sábado, 13 de outubro de 2012

A URNA DESMEMORIADA

Vidrão foi o primeiro a desconfiar que a urna-mãe estava desmemoriada. Pensou contar suas dúvidas ao Magrão, ele é mais sabido, estudava na Capital Federal. Se esparramasse todo mundo diria tratar-se de coisas de bêbado. Resolveu calar, ver o circo pegar fogo. As urnas da cidadezinha estavam interligadas numa simbiose de tecnologia, verdadeira parafernália, inacreditável praqueles capiaus. Inúmeras vezes eleitores chegavam à cabine e ficavam regongando. Uns enxeridos campeados pra fazer raiva nos mais nervosos que acabavam desistindo de votar. A maior parte voltava ao esfriar a cuca temendo punição. Vidrão impaciente visitou várias seções sem ouvir nenhuma reclamação. Pra ele a coisa tava esquisita. Não tirava nenhuma notícia de urna entrevada ou de greve. Certeza, certeza não tinha mas que a urna falou com ele, ah! isto falou mesmo! Um predestinado ou um bêbado variado? Tendo visões já de manhãzinha pela falta de um bom gole da Segura o Tombo. Afogado em dúvida desceu até a venda de Sô Lemos tomou enorme talagada da branquinha. Respirou aliviado, despencou pras imediações do fórum onde ficava a maior parte das seções. Cauteloso, sem chamar demasiada atenção indagava a quem não conhecia como fora a votação. Guarida não encontrou para aquartelar suas conjeturas. Beliscou o braço, a bunda, estapeou a cara. Sãozinho da silva. Diacho! O puto do Magrão não aparecia. O desgramado na certa ficou até altas horas arrastando a traseira no serrote modo de apazigar a atazanada paixão por Irene. Vaca desgranhenta, destrambelhada, tomando tempo do amigo, e ele ali sozinho carregando dúvida do tamanho das estrelas sem arranhar resposta por mais pequena que fosse. A garganta seca incitava despencar novamente até a venda de Sô Lemos. Vontade não faltava. Arre égua. Indecisão das grandes apunhalava o peito. E ele preso, os pés grudados no chão como se tivessem imãs. Pensou. Repensou uma saída, qual nada de resposta. O povo que entrava e saía do fórum arrastava cara de zumbi enfeitiçado. Se a malina fosse invenção do cramulhão, de função definida a esparramar discórdia e desunião entre eles? No seu tino a verdade aclarando sem jaça, desprovida de mistérios, artimanhas magicadas pelo coisa ruim. Nos antanhos os de mais respeito diziam que surgiriam criações de pôr cristão boaquiaberto, a barba de molho, coisas do arco da velha. Se benzeu mentalmente mijando perna abaixo numa tremedeira tal que os passantes olhavam de olhos arregalados. Vidrão vestira a carapuça da febre terçã, resmungavam. Fincado no chão como toco de amarrar jegue, sem mover um dedo e piscar um olho, a não ser tremer, tremer, mijar sem parar, mais se mostrando como cachoeira. A tremedeira por medo do chifrudo ou falta do destilado? Nhor que sim! nem Vidrão aguçando as ideias tinha resposta não. Apois! Mas a urna tinha falado com ele, lá isso tinha mesmo. Nessa hora desatinou num latinório sem fim. Ora pro nobis it missa est dominus vobiscum etc e tal. O sol castigando o cocuruto avisava que chegava o momento do almoço e ele entrevado não dispunha a levantar o pé, ameaçar qualquer passada. Homem de Deus, o que havera de estar acontecendo? O povo na discussão besta de que o presidente esconjurava o candidato da oposição. Caso ganhasse o país seria um miserê de fazer dó. Onde já se viu presidente sem anel de doutor? Vidrão gritava, mas seus gritos não saíam da garganta. Queria fazer o povão entender que a sorte fora jogada. O presidente atual tinha fodido ainda mais os pobres. Agora borrava nas calças de medo de revoltado subisse numa marcha sem fim até seu palácio e o degolasse. Qual o quê! O desafortunado perdera a voz, tamanho o susto. Feito estátua começou a desfiar seu rosário de pecado pra ninguém ouvir. Roubo de galinhas, laranjas, punhetas, quantas