sábado, 23 de abril de 2011

O INFINITO DESESPERO DE EMENTÉRIO

livro um


capítulo um

A água do veranico de janeiro escorrega ligeira pelas ladeiras carregando inúmeras pepitas de ouro, disputadas à tapa pelos moleques de Longoria. Nunca antes houvera tanto brilho nas beiradas das ruas. Parecia que Deus tinha, de repente, resolvido mostrar que era Pai de todos dando o pleno sinal da benevolência, assumindo o comando da situação. Há bem mais de vinte anos nenhum ser vivente dava o ar de sua graça por essas bandas, apenas a Igreja se lembrava do lugar, trocando de quando em quando o pároco. Assim, nós, pequeninos mortais, íamos seguindo em frente, driblando a vida e até mesmo a morte. Foi assim que tudo aconteceu.
Se alguém um dia ousou imaginar que Longoria seria visitada por duas pessoas, por decerto seria chamado de louco. Imagine visitada por um bando de tresloucados homens que varreram o vilarejo com a baba de seu ódio, rastelando túmulos e ares. O mundo tinha mesmo que ter um fim. E ele poderia ou estaria bem ali na cara de cada um de nós. Só não sei dizer se sabíamos ou queríamos acreditar.
Mas bem antes de o bando chegar, muito ocorreu. Pra ilustrar as acontecências é bem bom explicar um pouco de tudo, de cada vez, no sossego e aconchego do fogo do fogão à lenha, quando todas as verdades familiares são expostas sem medo e sem segredos. Ah! quê.
O silêncio antes cobria todo o vilarejo. Agora transformou-se em gritaria, informando a bamburra. Do pedreiro ao açougueiro, do padreco recém-chegado ao juiz de paz, todos queriam apanhar seu bocado de pedra dourada. O inferno tinha tomado conta de Longoria sem vivalma perceber a gravidade da situação.
Enquanto todos catavam o mais que podiam do ouro, a chuva dava demonstração raivosa querendo continuar por horas a fio. Ou era sinal do fim dos tempos, ou o diabo tinha tenência a mostrar seu poder como o do próprio bom Deus.
Se os lados opostos estivessem mesmo dispostos a iniciar a luta final, talvez não encontrassem lugar pra fazê-lo, tamanha a bagunça reinante em Longoria.
O divino e o profano não eram inimigos — pregava padre Colombo —, eles se sabiam irmãos, cada um se amando a seu modo.
De quando em onde a fúria assumia proporções desnusitadas e abusos aconteciam sem que — cristãos e bandidos — dessem muito valor ao resultado da pendenga.
O diabo por vez era mais assanhado e perdia as estribeiras, lançando impropérios, querendo impor suas vontades. Deus, em Sua quietude divina, fazia ouvidos de mercador, e assim a luta não chegava nunca ao fim.
Longoria nem de longe era pra ter esse nome esquisito. Ficava às margens do corgo Rico, o nome preferido por todos tinha que estar fundado nas origens. Porto Rico seria mesmo o melhor nome.
Padre Colombo, bisbilhoteiro como o dianho, deu de indagar: rico de quê? Só mesmo rico de pobreza. Segundo ele, aqui ninguém tinha nada de nádaras. Além de sonhos e esperanças, a cabeçorra do povo não pissuía espaço pra mais coisa alguma. Duvidava até que houvesse um lugarzinho sequer pro bom Deus. Ele, lá no Seu bom patrimônio deveras havera de compreender a longa ausência dos poucos filhos, pode até de ser por boa causa e razão. De momento em momento padre Colombo se adistanciava do Padre Eterno, questionando a imensidão da pobreza de uns e o desvario das riquezas de outros. No final, todos nem não nasceram das mesmas fudelanças e pernas abertas? Diferença havia? Explicasse Ele aos sofredores. Não deixasse o triste encargo pra que simples padre fosse martelar nas missas de domingo os tratamentos destinados pelo bom Senhor a seus filhos. A Bíblia não estava cheia de promessas de boa vida e riqueza pra todos que fossem fiéis seguidores do Cristo Rei? Ao depois, só miséria atrás de miséria. Eita mundão de promessa sem os cumprimentos devidos.
