terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A ROUBALHEIRA DA REDE CEMAT

Aprendi com meus pais a distinguir o certo do errado. Enxerguei desde os tempos da Universidade de Brasília (anos áureos da ditadura) que as concessionárias dos serviços públicos eram obrigadas a prestar a seus usuários serviços de excelência.
Mineiro, jornalista e sobremaneira metódico aprendi que deveria zelar por meus interesses. Não poderia ser diferente com uma concessionária de serviços públicos.
Os anos foram passando e eu me assustava com os aumentos constantes do consumo de energia embora não tivesse adquirido nenhum equipamento para justificar o aumento.
Comecei a desconfiar da então Cemat. E a desconfiança gerou um sistema de controle diário. Preparei minha planilha onde anotava, todos os dias, o consumo a data e o consumo do dia anterior.
Fiquei estarrecido ao constatar que estava sendo, invariavelmente roubado, pela Cemat.
Os tempos passaram e a Cemat mudou de nome e de dono. Nada mudou, senão o aumento da roubalheira.
Resido no bairro Boa Esperança desde dezembro de 1981. Há sete anos nossa filha mais velha decidiu estudar em Curitiba e logo depois a mais nova tomou o mesmo destino. Agora, somos apenas minha mulher e eu nesta casa.
Temos duas televisões – uma de 32 polegadas e outra de vinte. O consumo mensal das duas é de cerca de 270 watts/h. Se as deixo em stand by o consumo não ultrapassa 0.15 watts hora, o que raramente acontece. Uma geladeira com consumo mensal de 60 kwh; um aparelho som com consumo (mas quase nunca ligado) de 400 watts; uma lavadora de roupa tipo tanquinho (a mais usada), quatro horas, uma vez por semana; uma lavadora de roupa Consul. Três lâmpadas de 15 watts que permanecem acesas das 19 às 6 horas da manhã, Um microcomputador que uso por três horas diárias; o ferro elétrico que é ligado no máximo por duas horas, um dia da semana. Dois umidificadores de ar para cinco litros de água (apenas um funciona durante dez horas noturnas). Dois ventiladores de teto que consomem 120 watts hora e ficam ligados por 16 horas dia (oito horas cada um).
Fiz meus cálculos e cheguei aos seguintes resultados;
Ar condicionado: 101 kw/h/mês; Tanquinho (consumo de 0,06 kw/h/ciclo – são quatro ciclos especificação do fabricante) 2,0 kw/h/mês; Geladeira: 60 kw/h/mês: Televisões: 83,7 kw/h/mês; Ferro elétrico: 9,6 kw/h/mês; Máquina de lavar Consul: 0,13 kw/h (especificação do fabricante) 2,8 kwh/mês; Lâmpadas de 15 watts: 1,60 kw/h/mês; Aparelho de som: 200 watts/h/mês; Umidificador de ar:1,0 kw/h/mês; Ventiladores: 59,50 kw/h/mês; Liquidificador: 0,50 kw/h/mês; Batedeira: 0,50 kw/h/mês; Chuveiro elétrico: 2,0 kw/h/mês; Computador: 15,60 kw/h/mês. Consumo total mensal aproximado: 338,80 kw/h
Vale salientar que há mais de dez anos faço a leitura diária do medidor de energia, anotando dia, mês e consumo. Para se ter ideia do rombo em meu orçamento eis o consumo kw/h/ nos seguintes meses: nov/11: 560; out/11: 560; set/11: 500; agos/11: 500; jul/11: 400; jun/11: 460; mai/11: 540; abr/11: 470; mar/11: 570; fev/11; 640; jan/11: 700.
A Rede Cemat informa na última fatura que o consumo médio dos últimos três meses foi de 536 kw/h. A diferença entre o consumo médio apontado pela concessionária e o que acredito realmente consumir é brutal. São aproximadamente 197,20 kw/h/mês.
Ouço notícias de residências com aparelhos de ar condicionado de 18.000 buts que ficam ligados o dia inteiro e ao final do mês o consumo é bem inferior ao meu. Sei da existência de “gatos” nas casas dos poderosos e a Rede Cemat faz acintosamente vistas grossas, talvez defendendo seus próprios interesses.
Não acho justo que tantos milhares de consumidores paguem pelo excessivo consumo de poucos. Exijo que a Rede Cemat tome uma providência séria em relação aos velhos medidores, por serem em sua grande maioria, obsoletos e viciados.
Prestei queixa à Rede Cemat no dia 26.9.11. Em novembro fiz o mesmo procedimento junto à Agência Nacional de Energia Elétrica. Fui informado que a Rede Cemat durante inspeção realizada in loco não detectou nenhum problema no equipamento de medição, tais como, interligação ou vazamento de energia até o ponto de entrega. Se tal inspeção ocorreu, enquanto proprietários, minha mulher e eu não participamos dela. O mais grave: por problemas de saúde não consigo sair de casa, estou com elevadíssimo nível de ferritina (posso anexar caso a ANEEL e a Rede Cemat interessem o comprovante dos exames realizados) e não consigo me locomover além de cinqüenta metros. Não dirijo, aliás, nunca dirigi um veículo. Portanto não há como a concessionária alegar que encontrou a residência sem nenhum morador para atender seus funcionários na data mencionada. Como a Rede Cemat faz inspeção e não nos convoca para participar, mesmo como simples, mas interessadíssimos observadores, da mesma? Sou um velho, mas não estou esclerosado. Se a Rede Cemat quer continuar roubando que o faça com outros, comigo não.
Como cidadão brasileiro, em pleno gozo de seus direitos constitucionais e de suas faculdades mentais, exijo que a Rede Cemat comprove com minha assinatura a inspeção realizada em minha (nossa) residência, faça a inspeção dos equipamentos que possuo nela para comprovar o gasto apresentado nas faturas e, principalmente troque o medidor de energia por um novo, sem vícios, talvez ocasionado pelos longos anos de uso, talvez...
Jamais deixei de quitar as faturas dessa malfadada empresa, aliás trata-se de débito em conta e há sempre fundos suficientes para cobri-lo.
Houve um incidente quando não morava em Cuiabá, acusaram violação do medidor de energia. A casa estava “alugada”, moradores e eu assumimos a responsabilidade, mesmo sem dever. Não devo e jamais deverei a uma empresa que se enriquece explorando grande parte de pessoas que não sabem de seus direitos ou que têm medo de procurá-los.
Eu não temo a Rede Cemat e nem quaisquer possíveis ameaças advindas deste artigo, inclusive da mudança do medidor de energia por outro viciado que aumente sumariamente o consumo da unidade consumidora...
Ressalto ainda dois fatos importantíssimos: orientado por um engenheiro eletricista efetuei a mudança (há cerca de um ano e meio) de toda a fiação, pois os fios antigos poderiam estar provocando fuga de energia. Não houve diferença no consumo. O segundo fato porque num dia o gasto é de 10 kw, no outro 20 e num terceiro 30? E os equipamentos ligados são os mesmos, o tempo quase sempre o mesmo. Ar condicionado (com timer), ventiladores, máquina de lavar roupa, ferro elétrico e lâmpadas, invariavelmente são utilizados com o mesmo número de horas. E quando a casa ficou fechada por cinco dias, apenas a geladeira ligada, todos os aparelhos foram desconectados das tomadas e o consumo medido foi de 50 kw/h? Como?!!! E como já afirmei a geladeira consome 60 kw/h/mês.
Espero que este artigo sirva de alerta para os milhares de consumidores da Rede Cemat que estão sendo lesados diariamente sem o saber.
Exerça seu direito de cidadão denunciando os abusos da Rede Cemat telefonando para a Agência Nacional de Energia Elétrica através do telefone 167, ligação gratuita de telefone fixo.

sábado, 26 de novembro de 2011

ENAWENÊ-NAWÊ - CONTATOS IMEDIATOS

Quando líamos ou ouvíamos falar em aproximação com grupos indígenas isolados ou arredios logo nos vinha o pensamento de selvagens portando bordunas, tacapes, zarabatanas e arcos e flechas. Tínhamos a ideia preconcebida de que eles deveriam ser “domados” para que a Marcha para o Oeste se concretizasse.

De um lado, diversas etnias que lutavam pela sobrevivência nas terras ancestralmente suas. De outro, o Governo Federal que temia a invasão de grande parte do território nacional caso não se procedesse a sua imediata ocupação. Somado a isso vinha a propalada necessidade de produzir alimentos, fato gerador dos mais escabrosos casos de genocídio dos tempos modernos da história brasileira.

Thomaz de Aquino Lisbôa, o Jaúka, em seu Enawenê-Nawê – primeiros contatos, com linguajar simples, acessível a qualquer de nós, relata o primeiro encontro com os Salumã. Na verdade Salumã era o nome de um índio e não o nome que aquele povo se autodenominava. Somente tempos depois foi que conseguiram desvendar o mistério e descobrir que aquele grupo de índios era Enawenê-Nawê.

A atração não foi simples, apesar de amistosos, o Enawenê-Nawê era um povo desconfiado. Os membros daquela etnia adoravam os objetos do homem branco e não faziam cerimônia. Quando a equipe de Thomaz de Aquino aportava em local que permitisse o pernoite, logo surgiam alguns indígenas, que imediatamente vasculhavam o barco e apanhava tudo que lhes parecesse interessante. Levavam facas, facões, anzóis, machados, chapéus e até roupas.

Thomaz de Aquino Lisbôa soube, com perseverança e habilidade esperar o momento exato para mostrar àquele povo que, ele e seus companheiros eram de paz. E foram muitas idas e vindas até que se estabelecesse um elo de confiança entre as partes. Parece-me que esse elo jamais foi quebrado.

O livro Enawenê-Nawê, primeiros contatos, ou relato de campo vem nos mostrar que aproximação do homem branco com os diversos grupos étnicos poderia ter sido menos traumática.

Aquino teve a sensibilidade de não deixar nenhum companheiro com sintomas de gripe manter contato com os indígenas, recolhendo as vasilhas que bebiam água, chicha e comiam, evitando uma contaminação, que por certo, dizimaria toda a etnia.

A exemplo do que já ocorrera no Paraná, em Mato Grosso, as frentes pioneiras assassinaram quase todos os Beiço-de-Pau, misturando arsênico com açúcar, deixando como presente, em locais frequentados pelos índios. Assim foram tratados pelo branco colonizador os verdadeiros donos das terras brasilis.

Aos poucos os povos indígenas foram sendo expulsos do habitat natural. E, “tirar-lhes o espaço é destruí-los como povos.”

Por incrível que pareça o contato se deu quase que pacificamente, exceção feita quando, em quatro de setembro de 1984, mataram o topógrafo João Batista dos Santos e seu auxiliar Osvaldo Vargas e feriram gravemente Nerino Rodrigues de Camargo e Manoel Oliveira Costa e Silva.

Enawenê-Nawê, primeiros contatos, publicado pela Carlini & Caniato Editorial, é um livro que deve ser lido, discutido. Longe de ser polêmico, é antes de tudo um texto que nos leva à reflexão sobre como seria diferente o processo de aculturamento dos povos indígenas brasileiros, se os homens certos estivessem nos lugares certos.



