domingo, 9 de junho de 2013

VENDETA

As ruas estreitas da cidadezinha histórica foram seduzidas por grossa camada de asfalto, o mesmo aplicado na rodovia que rumava do Rio de Janeiro pra Brasília. Paracatu era apenas mais uma entre tantas outras localidades encravadas na passagem da BR-040. Os aventureiros não arriscavam demorar mais que algumas horas. Além do pouco casario colonial, igrejas barrocas pedindo a Deus pra serem demolidas, o lugar só tinha pra oferecer dois ou três butecos, o puteiro da Praça da Distribuidora, açougues, vendas e o bordel de Ferreirinha. Não estava preparada pra receber os visitantes que fatalmente chegariam aos montes quando Brasília fosse declarada Capital Federal. O dinheiro aqui era escasso fruto de pequenas lavouras, aluguel de casas caindo aos pedaços, garimpo dos muito ricos fazendeiros de cria recria de bois que sempre eram levados pra Barretos. Somavam-se a eles os afortunados funcionários públicos dos Correios, da Coletoria, e professores do Colégio Estadual. O resto era pobreza que nem tinha linha de separação. Papai era afortunado. Funcionário dos Correios, tinha por profissão guarda-fios. Cuidava de uma distância de trinta quilômetros saindo de Paracatu rumando pra Uberaba. Sua responsabilidade consistia em limpar semestralmente dois metros à esquerda, dois à direita de toda a extensão por onde desembocavam os postes de seu trecho, fazendo um aceiro. Ainda que funcionário público, o salário mal dava pra cobrir os gastos com a família. Fazia bicos como carapina, depois comprou uma máquina pra lixar, sintecar assoalhos, tacos. Não era rico, mas não deixava faltar carne, verduras, legumes, até bacalhau, na Semana Santa e no Natal em nossa mesa. Acompanhava pelo Correio da Manhã o que acontecia no país e no mundo. Via com bons olhos a chegada da STER, companhia responsável pelo asfaltamento da BR-040. Olhar bem diferente do nosso, pois os trabalhadores da grande empresa despertavam a atenção das moças casadouras da cidade. Havia prenúncio de prosperidade. Os Botelhos, donos da metade do dinheiro circulante na cidade, anteviram o futuro, construindo na rua Goiás o primeiro hotel: Walsa. Paracatu já era parada obrigatória para todos que buscavam Brasília, que fervia na sanha construtora do presidente Juscelino. Nossa terra estava fadada a sair do esquecimento. O Repórter Esso anunciou que Brasília seria inaugurada em vinte um de abril em homenagem a Tiradentes. Os Botelhos, mais uma vez, previram o futuro. O Walsa Hotel não seria suficiente para receber tantos turistas que debandariam de seus Estados rumo ao Planalto Central para assistir à inauguração da capital. Decidiram construir o Hotel Presidente. Vez por outra, nós, alunos do Colégio Estadual Antonio Carlos, subíamos a avenida Deputado Quintino Vargas até alcançar a Olegário Maciel, onde o Presidente estava em construção. Fazíamos alguns biscates, quando ganhávamos poucos trocados, mas suficientes para saborear sorvete no bar do Jóquei Clube. Quinze ou vinte dias antes da inauguração da capital federal, o Hotel Presidente estava pronto para receber visitantes: deputados, senadores, jornalistas, daqui ou das estranjas. Nós passávamos pela entrada sem ousar adentrá-la. Seríamos escorraçados pelos recepcionistas, muitos dos quais nossos vizinhos ou ex-colegas de escola. Pra nossos olhos, que não conheciam nada além do que os filmes do Cine Paracatu nos mostravam ou imaginávamos pelas novelas da Rádio Nacional, um luxo. Dizem que tinha copo pra água, vinho ou bebida destilada, um diferente do outro. Coisa de louco pra nós daquelas Gerais, acostumados a comer no mato em lata de goiabada, beber da água na concha das mãos. Inaugurada a capital, debandados os das estranjas, os daqui, o Hotel Presidente nem não ficou jogado às traças e baratas. Primeiro chegaram e se aboletaram num quarto que eles chamavam de apartamento, os irmãos franceses Cornier. Entendidos de som como o quê. Logo, sentiram que no hotel não realizariam suas experiências. Precisavam de espaço amplo sem preocupação de incomodar a vizinhança. Foi na casa deles que, pela primeira vez, ouvi um tal de som estereofônico. A maquininha separava tudo. Eu podia ouvir violão, violoncelo, piano, voz, cada um por sua vez. Mas o Hotel Presidente continuava lá, bem defronte da rua que despencava da