a mão no ombro esquerdo do ferido, que gemeu de dor. Perguntou pelo nome; sem esperar, disse o seu.
Com a mesma rapidez que tinha pra sacar a arma, imaginou que não deveriam permanecer ali por muito tempo. A peonada da Buriti Perdido não tardaria aparecer atraída pelo estrondar dos tiros.
Ajudou Bastintim a montar em seu cavalo rumando pra Mundo Novo. Naquelas paragens, cuidaria do ferimento. Avançavam durante o dia descansando à noite. Três dias de viagem, alcançaram os contrafortes da Serra da Aldeia. Passara diversas vezes em fuga pela localidade. Escolha perfeita. Encontrou pequena caverna onde preparou uma cama com folhas de árvores forrando em seguida com sua capa Ideal. Deitou Bastintim no leito improvisado, retirando a camisa ensangüentada. Não conseguiu desviar o olhar do peito musculoso do jagunço. Balançou a cabeça, se reprimindo. Apanhou duas balas da cartucheira, separou o chumbo; colocou Bastintim de costas, esparramou a pólvora sobre a ferida, atiçando fogo em seguida; urrou de dor talequal onça zagaiada. Repetiu a dose na ferida do peito, tomando cautela de colocar um pedaço de pau em sua boca, assim evitaria que ele mordesse a língua. Bastintim desmaiou. Aproveitou pra fazer uma maceração de ibatimô, cicatrizante do mato. Aprendera a usá-lo na pouca convivência que teve com sua avó Isaura. Velou por três dias e três noites o sono de Bastintim, passando a todo momento um pano molhado na testa, no rosto, no peito, pra acalmar a febre, retirando o suor que corria em bicas.
Bastintim delirou seguidamente, revelando casos, segredos inimagináveis. Pra ela, de pouca valia. Eram dois com a mesma vida de violência sanguinária.
No décimo dia, a febre cedera, mas Bastintim permanecia sonolento. Malalá o ajudava a se levantar pra fazer as necessidades; logo depois, caía em sono profundo. Não se fez de rogada. Afinal, era mulher virgem. Cautelosa, tirou sua roupa, alisou suavemente seu parangolê, sentiu leve reação; começou a chupá-lo vagarosa. Em poucos minutos, estava duro como mourão de cerca. Levantou a saia, tirou a calcinha, enfiou dois dedos em seu sexo pegando fogo; estava molhado. Apontou a cabeça pra dentro da xandanga engolindo o mastro em brasa de uma só vez. Esfregava os seios enquanto cavalgava o homem que instintivamente decidira comer. Gozou em golfadas suaves, eletrizantes; leve calafrio percorreu a espinha deixando-a inebriada, satisfeita: mulher.
Saiu de cima de Bastintim deliciada, vagarosa. Foi ao córrego, nadou demoradamente, relembrando cada momento. Preparou ensopado de bagres, amassou a carne fazendo um caldo grosso. Forçou Bastintim a comer um pouco. Estava faminta. Repetiu duas vezes, deitou ao lado do seu homem, adormecendo em seguida.
Na manhã seguinte, continuou na rotina. Pescar, armar arapucas, fazer almoço, janta. Escurecendo, acendeu a fogueira que os aqueceria noite afora. Arrancou com os dentes a rolha da garrafa de pinga, sorveu graúda talagada. Bastintim dormia ou fingia que. Descobriu o corpo de seu cobertor seca-poço, mordiscou os bagos, caiu de boca no cacete, que logo endureceu. Engoliu pela segunda vez o mastro em brasa. Agora tinha certeza de que este era o homem de sua vida. Cavalgou mais de meia hora rebolando fazendo o membro entrar sair com fúria. Segurou o gozo enquanto pôde. A explosão aconteceu. O corpo tremeu. Seu sexo mais parecia fogueira, os seios duros doíam como tivessem sido mordidos. A boca seca ansiava um beijo. Calma, saiu de cima do macho, tombando em sono profundo. Bastintim assistiu a tudo acordado. Olhou o traseiro da mulher iluminado pelo clarão da fogueira, arremessou todo peso do corpo em cima de Malalá penetrando de uma só estocada. Os dois rolaram na cama até o sol raiar, enchendo a caverna com o cheiro dos amantes.
O esconderijo em Mundo Novo não oferecia segurança; muitos caçadores, pescadores, acostumados com a fartura dos ribeirões, faziam acampamento durante o ano inteiro um risco que os dois não podiam nem pretendiam correr.
