quinta-feira, 31 de março de 2011

AS JAGUNÇAS



o bando


malserá de mim todas essas agudas lembranças: perdidas em vagueios noturnos me acusando solene por não ter sido a mais melhor de todas jagunças dos Gerais a que! no bom palavrear prefiro no sossego ser deste lado os gerais baiano não têm as graças nem invencionices deste meu pedaço eu me perdi encantadoramente aqui no meio de um bando de serenas mulheres cuja única paixão foi no desde em sempre limpar cuidadoso a carabina de dois canos do tresoitão encimado por boa mira gentil honesto sem nunca negar fogo que na hora do tira-teima é que se prova bom zelar pela ferramenta de trabalho nunca me dei ao luxo separando o corpo de minhas guardas até parece que a negra parabélum luzidio tresoito presente de herdadas posses de mamãe se me eram extensão de meu corpo cuidava de tê-los nos conformes além da papo-amarelo tinindo brilhosa sempre à mão na cabeça da sela como se olhasse somente pra frente pronta pra me defender dos perigos dos sertões das gentes atravessei meus atarracados vinte dois anos dez com o trio inseparável nem n’hora da morte de Nhacá melhormente minha mãe desdisse minhas verdades: largo tudo no mundo afrouxo olhares desriso meu riso de fim de tarde benzo a boca em cruz satisfazendo todas as fomes mas delas não estou sempre bolinando um ou afagando outras pra no dizer de Leoncina nenhuma delas se esquecer que estou por perto dentro do assunto no comando ã é! hoje arranchei aqui num descampado bem próximo do desencantar das águas do rio Paracatu quando sorrateiro ele se deixa seduzir pelo véio Chico parecendo sicuri engolindo vagarosa sua presa meu bando firmado agora tem de todas um pouco: Baturité negra olhos profundos mansos boca larga soltando sorrisos com seus dentes amarfinados por desgosto de suas gentes caiu no mundo assombrando o cerrado-sertão desvagado em poeirama brutal foi a primeira que topei no meio de meu caminho quando sem relutar alcei mira na minha profissão futura: teria função única desencorajar coronéis a usar mulheres como fossem bichos desprezíveis Baturité vinha fugidia dos alongados do Escuro Grande onde fora maltratada pela fanchona Isabelê mesmo sabendo que a mocinha desqueria seus amores desconformada perseguia ameaçava prendia no porão da casa grande na Flor de Maio fez aconteceu até que um dia Baturité fingiu nas concordâncias de dar receber carinhos daquela uma depravada por mor segurança aloitou no sutiã pequeno canivete lâmina afiada dona de si Isabelê lambeu suas orelhas suspendeu a saia cravando dois grossos dedos de vaqueira calejada na xandanga de Baturité que naquele instante viu estrelas – no dizer dela – acalmando raiva distraiu Isabelê enquanto entre sussurros tirava a blusa alcançando o canivete rápida como raio vê no desvão da vida seu futuro decide pela crueza salvaguarda de instintos afrouxa os braços num abraço de morte crava a lâmina no pescoço da mulher-macho desvencilha do corpo em agonia ri seu riso de liberdade apura fuga nossos olhos se bateram única vez promovendo confianças desdaí uma prontificava continuação da outra juntas viveríamos muitas horas de jagunçagem tranqüila desprovidas de medos por nos conhecermos cada uma a si mesma de dentro pra fora fora pra dentro firmamos opinião em bom prosear que aquele arranchamento era lugar de duradoura permanência: bem provido de caça pesca um morrote com imensas pedras da donde se descortina boa visage daquela porção do sertão geralesco no bater dos olhos trombetear do coração pedaço de chão pra longa paragem desde em que cautela manhosa cada uma cuidasse da sua o tremelê fica sempre na espreita espiando nossos momentos de fraqueza de boa verdade sacrifico minhas palavras: em coração jagunço amor não háde fazer pousada o sentimento trai a confiança desregula precauções transformando caçador em caça: ah! não é? pois! o brilho do sol esfacelado sobre as águas do Paracatu descoloriu meu olho das esquerdas justo quando Baturité colocou a mão ao derredor da orelha ouvido acostumado ao andejar das codornas pacas tatus por em sobre aquele tapetear extremoso extenso em formação desregular natural que era sendo cada qual fruto de diferentes árvores pressentiu aquele um mas ele não ataca no dia preguiçoso caça suas presas perder da noite quando todas cegueiras tomam conta de nossos olhos apois o danado não mais me pareceu apurando escutar ser bicho gente pudera ser homem ou haverá ser tão perigoso quanto ressabiada ela mostrou as caras quando a tarde ensaiava primeiros passos repuxando cabresto do esguio cavalo mal enxergara crescer dia com um céu de quase agosto enevoado pela fumaça das caieiras adocicada no frutejar dos arvoredos se bem me vira se escondera de mim como houvesse deparado no escuro com ele: o tal esconjurado não de todo ela se abancara parada bem defronte mira da dois canos de Baturité prontinha prum disparo rápido mortal certeiro tiro