BR-040 como fosse continuação do posto de gasolina de Walter Neiva. Dali, olhava-se pro futuro ou menormente o mundo que rodopiava naquela estrada invasora da tranqüilidade cerradesca das Gerais. Um dia, ele chegou suando às bicas mal descido do automóvel. Na recepção, mostrou os documentos. Pagou por mês. Só disse: — Buon giorno! Duas horas depois, já estava esparramado sobre a cadeira de descanso na calçada do hotel. Camiseta branca sem mangas, calças de caubói cortadas até o joelho grosso, trancelim de ouro pendurado no pescoço, relógio dourado no pulso esquerdo, chapéu branco de abas largas, um jornal nas mãos. Gastei semanas pra decorar o nome: Corriere della Sera. Eu o via com o jornal entre as mãos, mas como saber se dia após dia era o mesmo? Nem por sonho adivinharia em que língua estava escrito. Mas houve um dia em que fui mostrar meus iniciantes poemas pras sobrinhas de tio Luiz no centro espírita que ficava ao lado do Hotel Presidente. Tropecei no pé do homem. Ele levantou num só pulo. Esbravejou na língua dele. Emudeci. Enfiei o rabo no meio das pernas e escafedi. Demorei quase um mês pra passar novamente perto do Hotel Presidente. Numa sexta-feira à tarde, o reencontro aconteceu. Estava sentado na cadeira de descanso com seu surrado Corriere della Sera. Quando me viu se levantou, pediu-me para arranjar uma puta. Disse o nome, colocando em seguida uma nota de cinco cruzeiros em minhas mãos. Fui pro bordel de Ferreirinha, indaguei por Diva. Disseram que ela estava na praia do Vigário. Com o coração apertado, saí em desabalada carreira. Quando cheguei na praia, lá estava ela deitada sobre uma toalha branca, o que ressaltava ainda mais sua cor. Nua como viera ao mundo. Pernas, coxas longas bem servidas de carne, seios lindos, xandanga totalmente raspada deixando à mostra aquele sexo rosado parecendo um bibelô, tamanha a formosura. Meu pinto endureceu. Tentei arrumá-lo pra que não percebesse minha excitação. Falei do recado do italiano. Agora, já sabia de onde era: da Sicília. Se levantou pedindo para ajudá-la com as roupas. Colocou com graça a calcinha, o sutiã, olhou maliciosamente pro meu pinto perguntando se já tinha fodido alguma vez. Disse que, se o pagamento do italiano fosse bom, me ensinaria. Quase nem achei o chão pra pôr meus pés. Minha cabeça foi às nuvens e voltou. Eu? Trepando com Diva a puta mais linda do noroeste das Gerais! Só mesmo em sonho. Os encontros continuaram a cada quinzena. Sempre ia encontrar com Diva na praia do Vigário, ficava me remoendo de ciúme sabendo que o italiano comia a mulher de meus sonhos juvenis. Se estava satisfeita não sabia, pois não dava sinais de cumprir o trato, proporcionando minha primeira transa. Mas só o fato de vê-la nua, de onde-em-onde permitindo que tocasse os seios, os chupasse, já bastava. Houve uma vez que me deu um beijo na boca tão demorado provocando uma zonzeira, tremedeira pior que as das febres quando as amígdalas se inflamavam. Era praticamente seu cãozinho de guarda. O italiano ó! Só que trepava. Um dia contei as gorjetas economizadas, ofereci pra ela. Disse não. Pegou minha mão, escolheu um dedo, pôs no seu sexo, beijou minha boca tirando minha roupa, segurou meu pau duro, engoliu de uma só vez. Gozei na hora. Limpou a porra que escorria pelos lábios, perguntou se gostara. Fomos pro Hotel Presidente. O italiano disse pra buscá-la na próxima sexta-feira treze. Não gosto de sexta-feira treze, principalmente quando é agosto. Mas trato é trato. Ganhava uns trocados pra isso. Na tarde da marcada sexta-feira, soprava um vento frio, o sol brilhava sem esquentar. Mês do cachorro doido, das ventanias. Subi a Quintino Vargas desapressado: quando dobrei a Olegário Maciel vi que, defronte do Hotel Presidente, havia uma pequena multidão. Alonguei os passos. Levei um baita susto quando vi o italiano caído com um buraco na testa, outro no coração. O delegado fez perguntas. Ninguém viu ninguém, ouviu nada. Hoje, acredito que foi mais uma vendeta da máfia italiana. Depois da morte de Domenico, nunca mais fui à praia do Vigário ou passei pela porta do bordel de Ferreirinha, mas guardei na memória enquanto pude o corpo escultural de Miss Brasil de Diva, a mais bela puta que meus olhos viram. Por Romulo Nétto - Jornalista e Escritor

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