Romulo Nétto, é jornalista e escritor. Autor dos livros: Contos dos Gerais; Filisberto das Âncoras e As Jagunças (2009). Os Deserdados da Sorte; Transitoriedade, Palavra; Cidades, Ciudades; Tarenço, o Capanga de Lata; Bom-dia, Senhor Presidente; Tatão Malemais, o Capador de Anjos e O Infinito Desespero de Ementério (2010); Não fala comigo! a história de um autista (2011), todos publicados pela Carlini & Caniato Editorial.

LEITURA

O que é a leitura, senão um dos primeiros sinais de amor de nós pais para com nossos filhos! Li recentemente que o governo federal pretende incentivar as editoras a publicarem livros que poderão ser vendidos por R$ 10,00. Li, também, que o Ministério da Cultura lançará, em breve, um programa destinado à publicação de livros, salvo engano serão empregados, aproximadamente R$ 28.000,000,00, quantia que temos certeza será em sua totalidade abocanhada pelas grandes editoras.
O brasileiro lê pouco. Onde está a raiz do mal? Antigamente, na época em que existiam os cursos primário e o ginasial e as pequenas cidades não possuíam mais do que dois ou três grupos escolares e uma escola estadual que ministrava aulas do primário ao ginasial, cada sala de aula tinha sua pequena prateleira com algumas dezenas de livros e nós, duas vezes por semana, um espaço reservado à leitura.
Foi a partir da alfabetização que tomei conhecimento dos livros de escritores como Perrault (Chapeuzinho Vermelho e A Bela Adormecida); Irmãos Grimm (A Gata Borralheira e Branca de Neve); Charles Dickens (Oliver Twist e David Copperfield); La Fontaine (O Lobo e o Cordeiro ); Esopo (A Lebre e a Tartaruga e O Logo e a Cegonha), sem falar em Monteiro Lobato com As Reinações de Narizinho, O Sítio do Pica-pau Amarelo e Ideias do Jeca Tatu.
Tive uma infância pobre. Pais semianalfabetos. Meu pai era guarda-fios dos Correios e Telégrafos, responsável por fazer o aceiro em determinado trecho da linha telegráfica. Semianalfabeto, mas não era cego ou desleixado com a educação de seus oito filhos. Assinava o jornal Correio da Manhã que demorava quatro dias, do Rio de Janeiro até Paracatu. Ele lia alguns cadernos do jornal e repassava aos filhos. Nem todos se interessavam pelas notícias. Eu ficava contando os minutos esperando o final da tarde, quando ele chegava do trabalho com o exemplar do Correio debaixo do braço.
Sabendo do gosto que tomara pela leitura, em parceria com um dos meus irmãos, comprou a primeira coleção de livros de nossa casa: Tesouro da Juventude, devorei em pouco tempo. Logo depois veio nova coleção intitulada Viagem Através do Brasil. Uma revolução em minha mente de menino que cursava a segunda série do curso ginasial. Um espetáculo inesquecível.
O dinheiro curto e a família grande, fez com que passasse a comprar livros esparsos. Li Gonçalves Dias, Machado de Assis, José de Alencar, Aníbal Machado, Coelho Neto, Bernardo Guimarães, Joaquim Manuel de Macedo e tantos outros.
Não podia ver um livro dando sopa e lá ia eu querendo devorá-lo.
Meu amor pela leitura nasceu em casa. Hoje, grande maioria dos pais, não têm a mínima condição de comprar um livro. A opção entre o pão e a leitura acaba sendo desigual. O pão acaba tendo mais valor. Não posso culpá-los totalmente. A estrutura escolar está mudada. Já não existe tanto incentivo para a leitura e produção de textos, em sala de aula ou como dever escolar.
Mas há outro senão. Os pais que têm condições preferem presentear os filhos com modernos telefones ou com videogames, uma maneira de dar um chega para lá, no filho que muitas vezes só deseja conversar um pouco.. E o pior: muitos até compram livros, os que eles querem que seus rebentos leiam, não aqueles que eles (os filhos) gostariam de escolher. Óbvio que o livro irá para uma estante esperando a poeira chegar.
A concorrência da rede mundial de computadores também fez com que diminuísse o número de leitores. Agora chegou o e-book, mas ele não veio ocupar o lugar do livro impresso, é apenas uma ferramenta a mais e, todas as grandes companhias estão ávidas por colocar à disposição de pretensos futuros leitores o maior número possível de títulos.
Acho que a proposta de incentivar a leitura reduzindo o custo do livro tem que passar primordialmente pela regionalização da publicação. Não acredito que exista empecilho para que o autor mato-grossense, acreano, roraimense ou amapaense seja publicado em seu estado e levado para os grandes centros consumidores. É a forma democrática de distribuir a literatura e, principalmente, a cultura..
Antigamente nos concursos vestibulares havia inclusão de questões sobre história, geografia e literatura regionais. Hoje, acredito que o malfadado Enem jamais colocará uma questão sobre uma obra de autor mato-grossense. E no que se refere à história e geografia nada que não esteja intrinsecamente ligado à pecuária e à produção de grãos.
Monteiro Lobato escreveu: Um País se faz com homens e livros. Acredito piamente nessas sábias palavras e avanço um pouco mais: a leitura é uma das mais importantes ferramentas para que possamos preparar a formação dos homens de amanhã.

A COPA É NOSSA! NOSSA?

Pelo que venho lendo tenho a enorme sensação de que os governantes dos estados cujas capitais abrigarão partidas da Copa de 2014 acreditam que a partida está totalmente ganha, mesmo antes de o juiz apitar o início da partida. Muitos acham, ou pelo menos demonstram, que o principal é construir os estádios. O resto é resto. Enganam-se redondamente. O dito pelo pesquisador de Transporte da Universidade de Brasília (UnB), Artur Morais pode ser aplicado a todas as cidades-sede: “o aeroporto [de Brasília] está saturado e obras, como a do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) podem não estar concluídas até lá.” E o pesquisador continua: “o transporte público em Brasília é malfeito, mal planejado e mal operado.”

Exceção feita a Curitiba que possui, a meu ver, o melhor sistema de transporte público brasileiro, as demais cidades estão reprovadas neste importante item para atendimento daqueles que pretendem assistir aos jogos da Copa.

Os aeroportos caóticos. Basta vermos um feriadão. O secretário-geral da FIFA Jérome Valcke disse, recentemente “que era um ‘pesadelo’ viajar na capital paulista: saímos do aeroporto às 8 horas e chegamos ao destino só ao meio-dia...”

O gargalo da Copa de 2014 está mesmo centralizado na infraestrutura e dificilmente o tempo que falta para a realização do evento compromete, em muito, a consecução de todas as obras necessárias.

Incompetência generalizada, pois no dia 30 de outubro de 2007 o mundo inteiro assistiu ao sorteio que escolheu o Brasil como sede da Copa de 2014. Estamos em 2011 e um número sem fim de obras ainda sequer começou.

Quais motivos levaram a Confederação Brasileira de Futebol e o próprio governo brasileiro a ignorar o desejo de investidores da União Europeia em investir pesadamente em obras de infraestrutra para a realização da Copa? Os empresários europeus temiam calote ou temiam que os pedidos de propina reduzissem drasticamente seus lucros? São perguntas para as quais jamais teremos respostas.

Tenho por mim que o custo estipulado para a realização de todas as obras necessárias para que a Copa seja um evento de primeira grandeza será, no mínimo, triplicado.

Os organizadores estão mais preocupados com as brigas entre os clãs do que com a transparência nos gastos. De passagem, não é nenhuma novidade.

Alguns articulistas já mostraram a preocupação com a rede hoteleira, mostrando que em muitas cidades, após a Copa 2014 haverá quebradeira, porque muitos hotéis não conseguirão atingir a cota mínima de ocupação desejável. Citam Manaus como exemplo.

E quanto aos estádios? Qual será o destino dessas luxuosas construções? Arena multiuso. Nome pomposo, para um investimento público de retorno duvidoso. Teremos inúmeros restaurantes! Mas teremos clientela que justifique o arrendamento de cada uma das unidades?
Quantos shows por ano cada estádio abrigará? Temos artistas ou espetáculos que lotarão cada um deles, trazendo o esperado retorno do investimento.

Não quero ser cético, mas acredito que nem em dez gerações o dinheiro empregado será amortizado plenamente.
Quantas cidades-sede possuem times de futebol que levarão trinta mil torcedores por partida? Contamos nos dedos: Grêmio, Internacional, Coritiba, Atlético Paranaense, São Paulo, Corinthians, Palmeira, Santos, Flamengo, Vasco, Fluminense, Botafogo, Bahia, Vitória, Santa Cruz, Santa Cruz, Esporte e Náutico.

Como falar em futebol no Rio Grande do Norte, Amazonas, Brasília e Mato Grosso. O público nestas quatro cidades é vergonhoso. Analisando, sem paixão, a bilheteria não dá para custear a energia gasta em um jogo noturno, quanto mais para amortizar a construção do estádio, isto sem levar em conta que, praticamente, não têm times disputando a Série B do Campeonato Brasileiro, a famosa Segundona, porta de entrada para a elite do Campeonato Nacional.

Oito sedes, como ocorria, eram mais do que suficiente para atender ao calendário da Copa. Inventaram doze para agradar governadores, se esquecendo que somos nós, o povo, os responsáveis pelo pagamento da despesa.

Para que o fracasso não seja maior o Governo Federal terá que investir maciçamente na atração de turistas pós realização da Copa do Mundo de 2014, a salvação de estados como Rio Grande do Norte, Amazonas e Mato Grosso para gerar renda e impostos suficientes para cobrir o investimento empregado nas obras de infraestrutura e construção de estádios.

Resta-me torcer para que a seleção brasileira não repita o vexame de 1950. Diga-se de passagem que poderemos até ostentar o título de País do futebol, mas já não reinamos absolutos em primeiro lugares, livres de concorrentes. O exemplo foi dado no Gabão e no Egito, míseros dois a zero, em seleções que há vinte anos praticamente inexistiam. Para nos livrar do vexame talvez fosse melhor convocar a seleção da Marta, Cristiane e Formiga, acho que a meninas brilhariam muito mais.

Em outra oportunidade voltaremos a falar sobre a realização da Copa de 2014, pois o povo sonha muito mais com a possibilidade da geração de emprego e renda do que com a seleção brasileira hexa campeã..