vezes trepara com Tibúrcia e não pagara? Ih! O inferno de boca aberta não faria de rogado, a fogueira pronta pra queimar seu corpo. Vixe que não podia ir-se embora sem resolver as pendengas, que ele não era homem de deixá-las como herança pra mulher e filhos. O mais importante a se anunciar na mente era sair daquele torpor. Pôr-se logo como vivo, disposto em luta, a fim de descobrir os porquês dos acontecimentos emboramente não atinasse como. No lancetar da memória tinha que espremer resposta por mais doida parecesse. Nem bem cessou a mijação arrebentou-se numa peidorreira mais assemelhando foguetório de porta de igreja nas noites de novena, quermesse em homenagem a Santantônio, padroeiro da cidade. Apoquentado com a situação Vidrão rumina seus pensamentos até sentir que fixaram tramela na boca, grilhões nos pés. Não arranca palavras, passos. Por certo transmudou-se em estátua pensante, dinossauro, fóssil de além mar, estranheza de ser garupando penar quando no vai chegando da vida tudo é festa. Quem será o culpado de tamanha desgraceira? Nem que quando criança tivesse caído num tonel de pinga causaria estrago lhe fazendo leso, lelé da cuca. Atarantado disparou xingamentos só ouvidos por ele mesmo. Suava às bicas. De ronco o bucho tava cheio, recomeçava a peidorreira, faltava-lhe borrar nas calças, completança de festa pra tristeza imensa sua. Nem seria por acaso filho de Deus? Mas Ele não erra nunca. Por certo havera de ter alguma culpa no cartório lá de cima. Bem que valia a sustança do jantar da noite passada: pratada de angu de milho verde com caldo de mocotó, cachaça sem batismo. De repetir por vezes, vendo formar o colarinho duradouro, marca maior da boa procedência e qualidade. Não fosse isso estava fodido e mal pago: sem saída, perdido, sem tenência de ser encontrado e desfeito o feitiço do tinhoso maledicente. Só não vê e sente suas agruras quem é cego de pensamento. Ah! se um dia ele se encontrar com o maldito há de querer quebrar a cara com soco de peso infindo. Na pasmaceira de seu estado de estátua queria regular os procedimentos do mundo, ditar normas pros investigadores pôr um fim na sua angústia de ser quase pedra. Desinferno de vida. Fosse são, bisbilhotaria o oco do inferno parando quando encontrasse o causador de tamanha tortura. Nada ficaria pra trás. Removeria tudo. O diacho do Magrão que não vem votar. Deve ter tomado porre de café preto coado em calcinha de mênstruo de noite de lua cheia preparado por Irene. Cai fora cobra d’água. Até mais ver. Belzebu esquartejado buliu com Vidrão mas não esparramou derrota em seu caminhar. Há imensidão de cascalheira a ser trilhada. O entrevero do dia não implica em derrota, batalha perdida, não a guerra. Algum beldroegas destemente a Deus haveria de ter se postado pratrasmente essa maldade. De miolo mole o estabanado prestou-se a esturpor de maledicência de grande quilate. No deve-haver das contas de sua vida caberia espaço vazio que não sucumbisse a horror tamanho, transformando-o em estátua viva? O cachorro sem dentes se redimiria nem que fosse nos quintos dos infernos, estrebuchando na fogueira, ardendo em brasa, pedindo perdão! Sabedor de quem não deve não teme apaziguou a consciência enquanto a roupa se encharca de suor fedorento. Pudesse taparia o nariz pra não sentir estranho odor, de proveniência sabida, mistura de cachaça com rabada, caldo de mocotó. O sino da igreja zuniu as doze badaladas. O sol a pino aumentava o sofrimento de Vidrão, embora dissesse pra si mesmo esperançoso. De repente se lhe voltam os movimentos, a fala, justo no instante que Magrão estapeava com força as costas. Puro milagre. A sorte retornara. Gaguejando, quase engolindo as palavras foi discorrendo o passado, sem fôlego, sem drama, desconfiança, ante um amigo estupefato. Difícil acreditar