sexta-feira, 14 de junho de 2013

DIDÃO

Já fazia calor quando os primeiros raios de sol pincelaram com aquarela davinciana as poucas nuvens que pairavam mansas por sobre as águas verde-lodo do São Marcos, meio Gerais, meio Goiás. Arreliado, Didão fincou os pés no chão ainda encharcado pela última chuvarada. A cara vermelha pegando fogo de tanta raiva provocada por sandices de Zé do Corgo. O patrão pegou corda acreditando que logo ele, Didão, pau-pra-toda-obra, pudesse ser um vendido traidor a cuspir no prato que sempre comera do bom, do melhor. — Nhor que não! Juro por meu santim que não fiz nada. Sou apenas amansador de burro brabo. Monto nele sem medo, quebro o freio com força uma vez pras esquerdas outra pras direitas, enfio o esporão nas ancas que é pra ele distinguir quem está no comando. Na segunda montada, só um leve toque na garupa, puxãozinho no freio, nadica de nada, um pitaco, ele obedece sem zanga, sem sofrer cansaço. Assim venho amansando cavalos, burros desde que me entendo por gente, sempre nas terras secas do meu patrão – Coronel Elesbão. Nhor que não! Sou lá homem de fazer essas criaturas do bom Deus padecer na ponta da espora? Tudo são invencionices. Ciumaria de quem não sabe pelejar a vida botando olho gordo no bem querer dos corretos. Quem não se lembra de quando folguei a peonada vesprando Santantônio? Todo mundo desembestou rumo a Ingazeiras dando tiros ao léu, invadindo o povoado de uma rua só, escandalizando recatadas mulheres ou ainda quando um peão desaforado agarrou à força Rosinha, finura de moça-donzela de bons costumes, tão recolhida em seus pudores que só deixava à mostra as mãos finas delicadas – verdadeira pintura –, os pés além do rosto dono de dois olhos verdes mais verdes que broto de capim navalha após a primeira chuva primaveril. Logo ele que pra manter as aparências apoiou a greve de dona Orobó, mulher do vendeiro Chico Fumaça, maior autoridade de Ingazeiras quando cismou que não queria ter as casas com as portas dando de frente pras das muié-damas. Brava, decretou greve, obrigou todas as mulheres a fechar as pernas em grave greve de sexo. Durou mais de mês, mas no fim lacraram as portas que se abriam pra rua única, as mudaram pro fundo olhando cada uma a morraria distante, o poço d’água bem doce, fresquinha a poucos passos da nova porta. Não fosse sua posição de firmeza, Chico Fumaça teria acabado com a greve no grito, na marra. Justa. Justíssima a reivindicação das mulheres de bem. Agora ele, acusado de bandear pro lado de Zeca Fortuna, inimigo jurado de morte de seu patrão Coronel Elesbão. Vingança é um prato que se come frio. Quando o coronel resolvesse destirar a bunda dos sofás da casa grande da capital retornando ao sertão, poria tudo em pratos limpos. Nhor que sim! Que ele não prega os olhos com desconfianças rondando sua cabeça. Nem havera-de... Queria que um raio dos graúdos o partisse ao meio se debandasse pro lado daquele um. Tinhoso. Falso como mulher de político em véspera de eleição. Apois! Nenum era pra ser daquele jeito sua vingança. Mais trinta anos trabalhasse sol-a-sol, ainda assim Coronel Elesbão continuaria acreditando nas invencionices de Zé do Corgo. Dianho que ele não entendia nadica desses amores desrevelados à queima-roupa: quem bandeara proutro lado fora ele – o coronel – parece que nasceu com o dito cujo dentro do corpo. Não era de estranhar sua postura, seus medos. Só então Didão se apercebeu que estava jurado de morte. Guardava tantos segredos, por eles, não merecia continuar vivendo. Entendia. Conhecia de tudo naquele cerrado; cada curva no caminho, cada galho de pau quebrado na estrada ou entre os