Romulo Nétto é jornalista e escritor, autor de onze livros, editados pela Carlini & Caniato Editorial

A DOENÇA DO EX-PRESIDENTE

Tudo bem você não gostar de uma pessoa. Tudo bem se você não gostar de políticos. A gente já está cansada da inutilidade deles. Mas chegar ao cúmulo de desejar a morte de um político após constatar um câncer na laringe chega às raias da ignorância.
Não gosto do senhor Luiz Inácio Lula da Silva. Nunca gostei. Não votei nele. Se candidatar não votarei. Mas meus olhos e ouvidos permitem ver e ouvir o que de bom ele fez. Confesso que seria hipócrita acreditar que ele fez tudo sozinho, esquecendo que o início da virada começou no governo Itamar Franco, após os desastrosos José Sarney e Fernando Collor. Os dois incompetentes quase levaram o País à ruína.
Com o lançamento do Plano Real foi dada a partida para que a economia começasse a crescer.
Houve erros? Sim! inúmeros. Muita roubalheira nas privatizações e nas emendas parlamentares. Mas não vivemos no País onde se admite abertamente, em alto e bom som: “ele rouba, mas faz!” É quase uma instituição nacional.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi correto? Lógico que não. Enquanto presidente da República ele tinha que manter distância da disputa entre os candidatos à sua sucessão e não o fez. Agiu de má fé jogando todo o peso da máquina administrativa pública com o intuito único de fazer de Dilma Rousseff sua sucessora. Conseguiu, mesmo sem meu voto.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é o terceiro membro da família a ter um câncer de laringe diagnosticado. Não é motivo para soltar foguete. Pelo contrário. Devemos sabê-lo saudável, quem sabe infligindo fragorosa derrota a seu candidato nas próximas eleições. Devemos pensar em enterrá-lo politicamente, não fisicamente. Ninguém morre de véspera. Não deixemos que o câncer o transforme em mártir. Ele é tão humano quanto nós, só que mais rico e mais poderoso.
Aos sessenta e cinco anos tenho muitas coisas que ele não tem e dificilmente terá: paz de espírito, instrução, educação, amigos desinteressados, relativa saúde.
Vamos torcer para que o tratamento quimioterápico seja coroado de êxito e que o radioterápico complete o trabalho.
Ele não merece o tratamento postado por milhares de usuários das redes sociais. Deixem-no em paz. Só o susto de saber-se doente. De saber que ele tem grande parte da culpa desse câncer ter aparecido (tabaco e álcool) deve tê-lo consumido nesses dois primeiros dias...
Ninguém morre de véspera. E o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva não será o primeiro.
Deixemos que ele curta em paz sua aposentadoria presidencial e que não volte a nos perturbar nos próximos anos. Porém, não podemos nos esquecer que ele deu continuidade a inúmeros bons projetos idealizados por seus antecessores. A criança é linda, aí ele gritou: eu sou o pai.
Em seus oito anos de governo ele fez alguma coisa boa. Com Fernando Henrique Cardoso os pobres começaram a usar dentadura e comer pé de frango. O ex-presidente foi mais sofisticado aumentou o rendimento dos programas sociais e as famílias puderam iniciar a compra frenética de eletro-eletrônicos, se endividando até não mais conseguir pagar as contas. Aprendeu que pagando regularmente a conta do boteco da esquina, poderia beber tranquilamente seu corote de pinga.
Abriu as portas das universidades para os pobres, mas apenas para os cursos em que há mais vaga do que candidato. Criou escolas técnicas, institutos federais de educação e prazerosamente se esqueceu de equipar as universidades federais com recursos humanos de boa qualidade, abolindo quase de vez os concursos para professores e técnicos administrativos efetivos. Entupiu as universidades de prédios e equipamentos, bem assim de professores substitutos, servidores terceirizados e estagiários.
Nem por isso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva merece o tratamento carregado de maldades, exigindo que ele vá se tratar no Sistema Único de Saúde. Ora todos nós sabemos que os planos de saúde aos quais milhões de brasileiros pagam caríssimos mensalmente não são tão melhores que o SUS.
Acredito que, como ex-presidente, ele deva ter seus privilégios. Infelizmente no momento falta-lhe a saúde, o bem maior de todos nós. Vamos torcer para que ele se recupere. Vamos torcer para que ele lidere a luta que culmine com a diminuição da corrupção em todos os setores da sociedade, principalmente na política. Vamos torcer para que ele dê o exemplo condenando os que se escondem por detrás de um cargo político para fugir do rigor da lei.

CÉU E INFERNO

Uma morna manhã, antes de dar continuidade às minhas pretensões literárias, resolvi, momentaneamente, deixar de lado o oitavo capítulo de A Revolta dos Livros e me pus a pensar com meus botões: existe céu? Existe inferno?
De acordo com os evangélicos existe sim e um lugar lá é vendido em suaves prestações dominicais. Hoje, até com a comodidade do pagamento ser feito através de boletos ou cartões de crédito.
A Igreja Católica afirma que existe sim e somente os bons, os puros de coração sentarão ao lado do Senhor, mas não exige pagamento. Contribui quem quer ou pode.
Nessa linha de raciocínio o inferno também existe. Quem não contribui com o dízimo ou pratica o mal vai para o inferno. Alguns mais depressa que outros. Uns até compram o lugar no inferno negociando a vaga com o capeta, barganhando a alma por alguma benesse aqui na terra.
No céu, de uns tempos para cá, não deve existir mais uma vaga. Já venderam até o enésimo andar. Também pudera, com as facilidades de pagar o dízimo com cartão de crédito qualquer pobre arrisca comprar seu lugar, afinal eles também é filho de Deus.
Eu não acredito no céu, nem no inferno. Desde que o homem apareceu na face da terra (aliás homem ou macaco, pois que Adão e Eva não deviam ser agraciados com a beleza física, tão comum nos dias atuais) milhões de pessoas nasceram e morreram. Suponhamos que os mortos, desde o aparecimento do Homo sapiens, sejam duzentos milhões. Dividamos irmãmente esses mortos. Metade foi para o inferno, metade foi para o céu. Se o céu é tão bom como apregoam pastores e padres, nenhuma alma apareceu para nos contar sobre as belezas do lugar, ninguém foi convidado para ir lá e voltar apregoando o mundo de paz existente.
O que dizer então do inferno? Será que o capeta-chefe colocou grades intransponíveis sobre muros evitando fuga em massa? Os mortos do inferno estão todos em celas gigantescas pagando pelos crimes que cometeram em vida?
Quero acreditar que existe céu e inferno e um e outro coexistem pacificamente num lugar chamado Terra. Ainda assim permanece a dúvida que não sai da cabeça: qual o motivo de uns nascerem cegos, surdos, paralíticos, feios e outros bonitos, saudáveis e ricos? Qual motivo leva um ser humano, que ajuda seu semelhante padecer, anos e anos, sem assistência, num casebre qualquer, e o político que roubou da educação, da saúde, destinou dinheiro para construção de estradas, que depois da primeira chuva se enchem de buracos provocando acidentes que causam a morte de dezenas de pessoas, deita, dorme e morre de um infarto fulminante, praticamente sem sentir dor?
Há até uma anedota que traduz bem o que descrevi acima. Um velhinho morreu e foi prestar contas ao Senhor. Chegando no “céu” ele não se fez de rogado, foi logo desfiando seu colar de perguntas. Meu bom Deus porque o Senhor colocou terremotos no Chile, na Guatemala, na China, no Japão, na Turquia, tsunamis em Bali, no Japão, enchentes na China, no Peru, nos Estados Unidos, tempestades de neve na Europa e na Ásia, vulcões na Itália, Chile, Havaí e no Brasil o Senhor não colocou nada. Não temos terremotos, as enchentes são de pouca monta, não temos vulcões, tempestades de neve. Engana-se meu filho. No Brasil eu coloquei para compensar os políticos...
Mas o melhor mesmo é deixar padres e pastores digladiarem sobre a existência do céu e do inferno. A única coisa que tenho certeza é que meu cartão de crédito não está disponível para pagamento de qualquer espécie de dízimo.
E como diria o caipira mineiro ao ser perguntado sobre onde fica o céu. Ele aponta com o indicador, logo ali, seis léguas depois daquele morro. E o inferno? Logo depois, na primeira esquina depois do céu.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

COINCIDÊNCIAS?...

COINCIDÊNCIAS: 11.9.73 (SALVADOR ALLENDE – 11.9.01 (TORRES GÊMEAS)

Muita gente pensa que é tarde para escrever ou falar sobre 11 de setembro. Não queremos escrever sobre um 11 de setembro. Aquele que destruiu as Torres Gêmeas, em Nova Iorque. Mas de dois.
Os dois onze de setembro mudaram radicalmente a vida de dois países.
O “suicídio” de Salvador Allende patrocinado pelo governo de Richard Nixon veio nos mostrar que qualquer país que não rezasse pela cartilha norte-americana poderia ser invadido em nome da luta contra a expansão do comunismo.
A América do Norte – senhora do mundo – já implantara a ditadura militar no Brasil, em 31 de março de 1964. A Redentora castrou todas nossas lideranças. Não sobrou uma para contar a história. Até hoje sentimos falta de um líder capaz de conduzir o Brasil ao lugar que ele merece. Não desejamos falar do hepta doutor honoris causa que não sabe distinguir tatame de tapume. Vamos deixá-lo sossegado saboreando sua 51 envelhecida.
Voltemos ao um passado mais remoto. Não satisfeitos os americanos com a implantação da Revolução Argentina, em um golpe de Estado contra o então presidente Arturo Illia, no dia 28 de junho de 1966, a América do Norte volta os olhos para o Chile provocando a derrubada de Salvador Allende,. A América do Sul transformava-se no quintal dos Estados Unidos.
A miopia mental do governo Nixon impedia a visão de que o Chile era um país que dependia exclusivamente de sua única riqueza: a exploração e exportação do minério de cobre. Que perigo poderia o governo Allende representar para o resto do mundo? Em termos econômicos nenhum. Em termos militares, menos ainda. É que os donos do poder da América do Norte precisavam vender armas e quando a exportação caía precisavam provocar uma guerra em qualquer canto do mundo e assim satisfazer os altos executivos das grandes empresas. E eles continuam servindo aos dois senhores: governos e rebeldes. Vendem armas para o talibã e para o governo, repete as ações na Líbia, na Somália, no Iraque e onde exista alguém disposto a comprar sua mercadoria.
Não foi diferente na Argentina, bem assim no Brasil.
Até hoje os documentos que poderiam comprovar a barbárie cometida pelas ditaduras militares nos três países estão engavetadas, como se nós não pudéssemos chorar e enterrar nossos mortos.
No onze de setembro de 1973 assistimos ao “suicídio” involuntário de Salvador Allende.
No onze de setembro de 2001, fundamentalistas mulçumanos, que talvez jamais tenham sequer ouvido falar que existia um país latino-americano, deram o troco à maior potência bélica do mundo: esfarelaram o World Trade Center, deixando o mundo indignado com o atrevimento da ação terrorista.
Centenas de vidas foram sacrificadas. Mas quantas centenas de vidas foram sacrificadas nos golpes militares do Brasil, Chile e Argentina.
A América do Norte não teve, não tem e não terá o respeito pela liberdade de qualquer ser humano que ela sonhe ser um inimigo. Pode até ser que outros 11 de setembro estejam rondando os céus americanos.

