capítulo 1
lembrança das folhas
Ficava ali na esquina do morro do Tempo espiando urubus e pássaros canoros. Sentado nos calcanhares, acendia fedorento cigarro com seu binga dourado, herança tardia recém-recebida após morte do barbudo Anastácio.
Muitos dizem, talvez por dizer assim investido em piedades, que aquela morte prematura o abilolara de vez. Agora estava ele prenhe de dor e assustamentos.
Acordava bem antes do amanhecer, contrariando todas possibilidades possíveis em um homem plenamente assumido nas preguiças diárias.
Não era de seu feitio se pôr sobre os pés antes do sol bordar os campos, as colinas, os ipês floridos, quando chegada a época. Nos poréns, por vezes inexplicáveis, o zunir dos miolos concedia a graça fazendo que pulasse da cama bem antes da hora.
Hoje, sábado bem morno, malemal a lua pálida em carregada formosura escondera a cara, os tênues fios do clarão do dia eram paridos pelo sol, estava ele prostrado, arranhando a bunda magra nos calcanhares rachados.
Apesar da poeira farta deu-se ao luxo de juntar mangabas, cajuzinhos-do-mato, gabirobas, cocos-xodós e até cagaitas, suas frutas prediletas. Caipiramente as chupava, deixando um grosso melaço escorrer entre os beiços de sitiante rude, depois olhava para a sombra do pequizeiro relembrando sonhos. Arrastava enorme quantidade de folhas secas formatando seu colchão, sabendo que, ao acordar, novamente teria aos pés alguns frutos para matar a incessante fome.
O sol lambeu a tarde trazendo na esteira o calor característico do verão tropical. Tatão Malemais respirou meio que dormindo, sentindo doce liberdade. Deixou-se relaxar suavemente antes de abrir os olhos. Aos poucos foi divisando longínquos horizontes, ora surpreso ora desconcertado. Estava a fim de sobreviver.
Arrastou consigo a modorra, separando alguns pequis, decidindo colocá-los sobre a pedra canga. Tão logo descansasse a vista, iria cortá-los jogando as gemas amarelas na pequena lata. Era, segundo ele, manjar dos deuses. Na falta de boa companhia, deixaria os ventos redobrantes partilharem a ceia pouco antes do sol ameaçar ir-se embora.
Fogo aceso no fogão improvisado, agora ele era senhor do tempo, dispunha de todos os minutos para pensar suas coisas.
Tatão ficava ali no quase sempre assuntando, espiando, comparando o olho de um boi imaginário com o olho de gente, pra sempre no depois decidir que um olho era só um olho colocado na cara de cada um, com suas vergonhas, seus encantamentos ou mesmo suas desistências. Ah bão! Assim era ele, Tatão, um sempre só em sua solidão de bicho quase homem.
Por ouvir dizer, tinha sempre notícias do mundo. Das políticas escutava tudo com atenção, pra no depois falar sozinho, bem alto no meio do mato, como querendo ser novidadeiro contando as notícias tim-tim por tim-tim pra cada pé de pau daquele seu cerrado magro.
— Eu neste vasto mundão de Deus tenho certeza tão somente dos meus ais. Ninguém enxerga a podridão porque quer. Ela viceja pelaí disforme e nos conformes de cada vidente. Por isso é que posso nos meus dizeres afirmar que fujo dos políticos, pois que eles se dizem e desdizem como cobra-cainana no seu desejo de botar mais crias nos campos cerrados. Cainana não pia nem despia quando quer mostrar suas vergonhas pra atrair seu macho. Mas o homem engravatado, o político, o que faz ele? Somente pensa nos enganos que pode, pois que sim, nos amedrontar com. Antão?! Hum-hum! Todo esse povaréu que passa aqui desimbala pro mundo. Arre! Uma carreira de fazer dó. Prefiro meu sossego, meus pitos, minhas desconfianças a sair desimbestado por aí afora, correndo atrás de promessas de políticos. O que tem de ser meu há de.
Absorto em seus pensamentos, Tatão Malemais nem num vê a noite escancarando a bocarra bem ali na esquina do diabo.
