sábado, 1 de dezembro de 2012

SERAPIÃO FALA MOLE

Serapião Fala Mole Serapião Fala Mole nunca escondeu de ninguém sua loucura. Dizia que se alimentava de ventos e sonhos. Escrachava, lembrando a todos a impossibilidade de lhe roubarem os alimentos. Se chovesse arranjava um gramado fofo, estatelava-se, abria a bocarra deixando a água descer pela garganta com a força de corredeira. Quando a chuva cessava, dando início ao período seco, cofiava a barba, preguiçoso, media a distância que o separava do Riacho de Sangue, pesava os prós e os contras, pra depois, só ao saber a língua esturricando arriscava mover-se à cata de algum filete d’água onde pudesse matar a sede. Soletrava lua e estrelas quando o céu se encharcava de azul, brindando os olhos com clarões de feri-los quase ao ponto de cegar. Desconversava ligeiro quando alguém se achando mais esperto tentava fazê-lo dizer o que não devia. Muitos por sua esquisitice o julgavam viciado em drogas. Respondia que era viciado na vida. Nada mais. Agora mesmo estava de bem com o mundo. Queria se entupir de alegria, andar sem destino, cavalgar os raios do sol. Essas loucuras se apossavam dele, sem mais nem menos, mas Serapião aprendeu a viver com todas as doidices e não dava muita bola pro que pensavam a seu respeito. Era tempo de jabuticaba e ele ficava sentado, esquecido de tudo, xingando a natureza, pois que ele tinha vontade era de chupar gabiroba. Seus tempos e coisas pareciam ter mudado. Sossego, calma, o olhar perdido em busca do futuro pareciam reinar, dando a Serapião Fala Mole convicção que não podia se esconder detrás de morros e moitas, deixando que as pessoas buscassem respostas pras perguntas ainda não feitas. Era homem de poucas palavras, mas jamais largava companheiros na mão. Bisbilhotava tudo querendo descobrir o que movia o mundo. Patético, alegre, cabisbaixo ou triste só se encontrava quando dava de cara com a Cachoeira de Livros. As gentes de Ipê-branco, minúsculo povoado que o progresso se esqueceu há tempos de olhar, reclamavam dizendo que as loucuras de Serapião Fala Mole impediam o governo estadual, mais preocupado com as exportações de soja transgênica, milho, algodão, etanol, arroz e madeira extraída ilegalmente das reservas indígenas, de investir naquelas bandas, deixando-os morrer quase que à míngua. Há mais de dois anos que um médico da Secretaria de Saúde não visitava a comunidade. Quem fosse acometido de algum mal súbito tinha que se virar procurando a cidade mais próxima. Quando dizia que vinha de Ipê-branco no sempre era largado em qualquer canto, esperando a morte chegar. O abandono chegou a tal ponto que o povo do Ipê, agora preferia morrer aos poucos, devagarinho, na solidão de seus ermos, sem se preocupar em buscar alívio pros seus males nas vizinhanças. Ademais aquela gente nunca virava as costas aos amigos, mesmo quando acreditava que aquela pessoa poderia destruir o povoado. Mas ninguém acreditava que Serapião Fala Mole fosse tão ruim a ponto de provocar o desaparecimento de Ipê-branco do mapa. Podia ser lelé da cuca, variado, mas todos o sabiam e reconheciam inofensivo, um louco manso, cujo único mal era dizer verdades e viver lendo solitariamente seus livros debaixo de sol ou chuva. O povão só moderava a perseguição acirrada quando ele colhia a cana-de-açúcar, prepa-rando em seu improvisado alambique a pinga de orelha, especialíssima e com parte dela produzia centenas de litros dos mais variados licores. Festa junina sem a bebida apurada de Serapião Fala Mole era impensável. Por mais brasileira que fosse aquela população, acostumada a roubar até galinha morta, algo estranho acontecia com a produção de Serapião. Ele deixava suas garrafas sobre imensa mesa ou dentro de caixas, com o preço. Ao lado uma espécie de urna onde deveria ser colocado o valor de cada garrafa. Durante anos