sábado, 3 de setembro de 2011

UMA MELODIA HISTÓRICA - O RESGATE DA VIOLA DE COCHO

Grata surpresa encontrar em minha caixa de correspondência o prometido e tão esperado exemplar de Uma melodia histórica. Li aos poucos, economizando páginas, pois queria saborear o livro como saboreamos uma boa comida. Tal e qual. Aos poucos fui percebendo os motivos que levaram Abel Santos Anjos Filho, mineiro de Uberaba, a se aprofundar em seus estudos sobre a Viola de Cocho, instrumento tradicional da cultura popular mato-grossense. Ela remonta a dezenas de séculos, vinda talvez do Oriente Médio, com passagem importante pelas terras portuguesas até chegar às barrancas do rio Cuiabá, de onde nunca mais saiu.
Se, por um lado, desvendar os mistérios da Viola de Cocho causou imensa alegria, por outro há um sentimento de perda que não consegue aquietar-me. Os jovens, mesmo os ribeirinhos, me parece, não estão preocupados em dar continuidade ao que seus antepassados cultuaram com amor por séculos. O cocho, renegado pela elite dominante como instrumento de pobre e para o pobre, foi durante o período colonial o objeto maior do lazer de inúmeras famílias de ribeirinhos que não só aprenderam a fabricá-lo como se tornaram exímios instrumentistas.
Hoje a Viola de Cocho não encontra adeptos entre os jovens, seja para tocá-la, seja para construí-la.
Abel Santos Anjos Filho veio do Triângulo Mineiro e logo saiu em defesa do instrumento mais significativo da cultura popular mato-grossense. E o fez com brilho, arte e a sensibilidade que só os que realmente amam a música ousam fazer.
Infelizmente como a grande maioria dos apaixonados pelo belo que não tem a sua mesma origem Abel Santos Anjos Filho quase foi crucificado pela cuiabania que, injustamente, o acusou de tentar roubar seu símbolo maior. Nada mais falso e enganoso. Ele veio resgatar um instrumento que, sem sua ousadia, eu arriscaria dizer estava fadado ao esquecimento. Mais que isso. Abel Santos Anjos Filho fez renascer em muita gente o desejo de que esse instrumento talhado a suor e sangue ressurgisse das cinzas e alçasse voo como se valesse das longas asas do tuiuiú indo pousar suavemente nas entranhas da principal orquestra do estado de Mato Grosso.
A tendência natural agora é correr o mundo mostrando que o passado pode muito bem coabitar com o presente e o futuro.
Mato Grosso tem uma dívida impagável com o historiador e pesquisador da Viola de Cocho, Abel Santos Anjos Filho e tenho como certo que ele jamais a cobrará, porque seu amor pelo instrumento é muito maior que o apego às coisas mundanas. Entretanto o estado não pode simplesmente fechar os olhos não reconhecendo no professor, que atravessou o Atlântico para pesquisar a Viola de Cocho em terras lusitanas e de lá voltou com a certeza de que a raízes fincadas em Portugal são as mesmas raízes que levaram um ribeirinho cuiabano a fabricar a primeira Viola de Cocho em terras mato-grossenses, é o maior responsável pelo resgate histórico do instrumento que, esperamos, por muito tempo perdure alegrando a rica cultura popular mato-grossense. A Viola de Cocho é, sem sombra de dúvidas, o coração das principais manifestações populares de Mato Grosso. Ela está presente no boi à serra, no cururu e no siriri. Deixou de ser simplesmente mato-grossense para assumir sua universalidade no toque suave e harmonioso que Abel Santos Anjos Filho imprimiu e que a Orquestra do Estado de Mato Grosso soube reconhecer e aproveitar.
O instrumento continua recebendo a atenção da camada mais pobre da população – a ribeirinha – que não renega o filho, para muitos um quase bastardo.
Quem sabe um dia os “intelectuais” volvam os olhos para o passado e abracem a causa tão bravamente defendida por Abel Santos Anjos Filho colocando, definitivamente, a Viola de Cocho em seu devido lugar.

Por Romulo Netto - jornalista e escritor.

sábado, 23 de abril de 2011

O INFINITO DESESPERO DE EMENTÉRIO

livro um


capítulo um

A água do veranico de janeiro escorrega ligeira pelas ladeiras carregando inúmeras pepitas de ouro, disputadas à tapa pelos moleques de Longoria. Nunca antes houvera tanto brilho nas beiradas das ruas. Parecia que Deus tinha, de repente, resolvido mostrar que era Pai de todos dando o pleno sinal da benevolência, assumindo o comando da situação. Há bem mais de vinte anos nenhum ser vivente dava o ar de sua graça por essas bandas, apenas a Igreja se lembrava do lugar, trocando de quando em quando o pároco. Assim, nós, pequeninos mortais, íamos seguindo em frente, driblando a vida e até mesmo a morte. Foi assim que tudo aconteceu.
Se alguém um dia ousou imaginar que Longoria seria visitada por duas pessoas, por decerto seria chamado de louco. Imagine visitada por um bando de tresloucados homens que varreram o vilarejo com a baba de seu ódio, rastelando túmulos e ares. O mundo tinha mesmo que ter um fim. E ele poderia ou estaria bem ali na cara de cada um de nós. Só não sei dizer se sabíamos ou queríamos acreditar.
Mas bem antes de o bando chegar, muito ocorreu. Pra ilustrar as acontecências é bem bom explicar um pouco de tudo, de cada vez, no sossego e aconchego do fogo do fogão à lenha, quando todas as verdades familiares são expostas sem medo e sem segredos. Ah! quê.
O silêncio antes cobria todo o vilarejo. Agora transformou-se em gritaria, informando a bamburra. Do pedreiro ao açougueiro, do padreco recém-chegado ao juiz de paz, todos queriam apanhar seu bocado de pedra dourada. O inferno tinha tomado conta de Longoria sem vivalma perceber a gravidade da situação.
Enquanto todos catavam o mais que podiam do ouro, a chuva dava demonstração raivosa querendo continuar por horas a fio. Ou era sinal do fim dos tempos, ou o diabo tinha tenência a mostrar seu poder como o do próprio bom Deus.
Se os lados opostos estivessem mesmo dispostos a iniciar a luta final, talvez não encontrassem lugar pra fazê-lo, tamanha a bagunça reinante em Longoria.
O divino e o profano não eram inimigos — pregava padre Colombo —, eles se sabiam irmãos, cada um se amando a seu modo.
De quando em onde a fúria assumia proporções desnusitadas e abusos aconteciam sem que — cristãos e bandidos — dessem muito valor ao resultado da pendenga.
O diabo por vez era mais assanhado e perdia as estribeiras, lançando impropérios, querendo impor suas vontades. Deus, em Sua quietude divina, fazia ouvidos de mercador, e assim a luta não chegava nunca ao fim.
Longoria nem de longe era pra ter esse nome esquisito. Ficava às margens do corgo Rico, o nome preferido por todos tinha que estar fundado nas origens. Porto Rico seria mesmo o melhor nome.
Padre Colombo, bisbilhoteiro como o dianho, deu de indagar: rico de quê? Só mesmo rico de pobreza. Segundo ele, aqui ninguém tinha nada de nádaras. Além de sonhos e esperanças, a cabeçorra do povo não pissuía espaço pra mais coisa alguma. Duvidava até que houvesse um lugarzinho sequer pro bom Deus. Ele, lá no Seu bom patrimônio deveras havera de compreender a longa ausência dos poucos filhos, pode até de ser por boa causa e razão. De momento em momento padre Colombo se adistanciava do Padre Eterno, questionando a imensidão da pobreza de uns e o desvario das riquezas de outros. No final, todos nem não nasceram das mesmas fudelanças e pernas abertas? Diferença havia? Explicasse Ele aos sofredores. Não deixasse o triste encargo pra que simples padre fosse martelar nas missas de domingo os tratamentos destinados pelo bom Senhor a seus filhos. A Bíblia não estava cheia de promessas de boa vida e riqueza pra todos que fossem fiéis seguidores do Cristo Rei? Ao depois, só miséria atrás de miséria. Eita mundão de promessa sem os cumprimentos devidos.
Nos repiques das discórdias, padre Colombo zombava dizendo que por isso mesmo as igrejas clandestinas cresciam e engordavam como boi no pasto. Num estava coberto de certezas? Pois bom! O Deus do céu decidiu pregar uma peça nos seus cristãozinhos debandando pro outro lado, ou por bem deveras o tal do coisa ruim acabara vencendo a dura luta. Mas será que ela já tivera bom começo? No avaliar de padre Colombo, tava tudo mais entranhado, nem podia perceber onde começava um e acabava o outro. O tempo diria. Somente ele e suas decisões.
Foi quando, abarafundado em suas divagações pós-missais, que Farnésio adentrou a capela de Santo Cristo. Se deu ao desplante de permanecer com as reluzentes armas, imenso crucifixo com Cristo pregado de ponta-cabeça, roupas negras, do chapéu às botas, até as esporas, tudinho dum negrume de reluzir, além de breu. Tinia de escuro! Tudo como jamais padre Colombo pudera ou havera de imaginar possível.
Ele sabia que pra tentar fazer prosperar sua pequena igreja, padre Colombo era chegado nos ouros. Fazia casamento de ajuntados, contrariando as normas cristãs, celebrava missa de corpo presente de suicidas, ou assassinos. Tudo no bom santo nome da sua santíssima e queridíssima mãe igreja. Quem era capaz de ter poder de recriminá-lo num mundo onde o mais dos sãos não passava de coxo, cego ou aleijado? No paço da igreja tinha todo tipo de pedra. O que se sentisse, ofendido apanhasse a sua e atirasse. Padre Colombo sabia protegido. Seus males e defeitos eram menores que os pecados de seus fiéis.
Pelo conhecer dos acontecimentos, padre Colombo tinha notícias de um Farnésio amancebado em Pirapora, amantíssimo querido de duas fazendeiras na distante Januária, casado em Vazante e, agora, arrastava as asas por moçoila casadoira em Longoria. Os pais da menina, temendo a sorte mais deles do que dela, se viam desprotegidos. Se corressem buscando adjutório em Paracatu nem lá chegariam, pois as balas de Farnésio os alcançariam antes. Na justa justeza só mesmo o amparo batinal de padre Colombo. Foi o que se deu e aconteceu... não sem baita confusão.
Nem bem Farnésio chegara na igrejinha com sua pompa criminal à vista, sentando na sacristia como se fosse o próprio papa, pigarreando e aguardando a aparição do bom padre Colombo, os pais de Malfada entravam pela segunda porta, como se não esperassem encontrar ninguém. Houve um rebuceteio geral. Arranca-rabo de fazer tremer quarteirões, se se tratasse de cidade grande. Mas ali naquele cafundó do mundo, nas fronteiras da donde o diabo perdeu as botas ou as precatas carreiras, foi tudo feito de pequeno susto. Farnésio levou mãos às armas, enquanto Tiana Madureira caía desmaiada e Mané Tiburcino, meio desregulado das ideias, sacava as duas num repente espantoso, provocando surpresa e emudecimento em Farnésio que já se considerava dono da situação. No por fim, eles se houveram por dar como mal-entendido. Arrebentara em seu palavrório dizendo vir pra comunicar ao padre Colombo a tenção mais bem-intencionada da paróquia em desposar em casamento religioso a menina Mafalda, por quem se enrabichara sem querer numa quermesse de Santo Antônio, quando ela nem bem prosperara nos seus doze anos. Daí em diante, e foram por mais de três anos, a dor de amor, sofrimento cotovelar, ou sabe-se lá até dor de corno foi crescendo, esquentando, e ele nem se deu por conta das loucuras que agora aparentava praticar. Tamanho amor sem resposta só causa dor incontida. O foguetório denunciador da situação comprovou.
Longoria perdoava o extremado sentimento de Farnésio. Só que nem não houvera ninguém combinado com Mafalda. Ela via, com outros olhos, outro desmesurado e sofrido amor. Dele e por ele a história de Porto Rico ou Longoria seria mudada e transmudada num breve espaço de tempo.