Ficou estacado sorrindo talqualmente bobo-lelé, olhando a chegada dos que deviam partir e a partida dos que deviam chegar.
Viu a brotação do capim novo após a primeira chuva setembreira, primaveril. Tudo se pertence, se assume como num sonho.
Ahã?! Tatão sabe que suas dores são apenas começantes. Os homens do lado de lá se sobram em mesuras, comesuras, acalantamentos, acobertamentos de roubos ou sem-vergonhices estranhas ao mundo seu, de cá de perto das vistas.
Se alembra da cara de jenipapo dum político vendido aos homens da revolução, eram todos falsetes de guerrilheiros, oportunistas, se abocanhando ainda mais da vida e dos corpos das filhas dos outros.
Tatão cerrou as sobrancelhas em tristeza-mor, deixando desabar na cara mal-anoitecida todas as angústias, frustrações de seu pequeno mundo. Tudo. Tudo se lhe era desalmado perrengueamento. Queria ir-se embora daqueles pagos. Avoar como um sofrê, batendo asas mansas na imensidão daqueles céus perdidamente tingidos de azul-anil de ferir olhos, mesmo os mais protegidos.
Sentia que sua missão naquelas bandas ia-se pondo ao fim, porém não sabia qual era seu norte. Dependesse só dele tinha muita força nas batatas das pernas pra encarar uma vastidão de estradas desconhecidas. O mundo havera-de caber na palma de sua mão. O faria girar como pião na gela, rodopiando, zunindo, deixando escapar aquele som choroso — zum-um-um-um — até tombar no meio do chão. Coisas suas repentinas, rebatendo na cabeça, causando sôfrego desassossego. Em bem verdade sabia sua sina, seu pesadelo, por isso acobertava desdizendo a todos.
Ele se reconhecia um homem-pássaro, sabiá-laranjeira preso àquelas paragens como tivesse enfiado os pés em visgo de mangabeira. Nas horas vagas do dia presumia-se cobra rastejando cerrado afora, modo descobrir ansiados segredos dos nambus. Calado, assistia dias a fio o festejado momento em que punham seus ovos debaixo de uns pés de paus rasteiros. Se anunciava nos mais diversos lugares como descobridor das vidas, pois não era raro aproximar dos ninhos no justo momento em que os ovos eclodiam brotando desinquietos passarozinhos de penugens ralas, de bicos abertos, batendo asinhas, esbaforidos pela fome.
Desde então se punha a conversar com todos os bichos, pelejando sem trégua nos ensinamentos. Quantas vezes bateu boca com nambus querendo que avoassem pro sol. Furibundo pela desobediência, calava horas seguidas. Nem o sábio sabiá ou o fogoso pássaro-preto nesses dias conseguiam arrancar uma palavra ou mesmo um sofrido ai.
Quando voltava às boas, destoava numa tagarelice sem fim, incompreensível. Só mesmo aqueles filhotes em pré-voo anunciado podiam entendê-lo balançando as cabeças, revirando os olhos como em desarroubos infantis aprovassem tudo que Tatão desatinava a falar, a gesticular.
Na boca da noite envinha aquela voz mandando ele ir embora, correr mundo, colher o futuro. O coração apertado insistia pra ficar, tinha medo de perder-se nas ruas do desconhecido. Mas como saber perigos sem tentar enfrentá-los? É preciso desvendá- -los, pra depois decidir se vale a pena continuar tocando em frente. Pro rumo dos rumos, soprava-lhe nos ouvidos a voz. Sem armas com que se defender, prometia que no amanhã buscaria novas pousadas. Carecia acalmar o coração pra modo do tinhoso não fraquejar nas estradas levando seus passos pro beleléu. Tinha que pôr carapaça de casca de jequitibá nas costas, vestir a alma das árvores, enfeitar o olhar com olhares de sofrê ou uirapuru, fortalecer as pernas com óleo de cabriúva, alimentar os sonhos com aquelas paisagens aprisionando ventos, flores e cantos dos pássaros em seus olhos de pica-pau.