em bizarra confusão. Vidrão, entretanto não se enveredava em mentiras. O semblante por demais de sóbrio, não denunciava invencionices. Aliás criar um cenário desse porte fugia por completo da capacidade imaginativa dele. Apois tudo se lhe pintava verdadeiro, de uma veracidade impossível de ser colocada em dúvida, quanto mais negada com veemência. No desconforto da situação, melhor procurar Anum Branco. Quase um gênio. Com os irmãos menores montou diversos rádios de galena e distribuía aos menos favorecidos. O pai gastava as horas de folga lendo tudo que caísse nas mãos. Apurava a mente quando o assunto era a União Soviética, sua foice e martelo. Anum Branco entendia as máquinas. A ajuda dele, de enorme valia, não podia ser desprezada. Somariam suas interrogações. No certo teriam bom resultado. Como achá-lo e fazê-lo participar do desvendamento daqueles mistérios sem causar rebuliço na cidade? Nesta época de eleição os chefes políticos conseguiam redobrar o ódio do doutor delegado. O homem devia ser correligionário de todos os partidos. Ficava sempre acima da lei. No dizer dele pra não deixar dúvidas que a justiça era cega, mas enxergava tudo. Não tolerava voz alta nem destempero de ninguém. Prender não podia prender não. Acabada a eleição a cadeia transformava em feira, tamanha a barafunda de vozes. Motivo pra arrebentar os que desacataram a autoridade não era esquecido nunca. A fiança sustentava a família o ano inteiro. Voz corrente na cidade. Os dois careciam usar mais que cautela. Fugir de aglomerações evitando o vazamento das desconfianças. Dar o bote quando as urnas estiverem sendo lacradas. A notícia explosiva percorreria em segundos a cidade alcançando rápida a capital do Estado, daí ao cenário nacional recheada por manchetes espalhafatosas questão de minutos. As televisões ávidas por furos espetaculares enviariam seus repórteres e a parafernália pra transmissão ao vivo. Encontraram Anum Branco e a namorada curtindo a beira do açude. Farreavam à solta. Ele quase bêbado como um gambá. Ela virginalmente sóbria como deve acontecer com moça casadoura. Prevendo o estado que encontrariam o amigo levaram um suco de plantas pra levantar defunto, composto por cáscara sagrada, chapéu de couro, jatobá, alcaçuz, raiz jalapa, fedegoso, catuaba, angico, boldo, velame, jurubeba e anis-estrelado. Dose cavalar num tiquinho d’água. Mexida, remexida no copo, empurraram goela abaixo do abilolado, que de instantâneo botou pra fora a imensidão de mistura de cachaça, vinho, cerveja e farofa. Anum Branco tomou meio copo de café preto. Passe de mágica estava quase são. As novidades não fossem bem contadas causariam retorno ao estado de embriaguez. Magrão foi incumbido de expor a situação, detalhe por detalhe, tim-tim por tim-tim, repetindo calmo as respostas às necessárias perguntas. Agora Anum Branco se recorda. Ao votar notara alguma estranheza, mas deixou passar batido, delegou pouca importância quando a urna engoliu o voto. Ela riu na sua cara. Risada de escárnio, gozação, sabe-se lá o quê mais. O destino uniu os três detetives do cerrado na dura tarefa de desvendar o mistério do desmemoriamento das urnas. Não chegando a ele pelo menos denunciá-lo ao mundo todo. Por menos não ficaria. Horas depois arrebanharam desconfiados eleitores. Restou nenhuma dúvida. As urnas de Santo Antônio do Rio das Antas enlouqueceram. Fome voraz atingiu a vontade delas, mais votos colocassem mais rapidamente desapareceriam sem deixar rastro, sem mostrar razão. Ao findar o dia o sol escaldante cedeu lugar à calmaria da noite. Izebeiju chegou esbaforido à pracinha defronte da igreja. Outros surgiram. Seria um deus nos acuda. Também ele fora vítima do roubo do voto. Solidários, Chico Doido, Sá Genésia, Papa U, Bam-Bam-Bam, Maria Farofa, Nenzito e Burilim se juntaram a eles. Desarmados