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TATÃO MALEMAIS, O CAPADOR DE ANJOS

capítulo 1

lembrança das folhas


Ficava ali na esquina do morro do Tempo espiando urubus e pássaros canoros. Sentado nos calcanhares, acendia fedorento cigarro com seu binga dourado, herança tardia recém-recebida após morte do barbudo Anastácio.
Muitos dizem, talvez por dizer assim investido em piedades, que aquela morte prematura o abilolara de vez. Agora estava ele prenhe de dor e assustamentos.
Acordava bem antes do amanhecer, contrariando todas possibilidades possíveis em um homem plenamente assumido nas preguiças diárias.
Não era de seu feitio se pôr sobre os pés antes do sol bordar os campos, as colinas, os ipês floridos, quando chegada a época. Nos poréns, por vezes inexplicáveis, o zunir dos miolos concedia a graça fazendo que pulasse da cama bem antes da hora.
Hoje, sábado bem morno, malemal a lua pálida em carregada formosura escondera a cara, os tênues fios do clarão do dia eram paridos pelo sol, estava ele prostrado, arranhando a bunda magra nos calcanhares rachados.
Apesar da poeira farta deu-se ao luxo de juntar mangabas, cajuzinhos-do-mato, gabirobas, cocos-xodós e até cagaitas, suas frutas prediletas. Caipiramente as chupava, deixando um grosso melaço escorrer entre os beiços de sitiante rude, depois olhava para a sombra do pequizeiro relembrando sonhos. Arrastava enorme quantidade de folhas secas formatando seu colchão, sabendo que, ao acordar, novamente teria aos pés alguns frutos para matar a incessante fome.
O sol lambeu a tarde trazendo na esteira o calor característico do verão tropical. Tatão Malemais respirou meio que dormindo, sentindo doce liberdade. Deixou-se relaxar suavemente antes de abrir os olhos. Aos poucos foi divisando longínquos horizontes, ora surpreso ora desconcertado. Estava a fim de sobreviver.
Arrastou consigo a modorra, separando alguns pequis, decidindo colocá-los sobre a pedra canga. Tão logo descansasse a vista, iria cortá-los jogando as gemas amarelas na pequena lata. Era, segundo ele, manjar dos deuses. Na falta de boa companhia, deixaria os ventos redobrantes partilharem a ceia pouco antes do sol ameaçar ir-se embora.
Fogo aceso no fogão improvisado, agora ele era senhor do tempo, dispunha de todos os minutos para pensar suas coisas.
Tatão ficava ali no quase sempre assuntando, espiando, comparando o olho de um boi imaginário com o olho de gente, pra sempre no depois decidir que um olho era só um olho colocado na cara de cada um, com suas vergonhas, seus encantamentos ou mesmo suas desistências. Ah bão! Assim era ele, Tatão, um sempre só em sua solidão de bicho quase homem.
Por ouvir dizer, tinha sempre notícias do mundo. Das políticas escutava tudo com atenção, pra no depois falar sozinho, bem alto no meio do mato, como querendo ser novidadeiro contando as notícias tim-tim por tim-tim pra cada pé de pau daquele seu cerrado magro.
— Eu neste vasto mundão de Deus tenho certeza tão somente dos meus ais. Ninguém enxerga a podridão porque quer. Ela viceja pelaí disforme e nos conformes de cada vidente. Por isso é que posso nos meus dizeres afirmar que fujo dos políticos, pois que eles se dizem e desdizem como cobra-cainana no seu desejo de botar mais crias nos campos cerrados. Cainana não pia nem despia quando quer mostrar suas vergonhas pra atrair seu macho. Mas o homem engravatado, o político, o que faz ele? Somente pensa nos enganos que pode, pois que sim, nos amedrontar com. Antão?! Hum-hum! Todo esse povaréu que passa aqui desimbala pro mundo. Arre! Uma carreira de fazer dó. Prefiro meu sossego, meus pitos, minhas desconfianças a sair desimbestado por aí afora, correndo atrás de promessas de políticos. O que tem de ser meu há de.
Absorto em seus pensamentos, Tatão Malemais nem num vê a noite escancarando a bocarra bem ali na esquina do diabo.
Ficou estacado sorrindo talqualmente bobo-lelé, olhando a chegada dos que deviam partir e a partida dos que deviam chegar.
Viu a brotação do capim novo após a primeira chuva setembreira, primaveril. Tudo se pertence, se assume como num sonho.
Ahã?! Tatão sabe que suas dores são apenas começantes. Os homens do lado de lá se sobram em mesuras, comesuras, acalantamentos, acobertamentos de roubos ou sem-vergonhices estranhas ao mundo seu, de cá de perto das vistas.
Se alembra da cara de jenipapo dum político vendido aos homens da revolução, eram todos falsetes de guerrilheiros, oportunistas, se abocanhando ainda mais da vida e dos corpos das filhas dos outros.
Tatão cerrou as sobrancelhas em tristeza-mor, deixando desabar na cara mal-anoitecida todas as angústias, frustrações de seu pequeno mundo. Tudo. Tudo se lhe era desalmado perrengueamento. Queria ir-se embora daqueles pagos. Avoar como um sofrê, batendo asas mansas na imensidão daqueles céus perdidamente tingidos de azul-anil de ferir olhos, mesmo os mais protegidos.
Sentia que sua missão naquelas bandas ia-se pondo ao fim, porém não sabia qual era seu norte. Dependesse só dele tinha muita força nas batatas das pernas pra encarar uma vastidão de estradas desconhecidas. O mundo havera-de caber na palma de sua mão. O faria girar como pião na gela, rodopiando, zunindo, deixando escapar aquele som choroso — zum-um-um-um — até tombar no meio do chão. Coisas suas repentinas, rebatendo na cabeça, causando sôfrego desassossego. Em bem verdade sabia sua sina, seu pesadelo, por isso acobertava desdizendo a todos.
Ele se reconhecia um homem-pássaro, sabiá-laranjeira preso àquelas paragens como tivesse enfiado os pés em visgo de mangabeira. Nas horas vagas do dia presumia-se cobra rastejando cerrado afora, modo descobrir ansiados segredos dos nambus. Calado, assistia dias a fio o festejado momento em que punham seus ovos debaixo de uns pés de paus rasteiros. Se anunciava nos mais diversos lugares como descobridor das vidas, pois não era raro aproximar dos ninhos no justo momento em que os ovos eclodiam brotando desinquietos passarozinhos de penugens ralas, de bicos abertos, batendo asinhas, esbaforidos pela fome.
Desde então se punha a conversar com todos os bichos, pelejando sem trégua nos ensinamentos. Quantas vezes bateu boca com nambus querendo que avoassem pro sol. Furibundo pela desobediência, calava horas seguidas. Nem o sábio sabiá ou o fogoso pássaro-preto nesses dias conseguiam arrancar uma palavra ou mesmo um sofrido ai.
Quando voltava às boas, destoava numa tagarelice sem fim, incompreensível. Só mesmo aqueles filhotes em pré-voo anunciado podiam entendê-lo balançando as cabeças, revirando os olhos como em desarroubos infantis aprovassem tudo que Tatão desatinava a falar, a gesticular.
Na boca da noite envinha aquela voz mandando ele ir embora, correr mundo, colher o futuro. O coração apertado insistia pra ficar, tinha medo de perder-se nas ruas do desconhecido. Mas como saber perigos sem tentar enfrentá-los? É preciso desvendá- -los, pra depois decidir se vale a pena continuar tocando em frente. Pro rumo dos rumos, soprava-lhe nos ouvidos a voz. Sem armas com que se defender, prometia que no amanhã buscaria novas pousadas. Carecia acalmar o coração pra modo do tinhoso não fraquejar nas estradas levando seus passos pro beleléu. Tinha que pôr carapaça de casca de jequitibá nas costas, vestir a alma das árvores, enfeitar o olhar com olhares de sofrê ou uirapuru, fortalecer as pernas com óleo de cabriúva, alimentar os sonhos com aquelas paisagens aprisionando ventos, flores e cantos dos pássaros em seus olhos de pica-pau.
Remoía as dores em silêncio, por vergonha de alguns bem-te- -vis descobrirem os sentimentos. Deserdava da memória a mais vaga possibilidade de ser o dono daquela esquina que o prendia, enfeitiçava, mormente naquelas noites parideiras de lua cheia. Estava perdido em um mundo que poucos conheciam tão bem como ele, mesmo assim tinha medo da próxima esquina ou dos próximos passos.
— Ai de mim! — dizia ele, querendo se desculpar consigo mesmo pela fraqueza relutante em deixar aquele lugar. Lá ele não fora parido. Ainda assim dava soco nas vozes que o incitavam a ir-se embora. Logo ele, um batalhador que enfrentava sol, chuva, pra conversar com árvores, bichos rasteiros e avoantes, ele que nas noites escuras reinava ao lado de imensos vaga-lumes, chorando copiosamente quando encontrava uma árvore morta ou restos de carcaça de veado-mateiro recém-banqueteado por solitária suçuarana. Batia-lhe aquela profunda tristeza paralisando o parco pensamento. O que dizer então quando suado parasse à beira de um córrego não mais encontrando matrinxãs e piraputangas para conversar, segredando acontecimentos novos, outros velhos, pois que nunca vira ninguém nesse mundão de Deus pra gostar mais de uma fofoca que as matrinxãs e as piraputangas. Os olhos marejados quase saltavam das órbitas, como quisessem buscar refúgio nas locas do córrego, que corajoso teimava resistir ao desmatamento de suas margens.
Tatão — posso dizer assim sem susto — é um quase santo, muito embora não tenha noticiado nenhum milagre seu, além das mirabolanças do conversar com o inconversável, no que se prova é que pássaros e árvores se lhes resposteiam as perguntas no justo silêncio que o momento exige. Acordo feito para não haver desconfianças, desavenças e traições. Curava seus bichos e arvoredo, no silêncio de duradouras conversas, gesticulando abruptamente, escancarando econômicos sorrisos quando um paciente dava sinal de melhora. Apois! Talvez fosse mesmo um santo aos avessos, protetor daquele cerrado manso, apaziguador de corações de corujas buraqueiras. Talvez guardasse seus milagres longe dos olhos gananciosos dos homens que moravam nas redondezas de sua esquina, talvez enfeitiçasse a todos com seus modernos, invisíveis milagres, que o homem de coração impuro jamais haveria-de ver ou sentir. Único no cerrado a falar a língua das flores, dos periquitos, vaga-lumes, embaúbas, pequizeiros. Herdeiro dos mais ancestrais segredos dos riachos e cachoeiras cristalinas. Folgado cantador de ternas melodias de amores passados que dobravam a curva do tempo sem deixar sinal de passagem. Esse o Tatão.
Nas conversas com seu umbigo deixava transparecer que o tempo da colheita se aproximava. Talvez antes das próximas chuvas saísse em busca do futuro, confiando um dia voltar e contar pra todos suas andanças. Ainda que as dúvidas fossem sobrepesando umas às outras, ele se fazia de bicho do mato pra dormir ao relento, tendo como proteção apenas um vasto cobertor de nuvens, rememorando passagens escondidas nos confins da memória, acreditando que no reino deste mundo será vencido e vencedor. Nos seus solitários monólogos anteouve, vozes empurrando para bem longe daquelas águas claras, do mágico trinar de diferentes pássaros recém-chegantes, que anônimos pré-anunciam sua prematura partida. Aqueles há que silenciam em protesto por pouco conhecerem Tatão. Também marcam presença presumidos, desconfiados viventes que não renunciam acompanhar o protetor aonde for.
Pensou momentaneamente metamorfosear-se em cigarra, sair cantando terna, suavemente, sua despedida, mas não era tempo de florescer cigarras nos ipês, lixeiras, mangabeiras e pequizeiros.
Cerrou os olhos se perguntando quando tempo restaria, talvez buscando entre suas artimanhas uma última maneira de atrair anjos para capá-los. Sobressaltado, levou a mão direita procurando a bainha do facão. Um suor frio percorreu o espinhaço como prenunciando mau agouro. Em vez de ficar preocupado, Tatão destrambelhou estrondosa gargalhada assustando preás, teiús, nambus, pássaros-pretos e joões-de-barro, estremecendo até os mais altos galhos das árvores da beira do riacho.