Remoía as dores em silêncio, por vergonha de alguns bem-te- -vis descobrirem os sentimentos. Deserdava da memória a mais vaga possibilidade de ser o dono daquela esquina que o prendia, enfeitiçava, mormente naquelas noites parideiras de lua cheia. Estava perdido em um mundo que poucos conheciam tão bem como ele, mesmo assim tinha medo da próxima esquina ou dos próximos passos.
— Ai de mim! — dizia ele, querendo se desculpar consigo mesmo pela fraqueza relutante em deixar aquele lugar. Lá ele não fora parido. Ainda assim dava soco nas vozes que o incitavam a ir-se embora. Logo ele, um batalhador que enfrentava sol, chuva, pra conversar com árvores, bichos rasteiros e avoantes, ele que nas noites escuras reinava ao lado de imensos vaga-lumes, chorando copiosamente quando encontrava uma árvore morta ou restos de carcaça de veado-mateiro recém-banqueteado por solitária suçuarana. Batia-lhe aquela profunda tristeza paralisando o parco pensamento. O que dizer então quando suado parasse à beira de um córrego não mais encontrando matrinxãs e piraputangas para conversar, segredando acontecimentos novos, outros velhos, pois que nunca vira ninguém nesse mundão de Deus pra gostar mais de uma fofoca que as matrinxãs e as piraputangas. Os olhos marejados quase saltavam das órbitas, como quisessem buscar refúgio nas locas do córrego, que corajoso teimava resistir ao desmatamento de suas margens.
Tatão — posso dizer assim sem susto — é um quase santo, muito embora não tenha noticiado nenhum milagre seu, além das mirabolanças do conversar com o inconversável, no que se prova é que pássaros e árvores se lhes resposteiam as perguntas no justo silêncio que o momento exige. Acordo feito para não haver desconfianças, desavenças e traições. Curava seus bichos e arvoredo, no silêncio de duradouras conversas, gesticulando abruptamente, escancarando econômicos sorrisos quando um paciente dava sinal de melhora. Apois! Talvez fosse mesmo um santo aos avessos, protetor daquele cerrado manso, apaziguador de corações de corujas buraqueiras. Talvez guardasse seus milagres longe dos olhos gananciosos dos homens que moravam nas redondezas de sua esquina, talvez enfeitiçasse a todos com seus modernos, invisíveis milagres, que o homem de coração impuro jamais haveria-de ver ou sentir. Único no cerrado a falar a língua das flores, dos periquitos, vaga-lumes, embaúbas, pequizeiros. Herdeiro dos mais ancestrais segredos dos riachos e cachoeiras cristalinas. Folgado cantador de ternas melodias de amores passados que dobravam a curva do tempo sem deixar sinal de passagem. Esse o Tatão.
Nas conversas com seu umbigo deixava transparecer que o tempo da colheita se aproximava. Talvez antes das próximas chuvas saísse em busca do futuro, confiando um dia voltar e contar pra todos suas andanças. Ainda que as dúvidas fossem sobrepesando umas às outras, ele se fazia de bicho do mato pra dormir ao relento, tendo como proteção apenas um vasto cobertor de nuvens, rememorando passagens escondidas nos confins da memória, acreditando que no reino deste mundo será vencido e vencedor. Nos seus solitários monólogos anteouve, vozes empurrando para bem longe daquelas águas claras, do mágico trinar de diferentes pássaros recém-chegantes, que anônimos pré-anunciam sua prematura partida. Aqueles há que silenciam em protesto por pouco conhecerem Tatão. Também marcam presença presumidos, desconfiados viventes que não renunciam acompanhar o protetor aonde for.
Pensou momentaneamente metamorfosear-se em cigarra, sair cantando terna, suavemente, sua despedida, mas não era tempo de florescer cigarras nos ipês, lixeiras, mangabeiras e pequizeiros.
Cerrou os olhos se perguntando quando tempo restaria, talvez buscando entre suas artimanhas uma última maneira de atrair anjos para capá-los. Sobressaltado, levou a mão direita procurando a bainha do facão. Um suor frio percorreu o espinhaço como prenunciando mau agouro. Em vez de ficar preocupado, Tatão destrambelhou estrondosa gargalhada assustando preás, teiús, nambus, pássaros-pretos e joões-de-barro, estremecendo até os mais altos galhos das árvores da beira do riacho.
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