que toda jagunça deseja pra sua morte sabendo-se alvo disse em seu dizer mineirês: – sou de paz! venho de bom vir Deus suas anjas sejam nossas guias na tranqüilidade de suas santas me achego no perdido de todos pensamentos se requereu estranha em pedir guarida a desconhecidas raspou a última saliva da boca anunciando nome: Euflavínia disparou olhares procurando um lugar pra se acomodar não tinha apanhou afiado facão espetado num baruzeiro cortou quatro forquilhas preparou pequeno jirau que dali pra frente seria seu banco onde tomaria café almoçaria jantaria fumaria bom palheiro ao cair a noite admiraria estrelas lua quando chegasse sua vez não abriu uma palavra da boca esguia observava todo movimento como se temesse tocaia logo logo nos acostumamos a seus silêncios cheguei à conclusão que cada um vai parindo seus dizeres de acordo com a necessidade nem antes nem depois esta a lei em vigor nos sertões dos Gerais ainda não tinha acabado das saudades quando ouvimos ao longe tropel de vários animais invadindo calmo nosso espaço ficamos as três em ponto de bala qualquer atitude suspeita armas engatilhadas cuspiriam fogo ensurdecedor na crueza das jagunças não há muito lugar pra se perder em pensamentos ou adivinhações simples vacilo custa preciosas vidas melhor sejam de nossos desconhecidos inimigos as três prendemos respiração esperando surgir do inesperável eram duas esporeando montarias fugindo a bom fugir como se do cão fosse por pouco não nos deixaram pra trás num fustigo do freio que elas pararam súbitas empinando cavalos no susto relincharam estrondosos de armas nas mãos recepcionamos as chegantes elas em repentino salto apearam eu me senti pequenina diante primeira morena cabelos curtos olhos verdes pernas compridas duas armas caíam quase nos joelhos grunhiu o nome: Aeuvi a outra não menos bela nem alta com sorriso debochado na boca carnuda carecendo de boas chupadas mostrou a alvura dos dentes bem tratados ao mesmo tempo que alardeava: sou Aeuouvi mal chegaram foram direto pra praia Desdentada ali pude ver a vaidade das duas descalçaram botas de cano curto unhas pintadas de esmalte vermelho sangue mostraram que eram moças finas na volta ao acampamento outra surpresa: abriram pequena valise retirando batom espelho pintaram os lábios carnudos estenderam capas sobre o chão se puseram a ver sonhar estrelas estávamos cansadas pela lida da construção da choupana quatro braços a mais eram bem-vindos no amanhecer veríamos como se comportariam Euflavínia Baturité gastaram boa parte da noite proseando lembranças antigas as gêmeas fingindo ressonar ouviam palavra por palavra quando a noite adormeceu deixando primeiros raios de sol invadir a manhã tinham feito café fritaram ovos de cascavel com carne seca sentadas sobre duas toras de buriti estavam perdidas em leituras Aeuvi de quando em quando sorria diante alguma passagem do surrado exemplar de Sagarana enquanto Aeuouvi balançava cabeça passando ligeira cada página amarelada manchada de gordura de Vidas Secas eu de mim pensei comigo mesma: essas duas não são gente de plena jagunçagem só o tempo porém mostraria quanto estava errada mesmo a mais curtida de nós não gostava de enfrentar a barra do Paracatu nas primeiras horas da manhã ou ao entardecer uma nuvem de muriçocas mutucas tomava conta da beira-rio mal deixando a gente respirar mas lá estavam duas nas barrancas pescando antes do sol começar a castigar as costas já tinham boa dúzia de crumatás limpas abertas retalhadas ao sol estiradas no jirau secas cozidas com mandioca amarela eram prato insuperável por volta das onze horas que é quando o flutuante do céu está quase a pino Aeuvi preparou cova rasa longa o suficiente pra colocar três ou quatro graúdas crumatás acendeu fogo com grossos galhos de angico deixando formar intenso vermelho braseiro Aeuouvi veio do rio com dois baldes de água foi fazendo consistente massa liguenta da terra retirada da cova rasa esparramando por sobre tapete de folhas de sambaíbas leve camada de barro enquanto a gêmea trazia pescado como quem recheia pastel cobriu crumatás com dupla camada daquele barro braseiro quase sem fumaça mostrava seu calor à distância com surrada pá de campanha removeram brasas cinzas cuidadosas colocaram em seguida peixes encapados que foram cobertos por caprichosa porção de angico flamejante ainda nem era meio dia quando as gêmeas bateram nas panelas chamando as outras pro almoço retirada camada de barro raspadas as peles escamas abertos o que se viu dentro foi apenas um engruvinhado de vísceras intestinos dos peixes limão sal fizeram a festa as duas além de tudo eram surpresas na cozinha Baturité Euflavínia eu lambemos beiços estalando línguas diante saboroso almoço completado com apimentada farofa molhada de taioba dali em diante enquanto permanecessem com o bando sabíamos que não mais passaríamos fome

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