nunca foi passado pra trás. No outro dia, depois da festança, pela manhã, quando vinha conferir o resultado da venda, sempre encontrava o equivalente às garrafas deixadas nas caixas. O povo não tinha coragem de roubá-lo, embora fosse capaz de persegui-lo e atormentá-lo. Indecifráveis mistérios da mente humana. A população do povoado não entendia de onde Serapião Fala Mole arrancava tantos li-vros. Perguntado se fazia de desentendido aumentando ainda mais a curiosidade. Certo é que as crianças da única escola da comunidade recebiam regularmente dezenas de livros e elas cuidavam de devorá-los, com urgência, prevendo a chegada de outros, em breve espaço de tempo. No fundo existia terna cumplicidade entre elas e seu benfeitor. Por mais que tentassem segui-lo, em determinado pedaço do caminho ele passarinhava e ninguém era capaz de encontrá-lo. O máximo que conseguiam enxergar era um gavião-anta, talvez a encarnação avoadeira de Serapião pra modo de se defender das maldades dos homens. Não havia de ser novidade. Muita gente acreditava nessa possibilidade, ainda que remota. Quando julho findou todos os ipês ficaram carecas. Bastava a primeira chuva pra eles folhescerem e depois vesprando a primavera florescerem. Era o tempo que Serapião Fala Mole mais gostava no ano. Podia dividir os momentos admirando flores, insetos e livros. Tinha vaga notícia do futuro, mas sabia que havia um lugar reservado pra recebê-lo. Jurava de pés juntos que lá estaria sozinho ou bem acompanhado. Mas não via razão em se emaranhar nessas brenhas já que tinha por obrigação viver cada momento do presente. E seu tempo se resumia em plantar e colher livros. Destino ou perdição. Eram certezas que mal e mal conseguia sustentar em suas pernas de andador desnaturado. Pra ele, hoje foi dia de festa, arrancou uma dúzia de livros que julgava não mais encontrar em lugar algum, mas lá estavam eles, enfileirados, alguns semiabertos. Enroscado no Pequeno Príncipe encontrou Reinações de Narizinho. Apanhou os dois de uma só vez e se pôs a lê-los com ganância. Os pestinhas viviam fugindo, quanto mais os procurava, mais escafediam, como pretendessem tornar livros raros. Mas, enfim, os danadinhos foram agarrados, sem chance de fuga. Enfurnou na leitura acabando por esquecer todos os outros problemas que o afligiam, a Até da fome costumeira que naquela hora o rondava tal qual praga de mulher grávida sem desejos satisfeitos. Mas o que de melhor havia no mundo, além do livro companheiro para os momentos mais difíceis? Quando aquele emaranhado de letras negou-lhe carinho? Ou o fez pensar di-reito, rejeitando as próprias pechas e aquelas que os invejosos lhe impunham? Já nem mais ligava quando alguém berrava ao vê-lo passar:  lá vem Serapião Fala Mole marido de livros! Por certo as pessoas tinham mesmo era mágoa por não conseguirem entender que ele descobrira o melhor alimento para a alma. E por serem mesquinhas queriam impedir que ele desfrutasse das gostosuras que encontrava em cada página lida. Foi por pura mangação que disseram pra ele que o céu, lugar que somente os bons al-cançavam abrigava a maior biblioteca do mundo. Em sua santa inocência Serapião Fala Mole acreditou piamente e passou a perseguir um meio de chegar até lá, mas queria provar primeiro, antes de morrer, pois se perguntava a todo momento: – será que depois de morto ainda saberei ler? Será que terei olhos ansiosos à cata de um bom livro? Uma resposta que só cabia mesmo na boca do tempo. Quando ficava por demais de aperreado enfiava a fuça no primeiro compêndio que en-contrava pela frente. Serapião adorava falar compêndio. Enchia a boca de satisfação irritando as pessoas que, em suas santas ignorâncias acreditavam que ele estava xingando cada uma delas. Nessas horas se contorcia em risadas, enfurecendo ainda mais o povaréu, que, por vezes corria