segunda-feira, 24 de junho de 2013

SINHÁ MOCINHA

Desde piquititita era da pá-virada ou nascera com. Andava acompanhada pelos moleques mais sacanas e pervertidos. Um pouco mais crescida não mudou a preferência. Quanto mais maltrapilho, vagabundo ou desqualificado mais se identificava. Seus amigos não podiam demonstrar nenhum pitaco de bondade. Quem recaía praticando amores, agradecimentos, era banido de seu bando. Passou por colégios internos em Paracatu, Patos, Araxá, Uberaba, Uberlândia, sendo expulsa de todos nas primeiras semanas de aula, antes de completar doze anos. Aos treze ameaçou matar siá Genésia porque não tinha um xixi de segurar, mas rachadura estranha no meio das pernas. Aos quatorze mudou de comportamento no completo. Uma manhã de agosto entrou arrepiada na cozinha da casa-grande. Siá Genésia, como de costume, comandava as cozinheiras. Sem que ninguém esperasse, tascou a pergunta desconcertante. Queria porque queria uma resposta. Não arredaria pé. Fez a mãe ajoelhar diante do fogão talequal faria se estivesse defronte do altar-mor de sua igreja preferida, prometendo jura eterna. Veio a questão arrodeada de elogios. Já que pr’ela a mãe sabia tudo, então verborragiu de pronto, sem pestanejos, indagando o que o bom Deus colocaria no mundo em lugar da música. O inesperado da pergunta deixou siá Genésia quase tontificada, a não ser pela mão rápida em pegar graúda colher de pau desfechando dolorosa bordoada na cabeça da atrevida. Dali pra frente Sinhá Mocinha não mais dirigiu olhares ou palavras pra siá Genésia. Emudecera de inteiro. De sua boca, na casa-grande, não se ouviu mais uma palavra até as férias, quando conheceu Gregório Tomba-Tomba. Se viu coberta de profunda apaixonite juvenil. Quando o traste aparecia na Goiás, cabelo emplastado de gumex, blusão de napa preta, golas alevantadas, ela suspirava profundo, enrubescia, molhava a calcinha, as mãos tremiam. O mundo parece que vinha abaixo. Calor imenso tomava conta de seu corpo, mal se aguentava sobre as pernas. Eta mundão sem porteira, diriam os mais velhos. Ela só que olhava, e fugia correndo pra dentro do sobrado. Um dia ele se aproximou de surpresa, com ramalhete amarrotado de onze-horas, suando bicas. Indefesa, Sinhá Mocinha não teve forças pra correr. Nem achou chão. Tremia como vara verde em tarde tempestuosa. Quando menos esperava se viu agarrada. O moço estranho tascou intenso desentupidor de pia na boca. Longo beijo quase a fazendo perder o fôlego. Escândalo generalizado deixando todo mundo boquiaberto. No outro dia não se falava em outra coisa senão na beijação espalhafatosa que Gregório Tomba-Tomba deu em Mocinha desesperando te todo em todo Belarmino B. Ninguém daquelas bandas pode negar que Tomba-Tomba tinha topete. Menos de semana depois, a notícia chegou até a casa-grande. Furiosa, siá Genésia, mais que Izé Cabedelo, mal selou a montaria, se despachava pra cidade. Não quis conversa. Arrastou Sinhá Mocinha pelos cabelos, arrebanhou as outras meninas rumando pra fazenda. No caminho um latinório sem fim. Mocinha, desmilinguida, desconfortada, muda, mal ouvia o que siá Genésia gritava. Nem assim as palavras ousavam sair de sua boca. Do jeito que deixara o sobrado chegou na casa-grande. Parece que até os cachorros foram proibidos de festejar a chegada. A casa parecia velório de tristeza sem medida. Só Izé Cabedelo se via contente com o desafio imposto pela filha. Siá Genésia de há tempão precisava enfrentamento daquele tamanho. Não podendo agradar o destempero da filha, se fez feliz por rir-se por inteiro, por dentro, enquanto amaciava uma folha de milho pra preparar o pito que acenderia prenhe de satisfações. Genésia o esconjurava arrematando que riria em grandes gargalhadas chegando o fim daquele acontecimento. No que derradeiramente talvez pudesse acobertar-se em razões. Os dias passaram depressa como os carneirinhos que a gente conta no céu, de noite, pra chamar o sono. As férias acabaram pra meio sossego de siá Genésia. Parece que nem bem Sinhá Mocinha voltara pra capital, estava novamente em casa. Era costume de Izé Cabedelo festejar Santantônio atrasado toda vez que Mocinha vinha pra fazenda nas férias de meio ano. Foi como encontrou seu modo de compensar a filha que sempre perdia a semana dedicada ao santo padroeiro da Lua Cheia, principal herdade sua deixada por dona Nhaiá, mãe falecida de saudosa memória. Após mais de três anos em completo jejum de palavras, uma mágica e