com o acontecido mal se continham. Maria Farofa distribuiu copada de seu assovio-de-cobra que bebiam escondidos, por trás do busto do governador. Estavam ali, não sabiam a razão, todavia não era por causa das diversas talagadas das águas-de-setembro ingeridas na noite anterior. Passaram pelos quartéis da cidade, sem distinção de partido. O importante era empanturrar à grande com as rodadas incessantes da boa cacharolete. Sem olheiros reprovadores se fartaram. Queriam mais que o mundo acabasse em goladas da arrebenta-peito. O último a cerrar fileira foi Beto. Também pudera há coisa de quatro noites acoitara nas barrancas do cemitério. No decerto pra descabaçar Ornela, morena de olhos amendoados, baitas coxas e seios durinhos como pêssego. Mostrava receio do desaprovo do Magrão. Fudelança só no casamento, antes dele demonstrava safadeza, falta de caráter. Beto cagava e andava pros conceitos e valores do irmão. Respeitava mas não acatava. Izebeiju assoviou e o Nego Sivi aproximou-se rápido, de antena ligada, pronto pra escutar e esparramar as novidades. Por sua boca as notícias corriam, espalhavam no ar mais rápido que a televisão. Um horror de esperteza. Igual que ele só mesmo o Marreta. Tristão Bezerra com autoridade de escrevente juramentado de cartório quis saber as acontecências. Repente a praça era um alvoroço só. Quando o sino da igreja do Rosário picou e repicou as cinco horas da tarde Vidrão, Anum Branco e Magrão apareceram com cara de quem tinha visto o destrambelhado. Bagas de suor rolavam por entre os fios das barbas ralas dos três. Susto, pavor. Enfiaram num vespeiro maior que as mãos entrelaçadas conseguiam pôr fim, dar um basta sem choro nem vela. Transformando caixote em palanque Magrão desabou suas desconfianças e temerosidades. A cada palavra, exclamação uníssona. Incrédulos viam, desviam as mãos do tinhoso tramando, tecendo confusão. Pra não perder o controle da situação os três inseparáveis organizaram comissão a fim de detalhar ao doutor juiz da eleição o havido. Tristão Bezerra investido em sua autoridade de escrivão juramentado pigarreou chamando atenção pro corpo mirrado. Queria porque queria ser o primeiro a anunciar as novas. De procissão improvisada rumariam ao fórum. O fuzuê estava formado. Fileiras engrossadas por onde passavam. O novo. Acontecia o absurdo surrupiamento de votos pelas urnas e ele corria à boca miúda. Urna revoltosa, doida varrida? Invenção de quem? Por mor de que alguém instava arruinar a cidade? Qual vivente seria capaz de vingança tamanha? Mais e mais gente aumentava a procissão do desassossego. A cidadezinha que de tão pacata não crescia arranjaria jeito de sair ilesa da situação revertendo em lucro a artimanha desaforenta? À frente da comitiva, os três inseparáveis controlavam a turba. Logo, logo surgiriam políticos loucos pra serem considerados os pais do desvendamento do mistério. As fileiras engordavam com a chegada dos craques do futebol: Tonho da Nena, Vadô Dois-Cus, Celino, Vatinho, Jão Brasil, capitaneados pela madrinha Dirce da Descaída. Pra maior destempero a furiosa atacou de dobrado inflamando a multidão. Panelaço, buzinaço, velas encimando janelas onde beatas rezavam temendo o fim do mundo. Algazarra, folia, carnaval. Todos andavam a bom andar rumo ao fórum que parecia distanciar ainda mais. Os ingleses da mina Morro do Ouro assistiam assustados. Não passava pela ideia deles entender o motivo de repentina loucura coletiva. Reclamadores da pasmaceira da cidade, viam surpresos a envolvente mudança. Verdade seja dita ninguém queria o fim dos acontecimentos. Talvez Sá Andreza pudesse fazer um feitiço em dose cavalar paralisando o tempo e a balbúrdia continuasse pra sempre, sem perseguição, enfrentamento, descontentamentos. Naquele instante o paraíso era ali, desnudado de mistérios. A