sábado, 23 de abril de 2011

FILISBERTO DAS ÂNCORAS

Acordou desajeitadamente feliz. Vislumbrou o azul do céu pelas frestas das paredes de pau-a-pique por onde um bafo de vento soprava-lhe na cara. Buscou sorrir seu riso maroto de quem não quer nada mesmo sabendo-se querer tudo. Caminhou como se levitasse buscando a cozinha. Riscou a pedra até sair faíscas com as mãos em conchas protegeu os gravetos. O costumeiro fogo alastrou-se. Filisberto das Âncoras atravessou a porta cofiando a barba com gestos mecânicos pegou o sarilho lançando a velha lata no poço arrancou a pouca água que seria parte do seu sustento no dia que prometia ser de um calor infernal. Virando as costas ao resto do mundo adentrou novamente na casa. O fogo crepitava. Sem lavar a cara coisa de luxo e não podia sempre se dar a ele despejou um pouco d’água na caneca cheia de folhas para a primeira beberagem do dia. Logo um cheiro forte invadiu recendeu na cozinha. Por sobre o fogão uma manta de carne de tatu recebia fumaça do angico da aroeira defumando calma diuturnamente. Com seu modo caipira de vaqueiro desgarrado retirou a faca da cintura lasqueou a parte mais gorda da manta. Na caneca improvisada de lata de massa de tomate depositou uma generosa dose de chá. Mascou a lasca da carne sorveu gole da beberagem. Por algumas horas o estômago estaria enganado.
Era tempo de pôr a cachola para funcionar. As arapucas precisavam ser armadas senão o almoço seria ainda mais minguado. Olhou de soslaio para as rachaduras dos pés esgaravatando até sangrar talvez buscando apurar o sangue. Apanhou uma folha de lixeira aparou as unhas. Acariciou a barba rala pensando seus setembros. Mais madura que sua dor somente a ausência da mulher que possuíra sonhando mas os calos nas mãos mostravam que ela jamais foi amada. Esparramou saudades do tempo que vasculhava a Chapadinha a Bitesga à procura de um nadica de nada daquelas mulheres que gostavam de rapaz com os primeiros fiapos de barba na cara. Ao longe a juriti lançava lamúrias aguçando sua fome despertando pra vida. Filisberto antes de sair precisava dar boas baforadas. Sentou sobre os calcanhares. Pegou a faca carcomida pelo tempo embora muito afiada preparou o cachimbo de talo de mamona sabugo de milho depositou dois fiapos de fumo enxertando o resto de ervas do mato para dar sabor ao prazer causado pelo amigo de perdidas datas. Ali naquele cafundó naquele tremembé onde o diabo perdeu as botas este era único companheiro um quase confidente. O cachimbar fazia-lhe um bem enorme quase do tamanho das estrelas. Mesmo houvesse outras pessoas nunca de núncaras repartiria essa alegria tanta. De quando em quando ele mesmo se pergunta se responde:
— O quitô fazendo aqui?
— Apois! Tô xurungando brincando de fazer saudades!
A vida era resumida nos poucos mas profundos encantos. Cada minuto espremia-lhe o cérebro com furor de vulcões seculares eternas surpresas erupções. A todas vencia com calma sabedoria de matuto preparado para a mais ferrenha das lutas: a sobrevivência num lugar onde nem o diabo aventuraria viver. Sair dali deixar aqueles pagos seja para buscar comida era martírio ele o cumpria com ritual que se repetia há não saber desde quando. Depois de bebido fumado estava teso pronto para começar a busca. Assuntou para o sol como perguntasse quão ardente seria no correr do dia. Deu meia-volta entrou no casebre. Abanou a cara com o chapéu de palha pegou o bornal o binga se benzeu diante da velha imagem de seu Santo Antônio como se novamente cobrasse uma mulher deu um basta nos pensamentos saiu com raiva por tudo que lhe batia na caçoleta. O chão de quase coisas pareceu-lhe escaldante seco inóspito gentil ao mesmo tempo. É preciso respeitá-lo pois a cada caminhar pode pregar surpresas inimagináveis.
Neste oco de mundo a solidão é recompensada com as alegrias causadas pelas descobertas nas entrelinhas das estradas. Filisberto espera vento mais forte fustigar-lhe as ventas para decidir qual caminho seguir. A lembrança dá-lhe a certeza de que um olho só lhe basta para enxergar a miséria do mundo. Sabia porém que aquela não era hora para distração assim preferiu enxotar tudo que não dissesse respeito à fome vindoura. Anuviou as idéias decidiu pôr os passos à frente do pensamento. Perto da cagaiteira-mãe assuntou ser bom lugar para colocar a primeira arapuca.

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Preço R$ 16,00

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