arbustos denunciava a seus olhos todos os perigos, todos os mistérios. Assim que, aliviando o calor sentado debaixo de um buritizeiro com os pés na água fria da veredinha, viu ao longe um dois, três reflexos. Poderia não ser nada, mas também poderia anunciar jagunços em tocaia: ele, a vítima, já se antecipando em raivas, espumando pela boca, soltando fogo pelas ventas. Decidiu não esperar o ataque. Desarreou o cavalo, deixando-o livre a pastar; quebrou duas curvas pras esquerdas. Depois de duas horas andando a sol pleno, penetrou num pedaço de cerrado podre; sambaibeiras e pequizeiros ladeados de pequena morraria bem ao pé da curva da Cacunda Velha. Afrouxados, estavam lá três capangas do Coronel Elesbão, atocaiados, sabedores eles, os três de seu caminho. O sangue ferveu na cabeça. Só teve forças pra gritar: — Estão me assuntando?! — No mesmo instante, a parabélum cuspiu bala. Mal tiveram tempo de virar a cabeça, foram mortalmente feridos. Didão puxou a aba do chapéu em sinal de respeito aos recém-defuntos. Aprumou o corpo, pegou os animais selados, descansados, precisava escondê-los longe dos olhos da jagunçada do Coronel Elesbão. Resolveu buscar guarida num esconderijo seguro. Da última vez que se viu obrigado a matar quando os bate-paus do delegado Simplício fizeram serão nas imensas terras do coronel, nem pestanejou. Rumou pras bandas da Serra da Aldeia bem perto do ribeirão São Pedro; naquele fim de mundo, descobriu a Caverna da Onça. Onça mesmo fazia já um quartel de século que elas tinham desaparecido a custo de muito cachorro brabo, zagaia, balas de parabélum, winchester de papo-amarelo. Construiu ali pequena fortaleza. Pra não ser descoberto, quase não acendia fogo. Vivia mais de comer frutas ou mascar nacos de carne-seca. Luxo mesmo só de quando em vez na chegada do frio, que subia pela morraria carregado por vento incessante, cortante, doído. Aí não tinha gueriguéri: pegava uns gravetos, acendia seu binga, velho companheiro, sentia o fogo crepitar levemente; enquanto assava um pernil de cateto, ia rememorando sua vida. Não era senhor de si. O coronel o tinha preso. A hora que bem entendesse, ou matava ou entregava pro doutor delegado. Confiante que ninguém o conhecia, passou por alguns sítios perto da Lagoa de Santo Antonio onde barganhou um bornal de couro por um galo e duas galinhas caipiras; tinha tenção de dar início a um criame de aves dentro da caverna. Seria a economia da sobrevivência. Parando aqui, acolá um mês, depois se viu defronte da Serra da Aldeia após dois estirões a Caverna da Onça: não dava sinal de que uma viv’alma tivesse feito pousada, por pequena que fosse a demora. Seu segredo ainda era segredo. Só seu! A velha rede estava no lugar que deixara há muitos meses. O fogão de pedra com sua inseparável panela, duas ou três latas onde punha mantimentos. Desceu a bruaca do cavalo cansado desarriando-o em seguida, pegando com cuidado a manta de carne colocada debaixo do baixeiro, espetando num pedaço de pau em boa altura pra que nenhum bicho pudesse roubar sua refeição dos próximos dias. Amarrou a criação na estaca da rede, depois prepararia um galinheiro. Desacostumado a tomar banho o que mais deseja agora é pôr o corpo na rede, mordiscar levemente um bom bife de carne salgada pelo suor do cavalo, saborear suave talagada da pinga Segura o Tombo, a predileta dos vaqueiros do Paracatu. Deixou- se levar pelos sonhos desencontrados, a vingança atravessada na garanta. Estava selado. O coronel aguardasse. Não tinha muita pressa. De vez em vez, se arriscava indo a alguma corrutela. Sentado, ouvia conversas; só espiava, não perguntava. Trouxe