morna manhã Sinhá Mocinha contestou siá Genésia. A mãe reprimindo corriqueira tarefa de Menina Morena, aprendiz de cozinheira ah! não. Sinhá Mocinha rápida, rasteira, corrigiu dizendo ser anão um homenzinho, pessoa qualquer que se recusara a crescer. Foi gargalhada geral, motivo de lágrimas encachoeiradas, renascendo alegrias na família, promovendo novas festanças na Lua Cheia. A notícia correu mundos e fundos. Chegou até ouvidos surdos, quando tinha necessidade, de Gregório Tomba-Tomba. Lá na fazenda o rasta-pé arrancaria todos do sério, prolongaria por dias, quem sabe semanas. Sua hora tinha por fim madrugado. Quando a cidade anunciou o esvaziamento, já sabendo cada um sua ausência de eterna lembrança na mente de Izé Cabedelo, Gregório Tomba-Tomba aboletou na primeira carroça com vaga confortável, ele não nem era de pôr sua bunda em qualquer madeira. Seus traseiros careciam de confortos. Foi o que achou na condução de Nhô Bernardes, velho fofoqueiro que logo o reconheceu e tão logo se prometeu colocar em silêncio eterno, desde que fosse conhecedor dos segredos por acaso nascentes dendiante. Eis que somente ele poderia esparramar qualquer boato surgido pela chegança em surdina de Tomba-Tomba. Trato feito, seguiram parceiros, como fossem eles de antanhos conhecimentos. Trocaram longos goles de pinga, confidências que no futuro renderiam a Gregório Tomba-Tomba encontros amorosos, furtivos com as mais recatadas viúvas ou senhoras bem-casadas. Sua sede não tinha limites. A delas também. No que deu. Fudeu-se. Não ele, que saiu ileso, mas elas que arreganharam as pernas, abriram xuranhas. Como Divina explicaria ao Nego Bastião que o filho lá deles era loirim, loirinho da silva, se não trepara com outro. Por dúvidas, até que pudera ele pensar que o façanhoso autor daquele filho fosse Frei Norberto, vindo das Holandas para empacificar as brigas no Vale do Urucuia. Mesmo assim havera traição a ser punida com morte. E as outras? As outras como ficariam? Com chifres ou reticentes, inconformadas e irrespondíveis respostas? No que ele garanhão dos cerrados dos Gerais nem sequer sonhara. Seu divino pau duro só queria mesmo encontrar buraco fofo pra adormecer, sonhar com seus cansados anjos. Mal chegaram na primeira cancela da fazenda, Gregório Tomba-Tomba descresceu em antigos agradecimentos e reverências. Antes bem de ser respostado já se pôs longe, modo não ser reconhecido. Ele que viera pra ser avistado preferiu buscar outros pagos, que bem eram ali ao lado, quase no final da casa, aos próximos do monjolo onde, em adonde, o barulhar da roda-d’água, o martelar constante no vai que vem das estranguladas peças daquela máquina de antigo uso encontrou guarida. Mal a festança esquentou, ele atacou, praticando seu modo de agir, fatal certeza de ser sedutor irresistível. Naqueles sertões nunca se houvera nascido um tão tremendo filho da puta conquistador. Todos concordavam sem relutança. Sinhá Mocinha enlouqueceu peões peados, velhos coronéis que mal se mantinham sobre as pernas, moças recém-liberadas, prontas pra experimentar a novidade do sexo entre iguais. Tudo na mais perfeita liberdade, que nos cerrados até a aberração parece normal. E ele ali na escuita, na espreita, esperando vagar seu momento de ataque. Nem bem fora assuntadamente combinado, o final se aconteceria por igual. Num cochilo de Belarmino B., Gregório Tomba-Tomba se aproximou silencioso, por detrás, enlaçando Sinhá Mocinha, fungando no seu cangote, causando arrepios, mais que desfalecendo, semimorta de amores e destemperos, ela em sua virginal inocência se deixou levar pelos beijos ardentes do homem sonhado pra companheiro de uma vida inteira. No crescer das luzes, no justo momento em que peões atiçavam as brasas colocando mais angico-vermelho sobre o tapete ardente, foi em daí que a visage tomou corpo, projetando Sinhá Mocinha e Gregório no mais fogoso dos agarramentos. Vendo entre a fogueira o povaréu aplaudindo aquele teatro muquetrefe, Izé Cabedelo teve um treco, ficou meio zureta das cabeça, saiu às tontas chamando o diabo de Deus, e Nosso Senhor Cristo Jesus do coisa dos avessos. Perdera porcertamente sua inteira razão. Belarmino B. puxou as armas atirando pro alto. Num salto de sapo-cururu Gregório Tomba-Tomba sumiu na imensidão do escuro, enquanto todo mundo, cada bicho de dois pés acudia siá Genésia loucamente desmaiada por desesperos de suposta avozice prematura.

Nenhum comentário:

Postar um comentário