multidão serpenteava pelas tortas ruas estreitas calçadas de pedras seculares. Testemunhas de namoros e infindas atrocidades. Juras de amor encimadas por vingança, assassinato. Séculos de história que em minutos poderiam mudar o destino do país inteiro. E se a rainha da Inglaterra, Tio Sam ou mesmo os comunistas comedores de crianças estivessem por trás do fuzuê? Correriam risco de morte os três inseparáveis? No cruzamento da Goiás, Irene com seus cabelos cacheados, um tesão de mulher aguardava a chegada do povaréu. Nest’ora iria grudar-se no Magrão. A safada aproveitaria a situação pra aparecer. Mostrar-se teiuda e manteiuda, sem nunca ser dele por inteira. O som dos dobrados preenchia o vazio. O fazedor de ventos cuidava de dispersá-lo pelos quatro cantos da cidade. Parada alguma botou o povo em frenesi pelas ruas, não antes desta. Não que não fosse patriota. Mas havia um cheiro de mudança no ar. Chegando na confluência das duas ruas principais Gustavinho Bem-Bem muda o repertório da Euterpe, mais ao gosto popular. Homens, mulheres, jovens e crianças saracoteavam ao som da inflamante Alegria, Alegria. As putas da Ferreirinha descambaram do Amoreiras passando pela igreja do Rosário estacando entre a Goiás e a Quintino Vargas, todas com os fartos seios à mostra. Ali não eram muié-damas, mas cidadãs mesmo sem saber com exatidão o havido. Reunidas pra alegria e capricho de Eli Caolho, sedento de luxúria, com dinheiro no bolso, horror de tesão de mal curtidas noites, de pau duro, pronto pra enrabar a primeira que desse chance. Iam os três inseparáveis num marchar sem fim. Amados, odiados por mudarem a história da pacata cidade. No fundo, no fundo estavam lixando pras coisas acontecidas ou por acontecer. Pexico e Robertinho vazaram a multidão. Agruparam-se aos três. Sem medir distâncias, cansados, esfomeados, sonhavam com um naco de pão com manteiga. Como no milagre da multiplicação centenas de sacos de papel com pastéis crocantes, passados e repassados de mão em mão saciaram a fome, repondo energia prum dia que prometia acabar nunca. A lua cheia qual balão de fogo apossou-se do céu de poucas estrelas. Os soldados do doutor delegado perfilados, mãos nas coronhas riam um riso forçado pra multidão que serpenteava avenida acima. O alto-falante da loja de João Turco dizia em bom som que era novembro e não outubro, roupas miúdas, jaquetas em promoção, como se um vivente arredasse os pés da caminhada e enveredasse pelas prateleiras de seu comércio. Velho Neco Galdino, Minerita, Nonô, Maria Dindinha, Auzina, Zau e seo Adriles encorpavam o rebuliço do inesperado, impensado movimento. No deveras os Botelho, gente mal amada pela pobretama toda se vira forçada a rumar com o populacho. Dona Maria Botelho dizia que aquilo acabaria em merda. Foi arrastada avenida acima, amordaçada, como a hora exigia. Pra ela deixar de pose que dinheiro graúdo, do bom a família tinha perdido todo nas mesas de sinuca, bacará, nas camas das formosas donzelas de Ferreirinha. Come lambari e arrota bacalhau. Portassem armas, não o título de eleitor, seriam todos confundidos com revoltosos de qualquer canto do mundo. Sem querer outras conversas iam avançando pela avenida. Inda não houve adesão de políticos. Por certo os engravatados e preguiçosos esperavam a multidão na praça do fórum sem gastar energia, cansar as pernas, ávidos por assumirem o comando do espontâneo movimento. Atenção voltada pra outros pensamentos Magrão não deu a mínima pelota pra Irene que chateada pelo pouco caso do enrabichado soluçou baixinho. No palanque armado às pressas já se empoleiravam o prefeito, vereadores, o bispo, um candidato a deputado estadual pela região e o doutor delegado. O cenário era de velório, tamanha a estrovenga notícia. Apenas o doutor juiz da eleição não comparecera. Dentro do fórum