sábado, 8 de junho de 2013

BASTINTIM

Bastintim Desde pirralho, demonstrava ter parte com o coisa ruim. Nascera pra viver a vida pelo avesso. Enquanto outras crianças brincavam com carrinhos de bois feitos de sabugo de milho, mangas, mamonas, sua diversão era degolar pintinhos no terreiro do sítio onde morava. Houve uma vez que levou boa surra de Honorato por ter trucidado mais de vinte numa só manhã. Apanhou até as costas ficarem marcadas com sulcos profundos em carne viva. A mãe assistiu a tudo sem poder socorrer o filho. Justo o castigo. Quando indagado o que seria ao crescer, dizia apenas: jagunço. Cutucado pra outras respostas, falava que queria sentir gosto de sangue na boca, ver como os olhos do desinfeliz ficavam diante do revólver pronto pra disparar a morte iminente. Os pais decidiram deixá-lo de lado. Bastintim não tinha conserto. Só causaria dor, tristeza, por onde andejasse. Nem bem completou doze anos, furtou a espingarda e o cavalo do pai, caindo no mundo. Melhor assim, sem choro nem despedidas. Vagueou por veredas, riachos, dormiu ao relento, em cavernas, sempre à espreita de algum bando que o acolhesse. Sentiu na pele a dureza da solidão sem reclamar. Não tinha também pra quem. Essa a vida que escolhera. Entrava nos vilarejos onde trocava teiús, tatus, frutas por mantimentos que no mato não conseguia. Um pouco de sal, café, rapadura, até mesmo bom naco de fumo goiano. Deitado debaixo de um pé-de-pau ou na caverna, gostava de dar breves baforadas no cigarro de palha que indesde criança aprendera a fazer pro pai. Desconfiado, assuntava nas vendas sobre brigas políticas, desavenças por heranças de terras, fugitivos das cadeias afilhados dos coronéis. Colhia daqui dali informações que permitiram tecer o perfil ideal do bando de que faria parte ou criaria pra aterrorizar as divisas do noroeste das Gerais com Goiás. Enquanto o destino não se cumpria, começou praticando pequenos furtos, estuprando mocinhas despreocupadas que gastavam horas tomando banho nuas em pêlo no Riacho Doce. A fama do desconhecido correu o cerrado, despertando a atenção do coronel Zaú. Com as constantes pelejas com o povo do Retiro Alto, ele bem que precisava de um destemido jagunço talequal esse se lhe aparentava. Despachou doze homens com a finalidade de trazê-lo por bem ou por mal, a ferro fogo. No decorrer de oito anos fugindo de caçadores, Bastintim aguçou os ouvidos, podia distinguir se o estalo de um galho quebrado a centenas de metros fora causado pelas patas de onça pintada ou de homem. De longe, sabia contornar o ninho de cascavel, percebia o som do chocalho como se estivesse segurando com as mãos. Essa experiência salvou sua vida inúmeras vezes. Os homens do Coronel Zaú jamais sonhariam com a matreirice de Bastintim. Conhecia cada palmo daquele sertão cerrado. Só seria encontrado se assim decidisse. Um mês depois que o bando saiu do Brejo Encantado, divisou três homens bem armados. Conhecia de vista um deles. Era jagunço de confiança do coronel. Resolveu mantê-lo sob estrita vigilância. No momento exato, daria o pulo do gato. Na terceira semana de espreita, desconfiou que o jagunço pressentira sua presença, pois mudara radicalmente de hábitos. Já não deixava a parabélum presa no coldre; a faca estava na bainha, mas sem amarras, fácil de ser retirada, manuseada. Por não saber das intenções do pequeno bando, o melhor seria aguardar os acontecimentos. Observou de longe com a luneta confiscada da Casa Rocha que o jagunço estava cevando pacas. Aquele seria o ponto ideal prum encontro. Por certo, ficaria na espera, em jirau improvisado aguardando os animais acostumados com a farta comida. Depois do tiro certeiro, o jagunço desceria para apanhar a presa; um bom atirador, em ocasiões tais, matava pelo menos três animais. O jagunço mal colocou os pés no chão e sentiu o cano frio do chimitão pressionar os rins. A conversa durou menos de cinco minutos na avaliação de Bastintim; pra Zuzu Cabelo-de-fogo, pareceu a eternidade. Acalmados os ânimos, esclarecidos os motivos do rastreio, os quatro buscaram a caverna da Onça Pelada onde passariam a noite saboreando um assado de pacas. Bastintim ouviu, contou histórias entre gole outro de boa cachaça dos alambiques paracatuenses. Pra seu governo, a oferta do Coronel Zaú: irrecusável: cama, comida, mulheres, bebida, dinheiro, proteção. Estava com a vida que o coisa ruim lhe reservara. Nos três anos seguintes, o noroeste das Gerais foi varrido por uma onda de assassinatos, roubos, estupros, nunca antes imaginados. Bastintim tomou gosto pelo sangue, jagunçagem, cabaços. Em cada vila, vangloriava estuprar pelo menos três ou quatro moças; nas rodas de viola, gabava-se que saía das vilas com o pau esfolado de tanto penetrar cus, xandangas. Não tinha remorso nem piedade. Perto dele, o Belzebu era santo. Na coronha da papo-amarelo tinha quarenta marcas; quarenta mortes sem contar as causadas pelo chimitão, a parabélum, as degolas com peixeira. As façanhas de Bastintim causavam medo até no Coronel Zaú, que, acovardado, planejou acabar com a vida de seu protegido. Traçou plano meticuloso com três homens de estreita confiança. Esses, em conluio com os recém-chegados baianos a mando do Coronel Valêncio, cuidariam da execução quando a maioria dos fazendeiros passava a semana inteira em comilança nas festas do Bom Senhor, em Buritis. Coronel Zaú não faltava uma vez sequer. Ninguém o acusaria da morte de seu braço direito. Afirmando ter fechado a compra de quinhentas cabeças de gado na fazenda Buriti Perdido, despachou Bastintim com homens que escolhera pra cumprir a tarefa. Na cabeça de Bastintim, algo não soava bem. Qual a razão de ter sido o escolhido? Era homem de ação, de pistolagem, não de aquisição e transporte de gado. Um sinal emitido pelo cérebro colocou o ouvido treinado em constante alerta. Qualquer descuido, por menor fosse, lhe custaria a vida. Fazia suas necessidades por trás de um frondoso pequizeiro, quando ouviu Zuzu Cabelo-de-fogo ordenar o tiroteio cruzado já amplamente treinado pra pôr fim à vida de Bastintim. Ele não contava com a presença, a poucos metros, de Malalá e seu bando espreitando o gado do Coronel Zaú. Ao iniciar a troca de tiros, Cabelo-de-fogo foi apanhado pelas balas vindas do veredão. Atônito, correu até Bastintim. Furioso, atirava a esmo. O momento chegara. Puxou a peixeira da cintura atracando com o rival, desferindo certeira facada pouco acima do peito esquerdo. Imaginando o inimigo morto, Cabelo-de-fogo chamou seus homens rumando pro São Marcos, cantando vitória, a morte de Bastintim. Do outro lado do veredão, Malalá esperou chegar a calmaria, puxando seu cavalo cansado, água até a cintura, a blusa ensopada deixando entrever o contorno dos seios duros, empinados. Sua decisão era reunir as últimas cabeças de gado, sumir no cerrado. Foi quando viu Bastintim ferido caído, sangrando. O coração acelerou. Os olhos reviraram quando Bastintim sorriu... como fosse pela última vez. Por Romulo Nétto - Jornalista e Escritor

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