sábado, 8 de junho de 2013

MALALÁ

Malalá A primeira morte aconteceu mal completara onze anos. Todo final de semana, era a mesma agonia. Piorra enchia a cara no boteco do mestre Zanzá, voltava pra casa faminto, reclamando da vida, exigindo comida no prato. Como pôr comida em casa se não trabalhava, o pouco ganho da mulher era consumido em suas intermináveis bebedeiras? Naquela morna manhã, Piorra ultrapassou todos os limites. Chegou ao casebre quebrando a porta, arremessando tamboretes pela janela, derrubando pratos, velhas panelas no chão. Postou-se como senhor patrão, o verdadeiro macho do território. Branca, que de branca não tinha nada estava deitada no catre do casal, vez por outra sentia falsas contrações contorcendo-se em dores, jurava que não perderia o filho. Piorra chamou pela mulher, ouviu apenas um gemido, furioso partiu pro quartinho começando a pancadaria. Branca gritava pedindo perdão, socorro. A chamava de vagabunda, preguiçosa; quanto mais implorava, mais violento Piorra se transformava. Na primeira hora, Malalá assistiu assustada a irmã ser espancada; ouviu ossos estralando, o sangue jorrando como fonte. De tanto medo, não conseguia chorar. Aos poucos, a tortura da irmã foi enchendo sua alma de coragem; quando viu a afiada faca de limpar peixe por sobre a velha mesa da cozinha, nem não pensou duas vezes. Correu possessa apanhando a arma. De costas, o companheiro da irmã não pressentiu sua aproximação. Com fúria, cravou a peixeira na altura do rim esquerdo, torceu, puxou, enfiou novamente com determinação no lado direito, o danado só teve tempo pra exclamar: — sua putinha safada! Tombando em seguida sobre o corpo todo machucado da companheira. Por várias vezes, Malalá chamou por Branca. Sem resposta, achou melhor cair no mundo. Encontrada, seria acusada das duas mortes. Nas leis dos homens, o pobre sempre é culpado em primeiro lugar até prova em contrário. Malalá nunca escondera seu gosto pelas armas de fogo. Aprendera ainda pirralha a atirar com a espingarda do pai, depois com um velho revólver. Dali pra frente, sabia qual caminho a seguir: a jagunçagem. Após a fuga no primeiro retiro por onde passou, roubou um cavalo, uma winchester, munição. Começou a correr seu novo mundo. Quinze dias de tropel firme parou pra descansar na Vereda da Traição. Foi onde decidiu cortar o cabelo bem rente, deu um jeito de esconder os peitinhos que despontavam. Precisava mostrar que era um rapagote, somente assim conseguiria guarida em algum bando. Se se apresentasse como mulher, seria pasto fácil praqueles abutres que, desnorteados, gastavam meses sem tocar numa mulher. A viadagem entre jagunços era punida com a morte. Vagou por quase dois anos sobrevivendo de araçás, mangabas, teiús, peixes que pescava com facilidade nas imensas veredas. Procurou guardar munição. Não atirava só por economia, mas pra manter segredo sobre sua localização. Desfrutava da sombra de um jatobazeiro, quando ouviu o tropel. Pôs-se de prontidão, arma em punho esperando pelo pior. A primeira cara que viu foi de Desdum, misto de beato, curandeiro e macumbeiro. Velho conhecido de seus pais. Baixou a arma afirmando ser de paz, precisando do aconchego de um bando. Desconfiado como no em sempre, Desdum provocou sua ira dizendo que o velho Tão com a comadre Dasdor não tinham filho homem, apenas mulher. Rebelde, agressiva Malalá perguntou se ele queria vê-lo nu diante de todos pra provar que era menino-homem. Desdum amoleceu. Malalá, a partir daí, renasceu como homem, pronta pra todas as atrocidades que o cerradão seco estava predestinado a presenciar: mortes, mais mortes sem julgamento. Desdum decidiu acampar com o bando na Vereda da Sabedoria, bem próximo do Santa Isabel. O esconderijo era bom, farto de caça, pesca. Ali, passaria até meses com seus homens esperando o chamado de algum coronel. Serviço na época da política não faltava nunca. Os homens comiam, pescavam, dormiam, praticavam tiro ao alvo, a vida desse modo por muito tempo tornaria monótona, provocando irritação, descalabro. Meses antes das eleições de cinqüenta, Desdum foi chamado pra executar um serviço na beira do Urucuia. Os principais coronéis desaprovavam o indicado do governador Mello Franco pra prefeito de Buritis, recém-emancipado distrito. Desdum achou oportuno colocar à prova não só a pontaria como a lealdade de Malalá, a quem chamava de Olhos Azuis. Chegaria sozinha na cidade, hospedaria na Pensão de Nhábenta, vistoriaria as principais ruas, assistiria aos comícios procurando se familiarizar com a rotina do candidato a prefeito e a morto. Apenas três dias bastaram pra Olhos Azuis saber como seria fácil executar sua tarefa. No dia doze de outubro, seu décimo terceiro aniversário, foi à missa, rezou, cantou, comungou. Saiu antes de todos. Mal Vitoriano apontou pela porta da igreja, sapecou três tiros no peito, nem esperou a queda já esporeava o cavalo com o sabor do dever cumprido, a sina de jagunça iniciada. A morte de Vitoriano Neiva correu o sertão das Gerais. Diziam uns que foram cinco jagunços, outros pormenorizavam dez ou doze, descrevendo até cangaceiros das Bahia, das Alagoas. Olhos Azuis foi recebida em festa no acampamento de Desdum; a cria estava precocemente preparada pra seguir sua trilha. Os anos passaram, ela perdeu a conta de seus mortos. Com vinte anos nas costas, por certo chegariam a quarenta, todos realizados em perfeito prazer, alegria. No fundo de sua alma sabia que nascera pra ser jagunço. Mas o corpo de mulher escondia desejos que, vez por outra, afloravam violentamente. Foi assim quando viu Bastintim pela primeira vez. Estava com o bando roubando alguns bois na fazenda Buriti Perdido, logo depois do São Marcos. Os touros bravios relutavam subir o barranco do rio pra adentrar o cerrado de Paracatu, de onde não sairiam jamais. Bastintim estava deitado com as mãos no peito, sangrando ofegante. Ferido a faca. Se fora bala, de há muito teria morrido. Malalá aproximou calma. Os olhos disseram tudo. Por Romulo Nétto - Escritor e Jornalista

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