sexta-feira, 7 de junho de 2013
BEATO TERGISALO
Há muito tempo decidiu fazer jejum – de silêncio. Cinco anos ou mais sem proferir uma só palavra. Tudo começou quando deslizou sua canoa da primeira margem do Escuro Grande, sentindo que não adiantava mais sofrer. Não tinha nenhuma dor disponível no estoque para desativar o coração abalado pela perda da mulher e do filho assassinados em morna manhã pelo beato Tergisalo.
Quem encontrou os corpos maltratados foi Nhacema. De susto, saiu em desabalada carreira gemendo, gritando como tivesse visto o tal, o dianho. A vila inteira acudiu ao escarcéu de louca; ninguém ousou acreditar no que os olhos viram. O pobrezinho todo estropiado, rasgado da goela até o umbigo num rasgão só. Era sangueira esparramada casa adentro, casa afora. No final da tarde, com a enxada sobre os ombros, ele chegou da rocinha. Admirou de ver aquele povaréu ao redor de seu casebre. Só pôde entender quando deparou com a mulher e filho estirados no jirau, de mãos postas, olhos fechados.
Mal esperou o enterro pra se perder no mundo; os olhos juravam vingança, a boca nada dizia. Destrinchou Arinos, Buritis, subiu desceu as serras das Almas do Boqueirão, vasculhou pela Canastra, remou rio Verde abaixo, bandeando de João Pinheiro para o rio da Prata, caindo no córrego Rico, volteando pro Escuro Grande, onde sentou “praça” de barqueiro solitário em sua dor constante. Pescava o dia inteiro: pacus, dourados, piracanjubas; limpava, punha pra secar; esta sua moeda. Vendia ou trocava por sal, farinha, arroz de luxo passageiro, um naco de fumo de corda, café.
Ninguém bulia com ele ou lhe passava a perna. Combinavam preço, tamanho, prazo. A encomenda certa no tempo exato. Tudo dentro de seus conformes: sua lei seca de palavras e gestos.
Foi remando a vida como remava sua canoa pelas águas tranqüilas do Escuro Grande.
O coração quieto sabia que a vingança tinha dia, hora marcados, questão de aguardamentos. Soube de conversas alheias que o beato Tergisalo passara pela Canastra, Retiro, Bocaina, mas pretendia se estabelecer com o bando de fanáticos nas Veredas, fazendona antiga de desdeixados donos mortos em morte duvidosa quinem o doutor delegado de Paracatu conseguiu descobrir autores ou mandantes.
O coração sobressaltou desordenado causando sensações, inquietudes estranhas tidas-havidas como de tempos finais esquecidas. Sabe-se hoje estavam apenas adormecidas.
Noite dia, dia noite escondidinho na caverna onde secava defumava seus peixes, ouvia o embrenhar dos jagunços do beato Tergisalo procurando seus rastros.
Já se fizera de manhãzinha quando ouviu um chamado do outro lado do Escuro Grande. Não era barqueiro atravessador de gente, mas sabia como penava qualquer cristão que desejasse transpor o rio caudaloso naquele extremo. Não divisou acompanhantes. Pegou o remo; sua tralha de pescaria não saía nunca da canoa, nem a papo-amarelo escondida sob a surrada capa Ideal. Vinte minutos depois, estava ancorando na outra margem.
— Dia!
—
Com o dedo apontado em riste mostrou onde o chegante se acomodasse. O outro falante declinou o nome: beato Tergisalo. O sangue se transformou em vulcão dentro do corpo. Todo o passado veio à tona. O beato indagou se as terras de Nhaporá ficavam praquelas bandas. Meneou a cabeça assentindo. Pra ouvir mais, arriscou oferecer um gole de cachaça. Tergisalo bebeu, aprovou. Soltou a língua. Destravado o falatório, Bitão escutou horrores. Como a mulher fora assassinada; os requintes de crueldade quando o beato dançando em círculos se empapuçava comendo o coração de seu filho. A margem pareceu-lhe um século para chegar. Sisudo, jogou as tralhas no chão e pegou a capa segurando sua arma encoberta. Num piscar de olhos, puxou a parabélum. Varou o joelho de Tergisalo que caiu uivando de raiva.
Depois de cinco anos, recobrou a fala:
— Este foi procê nunca mais andá!
Atirou nas palmas das mãos; foi desfiando seu rosário de dores, quase a perder o fôlego, contou que a mulher e a criança mortas eram sua família.
Tergisalo suspirou. Um suspiro profundo quando a última bala penetrou entre os olhos.
ROMULO NETTO - JORNALISTA E ESCRITOR
O conto Beato Tergisalo foi originalmente publicado no livro Contos dos Gerais. Carlini & Caniato Editorial
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