sexta-feira, 1 de abril de 2011

TARENÇO, O CAPANGA DE LATA


Capítulo I

Plug


Ia indo, solitário, lendo estrelas, revendo sertões, decifrando esquecidas, mal-dormidas luas sem que vivalma, por pequenina fosse, ousasse acompanhá-lo. Ele um pobre favorecidamente reconhecido deserdado das sortes, que, no bom andar de seu esquartejado destino, punha a cara bexiguenta à prova dos murros e urros da molecada. Em sua ruamundo tudo girava pra trás. Ele buscava sempre passear na contramão da vida, enquanto nos pequizeiros, as pombas do bando reinavam. Se dizia sozinho. Mas de suzim mesmo só tinha um buriti perdido no meio da selvagem vereda azul que sorrateira sobreviveu entre morrotes agarrados ao descampado, onde o Urucuia resolveu beber as águas de fracotes riachos.
Sentado sobre rachados calcanhares, escarafunchou unhas negras corroídas pelos pedregulhos, assuou duas vezes seguidas as narinas cabeludas, olhou vago pro céu assuntando as horas, sentindo pequena comichão na mão esquerda, ou foi na direita? O dedo indicador se torceu em contorcida dor de apertar gatilhos. Em sua paz mórbida, experimentou se renascer novamente no sangue derramado de próximos defuntos. Fosse pelo contrário. O sertão era sua roupa preferida. Nem o diabo travestido da mais faceira morena tomava sua atenção. Gastava horas magicando caminhos outras vezes regressos. O futuro não sabia como lidar com seus antecipados pensamentos. Era tão distraidamente perdido como se tudo não passasse de desafios pro tempo. De quando em quando se engabirobava esperando maduras cascáveis com intuito único de vê-las sofrendo, esperando despencar amarelado fruto que teimava resistência não cedendo nunca, antevendo de véspera que o chão daquele cerrado sempre foi sinônimo de morte.
Logo ele viril patrão de seu desanonimado destino. Por certo jamais se cedera em angústias, mesmo quando a fome, a sede, o cercavam nas mais plenas voracidades.
Acreditava que nascera pra se perder em derradeiras glórias encontradas nas bandas esquerdas do Urucuia ou, sabe-se lá, mesmo até nas próximas sofridas águas do desavisado Paracatu.
Ele que nunca foi seu dono, agora, depois de tanto sol resvalando pelo velho chapéu furado se via possuído por senhor desconhecido. Viramundo. Vira-lata faminto, sanguinário. Porco sedento, desenfreado. Herói de machucados instantes. Um só que se busca no buscar dos outros, que se olha penetrando no terceiro olho do que nunca foi ou jamais será.
Plug marcou sua vida sobre tantos destinos, pouquíssimos sóis, luas derradeiras. Descansou sob a sombra de esquecidos jatobazeiros, bebeu da água das pequenas cacimbas anfitriãs, jantou no descampado dos sertões milagreiros as carnes ensopadas de tatus encardidos pelos tempos imemoriais, sobressomados, sobreamassados por mandiocas amarelas de prenhez precoce. No sonhar de seu pesadelo príncipe, desejou mumificar todos os gostos como se o estômago satisfeito conseguisse reter o milagre da alimentação per omnia secula seculorum.
Mal completara vinte e cinco anos, quando decidiu arranchar a vida perto de secular cumbaruzeiro que o tempo pariu esquecendo no pós-depois das terras do coronel Teodoro Fuquefuque. Fincou ali dúvidas, saudades, dores, lembranças, sonhos e ilusões. Mais que isso. Jurou de pés juntos sair dali só morto. Suzim, suzim mesmo, não arredaria um piscar de olhos. Bom pois! Assim fosse, se sucedesse. No quê! Ele, seus santos, entrecortados por imensa curriola de santas, desafiariam sertões, cerrados, no justo distribuir de sentenças sem defesas ou desavenças. Se somaram alguns penosos anos de solidão, até que Nhá Parteira perdida, ou pode té ser deixada de propósito, pôde descortiná-lo peladão, peladim nadando num vai-vem profundo nas foscas águas do Urucuia. Meio que desavisada, desavergonhada ,gritou pelo moço implorando adjutório. Era de justa necessidade chegar o quanto antes nas terras de seo Izé Cabedelo onde assistiria Sinhá Mocinha em seu parto de difícil primeira parição. Um olho no tresoitão, outro meio que avermelhado na peixeira afiada, moveu o corpo vagaroso, mas acobertado de decisão. Ouviu os rogos da parteira, torceu a boca, coçou o subaco com a mão esquerda, deixando entender que a de bom uso estava livre. Peladão, peladim. Saiu das mornas águas como veio ao mundo, deixando seus balangandãs sacudirem ao ar em frenética música ancestral. Se pôs em guarda já sabendo que de graça ninguém chegava àqueles pagos.
Antes, bem antes, de mirar os olhos de Nhá Parteira, pegou pequeno pedaço de fumo goiano do picuá, preciso, mas com vagar, cortou esparramando em seguida sobre a fina palha de milho. Olhou pro longínquo horizonte sobrefechando seu olho ruim, ao mesmo tempo em que enrolava o palheiro. Desatencioso, procurou seu binga no bolso da calça mesmo sentindo o peso sobre o coração. Acendeu o pito. Somente após sentir na cara a fumaça quente, o cheiro suave do fumo, se deixou conduzir pela trepidante conversa da alquebrada parteira.
Ali lançara sua sina. Se conduziu ou foi conduzido pela contagiante conversa da velha-moça. Gastaram horas de perdidos sóis, enfraquecidas luas, até chegarem aos domínios de seo Izé Cabedelo. Três ou quatro homens descansados, de pronto, se ergueram quando ouviram os lamentos de Nhá Parteira. Pra eles naquela hora ela nem existia. Mediram de rabo a cabo o acompanhante. Relutantes, deixaram que o estranho seguisse em frente rumo à casa-grande.
Deus e o diabo seriam testemunhas do que viria daí em diante.

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