atrás do padre pra modo de descobrir o significado das palavras. Mas nem sempre tudo dava certo, pois acabavam esquecendo o que tinham escutado, enraivecendo o pároco que dizia ter mais o que fazer além de ficar ouvindo queixumes e fofocas. É por isso que Serapião Fala Mole gostava mais das crianças. Elas, no máximo, tentavam irritá-lo com alguma brincadeira ou grosseria, que de bom coração perdoava. Num longínquo dia fora criança arteira, o que permitia compreender e aceitar tudo que viesse delas. Por vezes discordava, envermelhava a cara, socava o ar com raiva, mas tudo coisa passageira, nada que um bom livro ou pequena história contada bem devagarinho não curasse. Sabia de antemão que não tinha tempo para se ocupar guardando mágoas ou criando desafetos. A vida era tão curta, impossível dividi-la com quizilas. Só via o que era belo. E o que era belo estava encerrado sempre nas páginas dos livros. Não deixava por menos. Queria incutir na cabeça daquela criançada o valor da leitura e assim ia levando a vida, rompendo barreiras, construindo um novo mundo. Não esperava recompensas terrenas. Aceitava de bom grado o que tinha, pouco se im-portando com aquilo que a vida negava. Já não mais guardava rancor das pessoas que costumeiramente gostavam de chamá-lo louco. Sabia vagamente que sua loucura era de lucidez estonteante. Bastava-lhe reconhecer incapaz de fazer o mal a qualquer vivente. Depois, bom depois, ele tinha consolo nos livros... Quando ouviu dizer que o céu era um lugar bonito, com uma biblioteca imensa, livros em todas as línguas e de todos os lugares, até da esquecida Paracatu, achou que era tempo de abandonar os evangélicos que só viviam pedindo dízimo, sem nunca ter lhe dado um só livro. Além do mais eles não acreditavam em santos e como ele poderia chegar até aquela biblioteca sem antes passar por São Pedro? Assim se converteu ao cristianismo, na esperança de conseguir seu lugar bem ao lado daquilo que amava por sobre todas as coisas: os livros. Nem se deu ao luxo de avisar ao famigerado pastor de sua igreja. Ele, esperto como cão raivoso, tentaria todos os meios para convencê-lo a mudar de ideia. Qual o quê! queria milhares de livros a seu redor e daquele um miserável não arrancaria nada. Virou assíduo frequentador da igreja. Se dependesse dele não perdia uma missa. Até mesmo as celebradas nos dias úteis. Por vezes estava agarrado num livrinho quando ouvia o sino repicar. Deixava tudo de la-do e corria sem olhar pros lados. Não gostava de chegar atrasado, temendo assim perder seu lugar no céu. E os anos foram atravessando e cada vez mais Serapião Fala Mole acreditava que estava aos poucos garantindo seu lugar. Arrepiava todinho só em pensar na livraiada esparramada pelas mesas da enorme biblioteca, podendo pegar um por um sem que ninguém viesse chamar sua atenção. Igual a sua Cachoeira de Livros. Jamais foi proibido de escolher. Dependendo da época, se era tempo das chuvas, a queda d’água se avolumava ainda mais despejando ensurdecedoramente enorme quantidade de brochuras que brilhava quando o sol batia de frente. Era um festival de luzes, cores e letras, dominando sua vida, seu pensamento. Apesar de tudo que fez pela criançada Serapião Fala Mole sabia que o povo de Ipê-branco sonhava descobrir a origem de seus livros. Muitos dali juram que aconteceu inesperadamente. Dizem que ao ser apanhado colhendo dezenas de exemplares na Cachoeira de Livros Se-rapião Fala Mole passarinhou de vez. Transformou-se em imenso gavião-real, com belíssimas asas de Grande Sertão: Veredas e bico de Vidas Secas alçando voo, rumando pro céu pra nunca mais voltar. (Serapião Fala Mole é o título do último livro de contos de Romulo Nétto, publicado pela Carlini & Caniato Editorial e será lançado em dezembro de 2012).

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