Com Bastintim restabelecido, norteou pra Cangalhas. Encontrou pequeno sítio próximo ao Ribeirão do Carmo. Ficara com o dinheiro da primeira parcela a ser paga pelo gado. Sua recompensa. Adquiriu no vilarejo uma carroça, mantimentos, enxadão, pá, picareta, facão, martelo, prego, outras bugigangas úteis na reforma do casebre; não se esqueceu de uma cama larga com colchão acolchoado; com Malalá, começaria nova vida, longe da jagunçagem.
Desmontaram as duas papos-amarelos, as parabéluns, os colts de cano curto. Limparam peça por peça, engraxaram com cuidado; remontaram, colocando as armas em lugar seguro, mas de fácil alcance. Nunca se sabe quando precisariam delas, mormente por terem matado tantos.
A terra prometia ser boa pro cultivo de milho, feijão, hortaliças. Abriram pequeno roçado. Findada a chuva, as sementes brotaram causando alegria aos dois. Anteviam fartura. Gastaram algumas semanas até comprar boa vaca leiteira. Construíram, próximo à casa, o paiol onde armazenariam milho, feijão, arroz.
Estavam descobrindo a verdadeira razão de viver em paz. Assim decorreram os três primeiros anos na vida do casal.
Numa manhã, Malalá acordou enjoada, vomitando, sentindo repulsa de seu homem; não podia sentir o cheiro que desandava a enxotá-lo de casa; descobrira finalmente seu estado de gravidez. Tempos difíceis pra Bastintim, acostumado a receber, dar prazer. Resistiu à prenhez de Malalá. Na aproximação do aniversário, a mulher sentiu contrações; assustado, foi pra Cangalhas, retornando no dia seguinte com Tiana parteira.
Malalá entrou em trabalho de parto no final da tarde. À noitinha, tinha parido bela menina de olhos azuis; Malalá decidiu chamá-la Josefa. Tiana disse que viria outra criança. Meia hora depois, novas contrações. De repente, um berreiro só. Nascia menino-macho. O nome do menino ficaria a cargo do marido. João. Mal tiveram os umbigos amarrados, os dois buscaram os peitos cheios de leite da recém-parida. Felizes, mamaram até cair no sono. Malalá observou o resguardo como recomendara Tiana parteira: nada de comida remosa, banho frio no ribeirão, rigorosa abstinência de sexo. Mesmo quisesse, os cuidados dispensados aos filhos a deixavam cansada demais pra mergulhar nesses assuntos. O casal vivia agora vida de gente de bem, longe do passado próximo, carregado de ódio e turbulências.
Josefa, João cresciam a olhos vistos. Completaram nove anos.
Numa das poucas andanças por Cangalhas, Bastintim ouviu de longe falar do Coronel Zaú. Apurou os ouvidos. A vida da família corria perigo. Nem tudo era como parecia ser. Em casa, contou seus assustamentos pra Malalá. A proteção dos filhos não saía da cabeça; foi quando acharam chegado o momento de ensiná-los a atirar. Munição farta escondida no paiol; pegaram as armas que causavam menor impacto ao atirar; criaram alvos. À medida que passavam os dias, foram diminuindo de tamanho. As crianças não sabiam ao certo a razão daquela mudança repentina. Logo porém se apegaram ao manuseio das armas; viviam pra cima, pra baixo com elas nas cinturas.
No natal foram assistir à missa do galo em Cangalhas, como faziam todos os anos.
João perambulou pelos botecos à procura de sorvete. Na venda de Seo Fulô achou o que procurava. Ou mais. Ninguém o conhecia; talvez por isso mesmo, a conversa dos adultos tenha corrido tão solta, descontraída. Ouviu detalhes sobre as andanças de Olhos Azuis, cuja descrição batia perfeitamente com sua mãe: verdadeiro retrato falado. Nas conversas paralelas, ligou Malalá a Olhos Azuis, o jagunço musculoso, a Bastintim. Seus pais eram criminosos sanguinários. Não teve estômago pra continuar escutando a conversa. Cambaleando, procurou a irmã, detalhando tintim por tintim tudo que ouvira. Nessa noite, nem apreciou os cânticos da missa, tão perdido estava em seus pensamentos. Os dois se fecharam em conchas; no amanhecer, mal tocaram nos presentes colocados nos sapatos ao pé da cama.
Levantaram. Lavaram a cara, escovaram os dentes, tomaram café, municiaram as armas. Saíram pela porta do fundo. Deram volta; a porta da frente escancarada. Josefa sorriu atirando duas vezes no peito de Malalá. João mal fez mira pipocando bala certeira na cabeça do pai. Os dois. Tomaram gosto pela coisa... Relembranças.
Por Romulo Nétto - Jornalista e Escritor
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