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FILISBERTO DAS ÂNCORAS

Acordou desajeitadamente feliz. Vislumbrou o azul do céu pelas frestas das paredes de pau-a-pique por onde um bafo de vento soprava-lhe na cara. Buscou sorrir seu riso maroto de quem não quer nada mesmo sabendo-se querer tudo. Caminhou como se levitasse buscando a cozinha. Riscou a pedra até sair faíscas com as mãos em conchas protegeu os gravetos. O costumeiro fogo alastrou-se. Filisberto das Âncoras atravessou a porta cofiando a barba com gestos mecânicos pegou o sarilho lançando a velha lata no poço arrancou a pouca água que seria parte do seu sustento no dia que prometia ser de um calor infernal. Virando as costas ao resto do mundo adentrou novamente na casa. O fogo crepitava. Sem lavar a cara coisa de luxo e não podia sempre se dar a ele despejou um pouco d’água na caneca cheia de folhas para a primeira beberagem do dia. Logo um cheiro forte invadiu recendeu na cozinha. Por sobre o fogão uma manta de carne de tatu recebia fumaça do angico da aroeira defumando calma diuturnamente. Com seu modo caipira de vaqueiro desgarrado retirou a faca da cintura lasqueou a parte mais gorda da manta. Na caneca improvisada de lata de massa de tomate depositou uma generosa dose de chá. Mascou a lasca da carne sorveu gole da beberagem. Por algumas horas o estômago estaria enganado.
Era tempo de pôr a cachola para funcionar. As arapucas precisavam ser armadas senão o almoço seria ainda mais minguado. Olhou de soslaio para as rachaduras dos pés esgaravatando até sangrar talvez buscando apurar o sangue. Apanhou uma folha de lixeira aparou as unhas. Acariciou a barba rala pensando seus setembros. Mais madura que sua dor somente a ausência da mulher que possuíra sonhando mas os calos nas mãos mostravam que ela jamais foi amada. Esparramou saudades do tempo que vasculhava a Chapadinha a Bitesga à procura de um nadica de nada daquelas mulheres que gostavam de rapaz com os primeiros fiapos de barba na cara. Ao longe a juriti lançava lamúrias aguçando sua fome despertando pra vida. Filisberto antes de sair precisava dar boas baforadas. Sentou sobre os calcanhares. Pegou a faca carcomida pelo tempo embora muito afiada preparou o cachimbo de talo de mamona sabugo de milho depositou dois fiapos de fumo enxertando o resto de ervas do mato para dar sabor ao prazer causado pelo amigo de perdidas datas. Ali naquele cafundó naquele tremembé onde o diabo perdeu as botas este era único companheiro um quase confidente. O cachimbar fazia-lhe um bem enorme quase do tamanho das estrelas. Mesmo houvesse outras pessoas nunca de núncaras repartiria essa alegria tanta. De quando em quando ele mesmo se pergunta se responde:
— O quitô fazendo aqui?
— Apois! Tô xurungando brincando de fazer saudades!
A vida era resumida nos poucos mas profundos encantos. Cada minuto espremia-lhe o cérebro com furor de vulcões seculares eternas surpresas erupções. A todas vencia com calma sabedoria de matuto preparado para a mais ferrenha das lutas: a sobrevivência num lugar onde nem o diabo aventuraria viver. Sair dali deixar aqueles pagos seja para buscar comida era martírio ele o cumpria com ritual que se repetia há não saber desde quando. Depois de bebido fumado estava teso pronto para começar a busca. Assuntou para o sol como perguntasse quão ardente seria no correr do dia. Deu meia-volta entrou no casebre. Abanou a cara com o chapéu de palha pegou o bornal o binga se benzeu diante da velha imagem de seu Santo Antônio como se novamente cobrasse uma mulher deu um basta nos pensamentos saiu com raiva por tudo que lhe batia na caçoleta. O chão de quase coisas pareceu-lhe escaldante seco inóspito gentil ao mesmo tempo. É preciso respeitá-lo pois a cada caminhar pode pregar surpresas inimagináveis.
Neste oco de mundo a solidão é recompensada com as alegrias causadas pelas descobertas nas entrelinhas das estradas. Filisberto espera vento mais forte fustigar-lhe as ventas para decidir qual caminho seguir. A lembrança dá-lhe a certeza de que um olho só lhe basta para enxergar a miséria do mundo. Sabia porém que aquela não era hora para distração assim preferiu enxotar tudo que não dissesse respeito à fome vindoura. Anuviou as idéias decidiu pôr os passos à frente do pensamento. Perto da cagaiteira-mãe assuntou ser bom lugar para colocar a primeira arapuca.

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sábado, 2 de abril de 2011

Não fala comigo! a história de um autista





O nascimento de uma criança diferente, não raras vezes, tem destruído uma família. Grande parcela dos casais aceita com relutância um filho deficiente. Talvez por não estar psicologicamente estruturada para carregar pela vida afora o “fardo” que não escolheu.
Porcertamente Martírio veio ao mundo abençoado por Deus, ainda que envolto numa aura misteriosa.
Somente no início Rutinha pensou ser a culpada pela deficiência do filho e se pudesse, teria escolhido um igual aos outros. A mesma tez morena, os olhos maiúsculos, azevichados, como os dela, os cabelos louros que, amiúde, contrastavam com a imensidão seca daquele sertão.
O tempo avança suas horas: o filho que viera em momento de quase penúria trazia consigo a diferença... e eles o amaram com todas as forças como prenunciassem que, diante de tamanha desigualdade, Martírio era o mais igual entre os iguais.
Não fala comigo! a história de um autista retrata, sobremaneira, que, embora não tenham planejado um filho diferente, Epigmênio e Rutinha souberam derrubar obstáculos, não permitindo à amargura do sofrimento privá-los de amar e ser amado pelo filho que, em sua diferença, conseguiu quebrar o gelo da desconfiança e os grilhões do preconceito.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

TARENÇO, O CAPANGA DE LATA


Capítulo I

Plug


Ia indo, solitário, lendo estrelas, revendo sertões, decifrando esquecidas, mal-dormidas luas sem que vivalma, por pequenina fosse, ousasse acompanhá-lo. Ele um pobre favorecidamente reconhecido deserdado das sortes, que, no bom andar de seu esquartejado destino, punha a cara bexiguenta à prova dos murros e urros da molecada. Em sua ruamundo tudo girava pra trás. Ele buscava sempre passear na contramão da vida, enquanto nos pequizeiros, as pombas do bando reinavam. Se dizia sozinho. Mas de suzim mesmo só tinha um buriti perdido no meio da selvagem vereda azul que sorrateira sobreviveu entre morrotes agarrados ao descampado, onde o Urucuia resolveu beber as águas de fracotes riachos.
Sentado sobre rachados calcanhares, escarafunchou unhas negras corroídas pelos pedregulhos, assuou duas vezes seguidas as narinas cabeludas, olhou vago pro céu assuntando as horas, sentindo pequena comichão na mão esquerda, ou foi na direita? O dedo indicador se torceu em contorcida dor de apertar gatilhos. Em sua paz mórbida, experimentou se renascer novamente no sangue derramado de próximos defuntos. Fosse pelo contrário. O sertão era sua roupa preferida. Nem o diabo travestido da mais faceira morena tomava sua atenção. Gastava horas magicando caminhos outras vezes regressos. O futuro não sabia como lidar com seus antecipados pensamentos. Era tão distraidamente perdido como se tudo não passasse de desafios pro tempo. De quando em quando se engabirobava esperando maduras cascáveis com intuito único de vê-las sofrendo, esperando despencar amarelado fruto que teimava resistência não cedendo nunca, antevendo de véspera que o chão daquele cerrado sempre foi sinônimo de morte.
Logo ele viril patrão de seu desanonimado destino. Por certo jamais se cedera em angústias, mesmo quando a fome, a sede, o cercavam nas mais plenas voracidades.
Acreditava que nascera pra se perder em derradeiras glórias encontradas nas bandas esquerdas do Urucuia ou, sabe-se lá, mesmo até nas próximas sofridas águas do desavisado Paracatu.
Ele que nunca foi seu dono, agora, depois de tanto sol resvalando pelo velho chapéu furado se via possuído por senhor desconhecido. Viramundo. Vira-lata faminto, sanguinário. Porco sedento, desenfreado. Herói de machucados instantes. Um só que se busca no buscar dos outros, que se olha penetrando no terceiro olho do que nunca foi ou jamais será.
Plug marcou sua vida sobre tantos destinos, pouquíssimos sóis, luas derradeiras. Descansou sob a sombra de esquecidos jatobazeiros, bebeu da água das pequenas cacimbas anfitriãs, jantou no descampado dos sertões milagreiros as carnes ensopadas de tatus encardidos pelos tempos imemoriais, sobressomados, sobreamassados por mandiocas amarelas de prenhez precoce. No sonhar de seu pesadelo príncipe, desejou mumificar todos os gostos como se o estômago satisfeito conseguisse reter o milagre da alimentação per omnia secula seculorum.
Mal completara vinte e cinco anos, quando decidiu arranchar a vida perto de secular cumbaruzeiro que o tempo pariu esquecendo no pós-depois das terras do coronel Teodoro Fuquefuque. Fincou ali dúvidas, saudades, dores, lembranças, sonhos e ilusões. Mais que isso. Jurou de pés juntos sair dali só morto. Suzim, suzim mesmo, não arredaria um piscar de olhos. Bom pois! Assim fosse, se sucedesse. No quê! Ele, seus santos, entrecortados por imensa curriola de santas, desafiariam sertões, cerrados, no justo distribuir de sentenças sem defesas ou desavenças. Se somaram alguns penosos anos de solidão, até que Nhá Parteira perdida, ou pode té ser deixada de propósito, pôde descortiná-lo peladão, peladim nadando num vai-vem profundo nas foscas águas do Urucuia. Meio que desavisada, desavergonhada ,gritou pelo moço implorando adjutório. Era de justa necessidade chegar o quanto antes nas terras de seo Izé Cabedelo onde assistiria Sinhá Mocinha em seu parto de difícil primeira parição. Um olho no tresoitão, outro meio que avermelhado na peixeira afiada, moveu o corpo vagaroso, mas acobertado de decisão. Ouviu os rogos da parteira, torceu a boca, coçou o subaco com a mão esquerda, deixando entender que a de bom uso estava livre. Peladão, peladim. Saiu das mornas águas como veio ao mundo, deixando seus balangandãs sacudirem ao ar em frenética música ancestral. Se pôs em guarda já sabendo que de graça ninguém chegava àqueles pagos.
Antes, bem antes, de mirar os olhos de Nhá Parteira, pegou pequeno pedaço de fumo goiano do picuá, preciso, mas com vagar, cortou esparramando em seguida sobre a fina palha de milho. Olhou pro longínquo horizonte sobrefechando seu olho ruim, ao mesmo tempo em que enrolava o palheiro. Desatencioso, procurou seu binga no bolso da calça mesmo sentindo o peso sobre o coração. Acendeu o pito. Somente após sentir na cara a fumaça quente, o cheiro suave do fumo, se deixou conduzir pela trepidante conversa da alquebrada parteira.
Ali lançara sua sina. Se conduziu ou foi conduzido pela contagiante conversa da velha-moça. Gastaram horas de perdidos sóis, enfraquecidas luas, até chegarem aos domínios de seo Izé Cabedelo. Três ou quatro homens descansados, de pronto, se ergueram quando ouviram os lamentos de Nhá Parteira. Pra eles naquela hora ela nem existia. Mediram de rabo a cabo o acompanhante. Relutantes, deixaram que o estranho seguisse em frente rumo à casa-grande.
Deus e o diabo seriam testemunhas do que viria daí em diante.

