sexta-feira, 14 de junho de 2013
REVOLTOSOS
Minha caduquice faz com que as lembranças se percam no tempo, remexendo a história, contando-a pela metade.
O ano talvez se situe nos trinta, quando a coluna de revoltosos invadiu a cidade, tomando posse da prefeitura, delegacia, correios.
O uniforme deles, um tanto desbotado, ainda denunciava pálida cor de brim cáqui.
Não vieram em boa paz. Entravam casa adentro remexendo baús, latas de mantimentos, e revolvendo colchões, pois pensavam que todo mundo guardava lá seus tostões.
A comida nem cozida estava iam eles destampando panelas, queimando os dedos, palmas das mãos nos pedaços de costelinhas de porco ou coxas de galinhas. Davam a entender que havia meses não sentiam o cheiro de boa comida, incapazes de esperar a refeição ficar pronta comiam como selvagens.
Depois, buscavam o descanso nas redes armadas nas varandas, o fuzil carregado sempre às mãos; dormiam com um olho aberto, o outro fechado. Coisa do demo.
Quando bêbados, amontoavam as pessoas na praça da Matriz espancando-as a golpes de coronhadas dos pesados fuzis. Queriam porque queriam saber onde se esconderam o doutor-delegado e o juiz de direito. Somente se acalmavam quando padre Bento saía da Matriz de Santo Antônio jurando excomungá-los, condenando-os ao fogo eterno dos quintos dos infernos. Temerosos se aquietavam, permitindo que as famílias retornassem aos lares, mas, quando o amanhã renascesse, o primeiro deles lavasse a boca com o matinal gole de cachaça, a tortura recomeçava.
Tio João, irmão mais moço de papai, quis dar uma de valente: se meteu em farda de soldado, ficava na porta da casa do vovô, ora aparecendo ora se escondendo. A cena foi se repetindo horas, dias sem fim. O ato de rebeldia enchera de furor o mais exímio atirador revoltoso. Ele estava sentado num banco tosco à frente dos Correios, de guarda; de quando em vez, pegava o fuzil, fazia a mira, pensava duas vezes, ao final desistia de apertar o dedo no gatilho.
Tio João continuava praticando impune sua fanfarronice até que, num sábado pela manhã, nem bem eram oito horas, começou seu jogo de esconde-esconde. Talvez o revoltoso já tivesse mamado sua primeira grande dose de cachaça, por isso o gesto. Mirou calmo, prendeu a respiração, apertou o gatilho. A bala certeira explodiu no meio da testa de tio João.
O atirador viu o corpo cair. Caminhou a passos largos para certificar que o “soldado” estava mesmo morto; dois ou três minutos depois, estava diante do cadáver ensangüentado. Meu pai ajuntava os miolos do irmão sem entender nada.
O revoltoso apenas disse:
— Num gostou? Se está descontente, ainda tenho munição na agulha.
Papai nada disse. Recolheu no chapéu o que pôde, chorou por dentro a morte do irmão, parte do preço pago por uma revolução que ninguém naquelas bandas até então conseguira descortinar a razão.
por Romulo Nétto - jornalista e escritor
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adorei, assim como adoro tudo que você escreve. ouço a sua voz dentro da minha cabeça, lendo atento cada palavra, ressoando como poesia pela casa.
ResponderExcluireu amo você.