Nos repiques das discórdias, padre Colombo zombava dizendo que por isso mesmo as igrejas clandestinas cresciam e engordavam como boi no pasto. Num estava coberto de certezas? Pois bom! O Deus do céu decidiu pregar uma peça nos seus cristãozinhos debandando pro outro lado, ou por bem deveras o tal do coisa ruim acabara vencendo a dura luta. Mas será que ela já tivera bom começo? No avaliar de padre Colombo, tava tudo mais entranhado, nem podia perceber onde começava um e acabava o outro. O tempo diria. Somente ele e suas decisões.
Foi quando, abarafundado em suas divagações pós-missais, que Farnésio adentrou a capela de Santo Cristo. Se deu ao desplante de permanecer com as reluzentes armas, imenso crucifixo com Cristo pregado de ponta-cabeça, roupas negras, do chapéu às botas, até as esporas, tudinho dum negrume de reluzir, além de breu. Tinia de escuro! Tudo como jamais padre Colombo pudera ou havera de imaginar possível.
Ele sabia que pra tentar fazer prosperar sua pequena igreja, padre Colombo era chegado nos ouros. Fazia casamento de ajuntados, contrariando as normas cristãs, celebrava missa de corpo presente de suicidas, ou assassinos. Tudo no bom santo nome da sua santíssima e queridíssima mãe igreja. Quem era capaz de ter poder de recriminá-lo num mundo onde o mais dos sãos não passava de coxo, cego ou aleijado? No paço da igreja tinha todo tipo de pedra. O que se sentisse, ofendido apanhasse a sua e atirasse. Padre Colombo sabia protegido. Seus males e defeitos eram menores que os pecados de seus fiéis.
Pelo conhecer dos acontecimentos, padre Colombo tinha notícias de um Farnésio amancebado em Pirapora, amantíssimo querido de duas fazendeiras na distante Januária, casado em Vazante e, agora, arrastava as asas por moçoila casadoira em Longoria. Os pais da menina, temendo a sorte mais deles do que dela, se viam desprotegidos. Se corressem buscando adjutório em Paracatu nem lá chegariam, pois as balas de Farnésio os alcançariam antes. Na justa justeza só mesmo o amparo batinal de padre Colombo. Foi o que se deu e aconteceu... não sem baita confusão.
Nem bem Farnésio chegara na igrejinha com sua pompa criminal à vista, sentando na sacristia como se fosse o próprio papa, pigarreando e aguardando a aparição do bom padre Colombo, os pais de Malfada entravam pela segunda porta, como se não esperassem encontrar ninguém. Houve um rebuceteio geral. Arranca-rabo de fazer tremer quarteirões, se se tratasse de cidade grande. Mas ali naquele cafundó do mundo, nas fronteiras da donde o diabo perdeu as botas ou as precatas carreiras, foi tudo feito de pequeno susto. Farnésio levou mãos às armas, enquanto Tiana Madureira caía desmaiada e Mané Tiburcino, meio desregulado das ideias, sacava as duas num repente espantoso, provocando surpresa e emudecimento em Farnésio que já se considerava dono da situação. No por fim, eles se houveram por dar como mal-entendido. Arrebentara em seu palavrório dizendo vir pra comunicar ao padre Colombo a tenção mais bem-intencionada da paróquia em desposar em casamento religioso a menina Mafalda, por quem se enrabichara sem querer numa quermesse de Santo Antônio, quando ela nem bem prosperara nos seus doze anos. Daí em diante, e foram por mais de três anos, a dor de amor, sofrimento cotovelar, ou sabe-se lá até dor de corno foi crescendo, esquentando, e ele nem se deu por conta das loucuras que agora aparentava praticar. Tamanho amor sem resposta só causa dor incontida. O foguetório denunciador da situação comprovou.
Longoria perdoava o extremado sentimento de Farnésio. Só que nem não houvera ninguém combinado com Mafalda. Ela via, com outros olhos, outro desmesurado e sofrido amor. Dele e por ele a história de Porto Rico ou Longoria seria mudada e transmudada num breve espaço de tempo.

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