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CONTOS DOS GERAIS


Moça na Bicicleta

Costumeiramente, nós a víamos pedalando sua bicicleta Leão de pneus finos pelas ruas do Santana, Alto do Córrego, caminhos estreitos da Chapadinha.
Na Direita, ela parava sempre pra trocar um fiapo de prosa com Julinha, Rosilene, Célia, Nira, dona Enedina e Preta.
Era muito singela. Lavínia, embora fosse da família mais rica de Nasquebradas, carregava no sangue a simplicidade.
Naquela manhã ensolarada, ela desceu da bicicleta e ficou especulando como tínhamos nos saído nas provas parciais. Segredou-me que estivera péssima em Matemática. Se esforçava pra compreender as explicações do professor Gesner, mas de nada adiantava. No segundo semestre, tinha que fazer média boa pra não ser reprovada, senão o destino seria o colégio São Domingos, em Araxá. Alguns minutos depois, Lavínia foi embora deixando-nos com o coração em frangalhos, acelerado. Também pudera. Estava vestida com um short minúsculo, deixando entrever que dispensava calcinha. Os bicos dos seios duríssimos apontavam em nossa direção como dois punhais. Corremos a turma toda pra casa grande, velha construção abandonada ao lado da Santa Casa de Misericórdia, e nos perdemos numa punheta que pareceu durar horas. Cada um de nós possuiu Lavínia inúmeras vezes em nossos sonhos. Loucuras de inverno prenúncio de primavera.
Todos tínhamos vontade de convidá-la pra passear mas na hora “h” perdíamos o fôlego com medo de um não. Nunca saberemos se recusaria um convite.
A sexta-feira amanheceu ensolarada, bonita. A Lyra Euterpe Nasquebradense, desde cedo, atacou furiosa com seus dobrados, marchas anunciando que o dia de São Cristóvão seria alegre, festivo com desfile de caminhões, charretes r carroças como acontecia todos os anos.
Depois do café com bolo de arroz em profusão como tínhamos combinado, iríamos à rua Goiás assistir ao desfile; lá pelas nove, rumaríamos pro São Sebastião, onde pretendíamos passar o restante da manhã até a tarde.
Vovô junto com Cadinho ficou encarregado de preparar as varas de pescar, iscas, faca, sal, farinha, matula e uma lata pra fritarmos os pescados. Quem sabe alguns piaus, na pior das hipóteses: no açudão havia uma fartura de piabas graúdas.
Do Santana até o São Sebastião, caminhada pra mais de hora. Sempre a fazíamos parando à cata de alguma fruta, às vezes de um tatu, ou de uma preá que, com sorte, abatíamos: início de nossa farra juvenil. Aquele São Cristóvão não havera de ser diferente.
No alto do céu azul despossuído de nuvens, o sol prometia brindar o dia com muito calor. Mais que isso, jamais sonharíamos.
Juntos, buscamos nosso recanto: João Queijo, Vovô, Cadinho, Edvar, Anum-Branco, Izebeiju, Pexico, Robertim, e eu. As meninas pediram, insistiram, choraram, rogaram pragas tentando nos convencer a deixá-las nos acompanhar. Nem que não. A estrada era longa, as meninas só atrasariam nossa jornada.
O sol estava a pino. Tiramos as camisas; as costas ardiam quando atingimos a porção norte do açudão. Era o ponto mais farto de piaus, piabas, além de guardar as pedras que transformávamos em fogão pra fritar ou assar peixes, nambus, tatus.
Da estrada, viemos de mãos abanando. Restava a pescaria ou a descoberta de frutas; fome, porém, não teríamos, pois trazíamos na matula farinha, rapadura, alguns pães.
Meia hora de pescaria. O jacá já estava quase cheio, pelo menos uns dez piaus que se debatiam movimentando de um lado pro outro aquele cesto de bambu deixado dentro d’água pra conservar vivo o pescado.
De repente, ouvimos um grito. Quem achou primeiro a bicicleta, logo depois o corpo, foi João Queijo que preferia buscar frutas ao invés de dar banho em minhoca, como ele definia nossas pescarias sempre.
Corremos todos. Lá estava ela nua. Os seios duros com sinais de mordidas selvagens; o sexo machucado, as pernas grossas torneadas longas manchadas de sangue. Os olhos expressando terror, incredulidade. A garganta com corte profundo. Nossa Lavínia morta, estuprada. Raspava os cabelos da parte de baixo em forma de estreito triângulo eqüilátero de cabeça pra baixo, pouca espessura, em olhar de relance acredito não mais que meio centímetro de altura. Apesar de machucada e morta, nunca vi Lavínia tão perdidamente linda. A lembrança de sua xandanga coberta por aqueles tênues fios de cabelo em forma triangular, até hoje decorridos mais de quarenta anos, não me sai da cabeça.
Nem sei bem como reagimos. Decidimos que Queijo e eu iríamos correndo pra Delegacia. Mais de uma hora depois, chegamos com o coração na boca, o terror estampado na cara. Só conseguimos dizer:
— Seo Adriles! Lavínia está morta na beira do açudão.
Ele gritou pelo Cabo colocou-nos na traseira do Jipe e rumou pro local indicado, seguindo a estrada que conhecia de cor, salteado.
Dez minutos depois, já estava examinando o corpo de Lavínia. Ao lado de um pé de caju do mato, encontrou pequena faca de cabo de chifre de boi. Apenas sorriu, pensando alto que o crime estava solucionado.
Mandou-nos pra casa. O Jipe levaria o corpo de Lavínia pro necrotério do Hospital do Vale. Foi a última vez que vimos Lavínia. Faltou-nos coragem para olhá-la dentro do caixão...

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BOM-DIA, SENHOR PRESIDENTE


CAPÍTULO I

Os Jucas

Todo mundo vai estranhar esta narrativa. (Eu de mim ti digo como vão ser doídas essas doidas horas para narrar o que nos foi narrado de um Juca pr'outro. Somem-se também as dificuldades que eu tão deixadamente sozinho penarei pra dizer tudo que presenciei. Foi mesmo uma danada vida de cão. A deles. A minha.) Ela começou com meu tataravô Juca. Termina comigo Juca Tataraneto. As venturas e desventuras ocorridas durante a vida de Donabrina foram passando de pai pra filho. Por isso há algo truncado em grande parte da história.
Juca Tataravô disse repetidas vezes a seu filho como foi a longa travessia dos Campos Gerais até Goiandira. A chegada em Mimoso. Cada um de nós assistiu passivamente às conquistas dos meninos, dissera ele.
Juca Tataravô, o primeiro membro da família, desfrutou de regalias. Teve a afeição de Donabrina, Xixico e Rosendo. Vagava pela casa abanando o rabo. Sentava nos pés de Xixico quando politizava o caçula. Contou ao filho as agruras da separação de Zé Gargolino.
Juca Trisavô participou do crescimento de Rosendo, assistiu à morte de Donabrina quando ele ainda estava preso.
Juca Bisavô jamais perdeu um noticiário das oito da noite. Assistia desconfiado pré-sabendo que Rosendo estava sofrendo injustiças e ataques por parte dos adversários. Sem dar um rosnado sequer viu os apresentadores do Jornal das 20 anunciarem que ele fora derrotado pela primeira vez.
Juca Pai não era muito chegado aos telejornais. Como estava sempre sendo levado pela esposa de Rosendo pra cima pra baixo, acabou por se acostumar. Viu Ataliba Matusalém corromper mundos para eleger e reeleger. Morreu atropelado no dia em que o Jornal das 20 festejou a recondução do itinerante-presidente.
Sou o tataraneto. Acompanho a família desde a segunda derrota. Nasci do cruzamento entre Juca Pai que se enrabichou com uma cadela da vizinha. Foi um romance conturbado por não ser visto com bons olhos pelos filhos menores de Rosendo. Mas não houve barreira capaz de impedir o encontro dos dois. Escondiam-se no quintal de dona Gumercinda fazendo a festa. Uma semana inteira empregada em transas. Quando mamãe apresentou sua prenhez, Rosendo pediu um filhote. Por certo queria um substituto pra Juca Pai, morto de morte recente.
Cresci sem carinhos alardeados. A qualquer sinal de indisposição era levado ao médico veterinário. Para um vira-lata, fui bem tratado. Não trago recordação de ter sido colocado no colo por nenhum dos meninos. Somente dona Alaíde, mulher de Rosendo, dispensava alguns momentos do dia para verificar se não estava com sarna, pulga ou carrapato.
Rosendo de quando em vez estalava os dedos tentando chamar minha atenção não dava muita bola, pois, mal chegava perto, o maldito telefone tocava. Lá ia ele atender a compromissos. Assim achei que era melhor não criar muitos laços.
Herdei histórias de meus antepassados. Gostaria poder narrá-las sem repetição das palavras. Não fui educado para ser contador de causos. Repito como fosse o falecido Caburé-Falador os acontecimentos talequal os recebi.
Desde o início tinha decidido que seria o narrador sem estar dentro da narração. Por vezes a cabeça ficava rodando, talvez pela já avançada idade, não que esteja senil. As atitudes tomadas pela cúpula do poder, nelas incluo meu dono, abalaram minha convicção na liberdade nos homens. Hoje acredito que ela só pode mesmo ser de mentira.
Rosendo andou meio desconfiado que eu pudesse estar eternizando os desmandos dele. Ameaçou mandar-me para o pelotão de fuzilamento. Não estarei já muito velho pra tamanha humilhação? O que presenciei neste palácio ou o contado por meus ancestrais não pode ficar guardado, esquecido numa gaveta qualquer.
A noite cobre com um manto escuro todo imenso jardim causando arrepios. Sei que, ao fechar os olhos, verei Rosendo na sala dos espelhos dizendo: - bom dia, senhor presidente! Aí entrarei novamente no mundo dos meus pesadelos.