tinha os olhos pregados na televisão. A qualquer momento uma edição extraordinária aconteceria, não queria ser apanhado de surpresa. O fato devia ter atravessado a imensidão do cerrado. Lá fora o barulho ensurdecedor dividia suas preocupações. Os três inseparáveis e sua comitiva apossaram-se da praça. Subiram no palanque, não sem antes expulsar os que lá se encontravam. Exigiram a presença do juiz. Silêncio inaugural percorreu as ruas adjacentes quando Magrão recém-nomeado porta-voz dos descontentes convocou a autoridade pra ouvir denúncias. Durante quinze minutos expôs a insegurança das urnas. Contou o sofrimento de Vidrão, a certeza de que a eleição tinha sido fraudada. Urgia tomada de decisão do juiz eleitoral. Escarafunchar as urnas, descobrir se as suposições encerravam algum cunho verídico. Juiz e representantes do povo rumaram ao auditório do fórum onde vistoriariam as urnas. Os meganhas do doutor delegado bateram continência pro juiz em reverência de imediato repudiada, pois o homem não era muito chegado a tais salamaleques. Três ou quatro especialistas em informática, todos do Tribunal Regional Eleitoral, foram convocados às pressas e testavam os equipamentos. Foram mudando de cor. Corriam de um lado pro outro, conferindo dados, expondo angústias. Sem nenhuma razão aparente as urnas tinham enlouquecido. Engoliram os votos dando um chá de sumiço neles. Centenas e centenas delas intatas. Virgenzinhas da silva, nunca foram descabaçadas por um voto sequer. A confusão estava formada sem haver meios pra escondê-la dos olhos e ouvidos da nação. O juiz como caminhando pra forca telefonou ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral comunicando o tresloucado acontecimento. Em menos de uma hora helicópteros das mais variadas emissoras de rádio, televisão, jornais e agências noticiosas tomariam conta do espaço aéreo de Santo Antônio do Rio das Antas. A parafernália eletrônica pra transmissão ao vivo logo abarrotaria a praça do fórum. A cidade seria manchete nos principais veículos de comunicação do país e das estranjas. Ovacionados pela multidão, os três inseparáveis aguardavam a volta do magistrado com instruções da Capital Federal. O burburinho corrente incriminava o presidente da República como mandante da chacina dos votos. Principal interessado na derrota do candidato da oposição empregou todos os meios para inocular vírus quase indetetável na memória de cada urna eletrônica. A dose virulenta superou o estimado e desejado. Bem antes da meia-noite não havia espaço vazio na praça do fórum e cercanias. Repórteres gritavam ordens pra cinegrafistas. Um descabimento de vozes, alvoroço condizente com o tamanho do acontecimento. Luz, câmera, ação. Um foco de azul intenso engole a fachada do fórum e o palanque. Dali sairia a notícia perturbadora. Fez-se silêncio mortal quando o juiz saiu do prédio da justiça eleitoral anunciando que o vírus denominado DP27OUT fora inoculado nas urnas eletrônicas de Santo Antônio. Na conexão com o centro de processamento de dados do Tribunal Superior Eleitoral aconteceu a contaminação geral apagando todos os votos. O país estava à beira de um conflito. Fraudadas as urnas um terceiro turno aconteceria. A multidão descontrolada, enraivecida, urrava palavras de ordem pelo impeachment do presidente da República. Rebelião iminente explodiria até o raiar do sol. A uma hora dessas ou o presidente fugira ou o palácio estava cercado, até mesmo em chamas. Notícias desencontradas reportam que temendo reação descontrolada da população saíra deixando a Capital Federal em verdadeiro pandemônio. Dias passados corre à solta que no exílio forçado, verificando suas contas em paraísos fiscais descobriu que piratas de computadores saquearam seus depósitos bancários...

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