linha, anzol. Já se sentia novamente quase homem livre. Variava sempre de local de pescaria, ora no ribeirão São Pedro ora no Aldeia que era pra não encontrar nenhum bicho homem desconfiado perguntador. Já ia pra meses que ele estava ali. Escondendo, aparecendo furtivo. O criatório de galinha rendera perto de dez frangas, seis frangos. Tudo tinha dosagem certa. Os frangos iriam pra panela. As frangas virariam poedeiras; quando pensava, lambia os beiços. Gostava de beber ovo recém-botado ainda quente pelo calor das tripas da galinha. Dois ou três de uma vez só. Um dia, acordou destrambelhado, com a avó atrás do toco. Tinha fome, queria comer comida caseira, os seus dotes culinários eram muito curtos. Fechou os olhos, se viu moleque no fundo do quintal de sua casa. Donana segurava a velha galinha pedrês pelos pés enquanto arrumava a tigela. Assistiu a toda a cena. Dela não esqueceria jamais. Acendeu o fogo pôs água pra ferver no latão grande, afiou cuidadoso a faca. Sobrepesou dois frangos, escolheu o de pescoço pelado; pegou a cuia, prendeu entre as pernas já sentado num tamborete; deu duas batidas no pescoço do frangote que era pro sangue subir, cortou a veia, aparando o borbotão vermelho denso. Pôs o sangue pra descansar com algumas gotas de limão, pois não tinha vinagre. Depenou o frango semi-vivo. Decepou a cabeça, sapecou as penugens, foi pra beira da vereda abrir a ave, separou as iguarias: fígado, coração, moela seriam cozidos em separado. Destrinchou pescoço, peito, asas, coxa, santantônio, sobrecu, pés. Espremeu um limão galego, jogou sal, algumas folhas de manjericão, cebolinha, deixando marinar. Esquentou a panela com banha de piaba, jogando na gordura quente os pedaços, dourando cada parte, cobrindo depois com água fervente. O cheiro suave recendeu pela caverna. Mexeu duas vezes com improvisada colher de pau; no borbulhar da água, viu que era chegado o momento de jogar o sangue. Remexeu a cuia algumas vezes, colocando um pouco de farinha de mandioca para engrossar o molho. Derramou de uma só vez na panela fervendo, tampando em seguida. Coração, fígado, moela cozidos eram seu tira-gosto. Breve beiçada de cachaça. Agora, sua fome poderia esperar. Duas horas depois, as partes do frango pareciam ter derretido no grosso, cheiroso molho pardo. Abastecido, refestelou na rede; roncou, sonhou. Apaziguada a primeira temporada das chuvas, pressentiu que o natal rondava seus dias, véspera das andanças solitárias do Coronel Elesbão, que escondidinho se afogava nos seios fartos da brejeira Terta. Nada mais justo. Aquele seria o momento do acerto de contas. Esperaria por ele bem próximo da curva do Ó. Uma bala, nem um ai ou ui! Penou cinco dias debaixo de um sol capaz de fazer inveja ao fogo do inferno, nada do homem aparecer. Mudara de amante ou de caminho? No sexto dia, a recompensa. Lá vinha ele em seu elegante terno de linho branco, imenso chapéu Panamá, soltando intensas baforadas do inseparável palheiro. Não! Um tiro era muito pouco. Decidiu. Fez mira cuidadoso. Prendeu a respiração. A bala certeira cravou na cabeça do cavalo. Desgovernado, desabou no chão caindo por sobre uma das pernas do coronel. Sem pressa, Didão acendeu um pito, tomou ligeiro gole de cachaça, limpando os beiços com as costas das mãos. Nem sôfrego nem atabalhoado, escorregou pela pedra do Lagarto ganhando a curva do Ó. Viu o terror estampado na cara do Coronel Elesbão. Desembainhou o punhal de prata. Deu apenas uma espetada de cinco centímetros no coração. O homem estrebuchou. Didão puxou a aba do chapéu... Por Romulo Nétto - Jornalista e Escritor

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