CAPÍTULO II

Retirantes

Muitos naquele sertão árido ainda cismavam ouvir últimos estrondos dos canhões, bombas caindo por sobre uma longínqua Alemanha embora vesp'rasse outubro, da guerra só restassem o caos, miséria, fome e destruição. Ali pouco se tomou conhecimento das cruentas batalhas nos gelados campos de além-mar. A vida tinha sentido, tomava rumo no guardar cabras, apanhar macambira, carregar pesadas latas d'água saloba por sobre a cabeça. Os meninos maiores caçavam passarinhos munidos de estilingue, bodoque, alguma arapuca armada escondida, pois que o milho quase sempre roubado fazia falta na alimentação diária. Um desperdício sem retorno no dizer dos mais velhos.
De há muito Zé Gargolino embuchara a mulher. Depois sumira à cata de emprego, vida melhor, deixando pra trás um bando de filhos quase desconhecidos.
Dona Setembrina maismente chamada pelos conhecidos de Donabrina matava as horas alisando a barrigona. Na certeza de outros partos, já sabia se avizinhando o momento de mais um. No escondido dos pensamentos escolhera nome: Rosendo. Tinha por si que seria mais um minino-home. Ainda banhada em naturais alegrias, imensas, havera de dar a ela, aos irmãos. Seus santos milagreiros de rezas sem velas alumiariam o caminho deserdado de bastanças mas refestelado em puras fés.
Apenas o ano outubreceu-se, ela desanda sentir dores, contrações múltiplas. Avizinhava a chegança de mais um na fila da fome. Malemal deu tempo pro Quincas sair correndo aos gritos chamando por Dasdores. Rezadeira, parteira que anunciou aos quatro cantos ventos a hora maior de Donabrina. Maslesperou Quincas sôfrego, cansado, gaguejante falar, desembalou-se em carreira descontida. Sina sua, sorte dela. O vivente nasceria em tresloucada paz.
No espremer das luzes a cria veio ao mundo. Sem cânticos, glórias, roupas, charutos ou qualquer tipo de beberagem. De pronto sugou a bom sugar o peito farto da mãe. Donabrina esparramava felicidade pela cara abatida pela dor, sofrimento. Deixara se envolver pela segunda cabeça do marido quando as crianças dormiam a sono solto. O vistoso resultado mamava sossegadamente. As mãos calosas repartiam carinho acariciando os cabelos pretos da criança.

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quinta-feira, 31 de março de 2011

AS JAGUNÇAS



o bando


malserá de mim todas essas agudas lembranças: perdidas em vagueios noturnos me acusando solene por não ter sido a mais melhor de todas jagunças dos Gerais a que! no bom palavrear prefiro no sossego ser deste lado os gerais baiano não têm as graças nem invencionices deste meu pedaço eu me perdi encantadoramente aqui no meio de um bando de serenas mulheres cuja única paixão foi no desde em sempre limpar cuidadoso a carabina de dois canos do tresoitão encimado por boa mira gentil honesto sem nunca negar fogo que na hora do tira-teima é que se prova bom zelar pela ferramenta de trabalho nunca me dei ao luxo separando o corpo de minhas guardas até parece que a negra parabélum luzidio tresoito presente de herdadas posses de mamãe se me eram extensão de meu corpo cuidava de tê-los nos conformes além da papo-amarelo tinindo brilhosa sempre à mão na cabeça da sela como se olhasse somente pra frente pronta pra me defender dos perigos dos sertões das gentes atravessei meus atarracados vinte dois anos dez com o trio inseparável nem n’hora da morte de Nhacá melhormente minha mãe desdisse minhas verdades: largo tudo no mundo afrouxo olhares desriso meu riso de fim de tarde benzo a boca em cruz satisfazendo todas as fomes mas delas não estou sempre bolinando um ou afagando outras pra no dizer de Leoncina nenhuma delas se esquecer que estou por perto dentro do assunto no comando ã é! hoje arranchei aqui num descampado bem próximo do desencantar das águas do rio Paracatu quando sorrateiro ele se deixa seduzir pelo véio Chico parecendo sicuri engolindo vagarosa sua presa meu bando firmado agora tem de todas um pouco: Baturité negra olhos profundos mansos boca larga soltando sorrisos com seus dentes amarfinados por desgosto de suas gentes caiu no mundo assombrando o cerrado-sertão desvagado em poeirama brutal foi a primeira que topei no meio de meu caminho quando sem relutar alcei mira na minha profissão futura: teria função única desencorajar coronéis a usar mulheres como fossem bichos desprezíveis Baturité vinha fugidia dos alongados do Escuro Grande onde fora maltratada pela fanchona Isabelê mesmo sabendo que a mocinha desqueria seus amores desconformada perseguia ameaçava prendia no porão da casa grande na Flor de Maio fez aconteceu até que um dia Baturité fingiu nas concordâncias de dar receber carinhos daquela uma depravada por mor segurança aloitou no sutiã pequeno canivete lâmina afiada dona de si Isabelê lambeu suas orelhas suspendeu a saia cravando dois grossos dedos de vaqueira calejada na xandanga de Baturité que naquele instante viu estrelas – no dizer dela – acalmando raiva distraiu Isabelê enquanto entre sussurros tirava a blusa alcançando o canivete rápida como raio vê no desvão da vida seu futuro decide pela crueza salvaguarda de instintos afrouxa os braços num abraço de morte crava a lâmina no pescoço da mulher-macho desvencilha do corpo em agonia ri seu riso de liberdade apura fuga nossos olhos se bateram única vez promovendo confianças desdaí uma prontificava continuação da outra juntas viveríamos muitas horas de jagunçagem tranqüila desprovidas de medos por nos conhecermos cada uma a si mesma de dentro pra fora fora pra dentro firmamos opinião em bom prosear que aquele arranchamento era lugar de duradoura permanência: bem provido de caça pesca um morrote com imensas pedras da donde se descortina boa visage daquela porção do sertão geralesco no bater dos olhos trombetear do coração pedaço de chão pra longa paragem desde em que cautela manhosa cada uma cuidasse da sua o tremelê fica sempre na espreita espiando nossos momentos de fraqueza de boa verdade sacrifico minhas palavras: em coração jagunço amor não háde fazer pousada o sentimento trai a confiança desregula precauções transformando caçador em caça: ah! não é? pois! o brilho do sol esfacelado sobre as águas do Paracatu descoloriu meu olho das esquerdas justo quando Baturité colocou a mão ao derredor da orelha ouvido acostumado ao andejar das codornas pacas tatus por em sobre aquele tapetear extremoso extenso em formação desregular natural que era sendo cada qual fruto de diferentes árvores pressentiu aquele um mas ele não ataca no dia preguiçoso caça suas presas perder da noite quando todas cegueiras tomam conta de nossos olhos apois o danado não mais me pareceu apurando escutar ser bicho gente pudera ser homem ou haverá ser tão perigoso quanto ressabiada ela mostrou as caras quando a tarde ensaiava primeiros passos repuxando cabresto do esguio cavalo mal enxergara crescer dia com um céu de quase agosto enevoado pela fumaça das caieiras adocicada no frutejar dos arvoredos se bem me vira se escondera de mim como houvesse deparado no escuro com ele: o tal esconjurado não de todo ela se abancara parada bem defronte mira da dois canos de Baturité prontinha prum disparo rápido mortal certeiro tiro que toda jagunça deseja pra sua morte sabendo-se alvo disse em seu dizer mineirês: – sou de paz! venho de bom vir Deus suas anjas sejam nossas guias na tranqüilidade de suas santas me achego no perdido de todos pensamentos se requereu estranha em pedir guarida a desconhecidas raspou a última saliva da boca anunciando nome: Euflavínia disparou olhares procurando um lugar pra se acomodar não tinha apanhou afiado facão espetado num baruzeiro cortou quatro forquilhas preparou pequeno jirau que dali pra frente seria seu banco onde tomaria café almoçaria jantaria fumaria bom palheiro ao cair a noite admiraria estrelas lua quando chegasse sua vez não abriu uma palavra da boca esguia observava todo movimento como se temesse tocaia logo logo nos acostumamos a seus silêncios cheguei à conclusão que cada um vai parindo seus dizeres de acordo com a necessidade nem antes nem depois esta a lei em vigor nos sertões dos Gerais ainda não tinha acabado das saudades quando ouvimos ao longe tropel de vários animais invadindo calmo nosso espaço ficamos as três em ponto de bala qualquer atitude suspeita armas engatilhadas cuspiriam fogo ensurdecedor na crueza das jagunças não há muito lugar pra se perder em pensamentos ou adivinhações simples vacilo custa preciosas vidas melhor sejam de nossos desconhecidos inimigos as três prendemos respiração esperando surgir do inesperável eram duas esporeando montarias fugindo a bom fugir como se do cão fosse por pouco não nos deixaram pra trás num fustigo do freio que elas pararam súbitas empinando cavalos no susto relincharam estrondosos de armas nas mãos recepcionamos as chegantes elas em repentino salto apearam eu me senti pequenina diante primeira morena cabelos curtos olhos verdes pernas compridas duas armas caíam quase nos joelhos grunhiu o nome: Aeuvi a outra não menos bela nem alta com sorriso debochado na boca carnuda carecendo de boas chupadas mostrou a alvura dos dentes bem tratados ao mesmo tempo que alardeava: sou Aeuouvi mal chegaram foram direto pra praia Desdentada ali pude ver a vaidade das duas descalçaram botas de cano curto unhas pintadas de esmalte vermelho sangue mostraram que eram moças finas na volta ao acampamento outra surpresa: abriram pequena valise retirando batom espelho pintaram os lábios carnudos estenderam capas sobre o chão se puseram a ver sonhar estrelas estávamos cansadas pela lida da construção da choupana quatro braços a mais eram bem-vindos no amanhecer veríamos como se comportariam Euflavínia Baturité gastaram boa parte da noite proseando lembranças antigas as gêmeas fingindo ressonar ouviam palavra por palavra quando a noite adormeceu deixando primeiros raios de sol invadir a manhã tinham feito café fritaram ovos de cascavel com carne seca sentadas sobre duas toras de buriti estavam perdidas em leituras Aeuvi de quando em quando sorria diante alguma passagem do surrado exemplar de Sagarana enquanto Aeuouvi balançava cabeça passando ligeira cada página amarelada manchada de gordura de Vidas Secas eu de mim pensei comigo mesma: essas duas não são gente de plena jagunçagem só o tempo porém mostraria quanto estava errada mesmo a mais curtida de nós não gostava de enfrentar a barra do Paracatu nas primeiras horas da manhã ou ao entardecer uma nuvem de muriçocas mutucas tomava conta da beira-rio mal deixando a gente respirar mas lá estavam duas nas barrancas pescando antes do sol começar a castigar as costas já tinham boa dúzia de crumatás limpas abertas retalhadas ao sol estiradas no jirau secas cozidas com mandioca amarela eram prato insuperável por volta das onze horas que é quando o flutuante do céu está quase a pino Aeuvi preparou cova rasa longa o suficiente pra colocar três ou quatro graúdas crumatás acendeu fogo com grossos galhos de angico deixando formar intenso vermelho braseiro Aeuouvi veio do rio com dois baldes de água foi fazendo consistente massa liguenta da terra retirada da cova rasa esparramando por sobre tapete de folhas de sambaíbas leve camada de barro enquanto a gêmea trazia pescado como quem recheia pastel cobriu crumatás com dupla camada daquele barro braseiro quase sem fumaça mostrava seu calor à distância com surrada pá de campanha removeram brasas cinzas cuidadosas colocaram em seguida peixes encapados que foram cobertos por caprichosa porção de angico flamejante ainda nem era meio dia quando as gêmeas bateram nas panelas chamando as outras pro almoço retirada camada de barro raspadas as peles escamas abertos o que se viu dentro foi apenas um engruvinhado de vísceras intestinos dos peixes limão sal fizeram a festa as duas além de tudo eram surpresas na cozinha Baturité Euflavínia eu lambemos beiços estalando línguas diante saboroso almoço completado com apimentada farofa molhada de taioba dali em diante enquanto permanecessem com o bando sabíamos que não mais passaríamos fome

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