quarta-feira, 19 de setembro de 2012

SERAPIÃO FALA MOLE

Serapião Fala Mole nunca escondeu de ninguém sua loucura. Dizia que se alimentava de ventos e sonhos. Escrachava, lem-brando a todos a impossibilidade de lhe roubarem os alimentos. Se chovesse arranjava um gramado fofo, estatelava-se, abria a bocarra deixando a água descer pela garganta com a força de corredeira. Quando a chuva cessava, dando início ao período seco, cofia-va a barba, preguiçoso, media a distância que o separava do Ria-cho de Sangue, pesava os prós e os contras, pra depois, só ao saber a língua esturricando arriscava mover-se à cata de algum filete d’água onde pudesse matar a sede. Soletrava lua e estrelas quando o céu se encharcava de azul, brindando os olhos com clarões de feri-los quase ao ponto de cegar. Desconversava ligeiro quando alguém se achando mais esper-to tentava fazê-lo dizer o que não devia. Muitos por sua esquisitice o julgavam viciado em drogas. Res-pondia que era viciado na vida. Nada mais. Agora mesmo estava de bem com o mundo. Queria se entupir de alegria, andar sem destino, cavalgar os raios do sol. Essas loucuras se apossavam dele, sem mais nem menos, mas Serapião aprendeu a viver com todas as doidices e não dava mui-ta bola pro que pensavam a seu respeito. Era tempo de jabuticaba e ele ficava sentado, esquecido de tudo, xingando a natureza pois que ele tinha vontade era de chupar gabiroba. Seus tempos e coisas pareciam ter mudado. Sossego, calma, o olhar perdido em busca do futuro pareciam reinar, dando a Sera-pião Fala Mole convicção que não podia se esconder detrás de morros e moitas, deixando que as pessoas buscassem respostas pras perguntas ainda não feitas. Era homem de poucas palavras, mas jamais largava companheiros na mão. Bisbilhotava tudo querendo descobrir o que movia o mundo. Patético, alegre, cabisbaixo ou triste só se encontrava quando dava de cara com a Cachoeira de Livros. As gentes de Ipê-branco, minúsculo povoado que o progresso se esqueceu há tempos de olhar, reclamava dizendo que as lou-curas de Serapião Fala Mole impediam o governo estadual, mais preocupado com as exportações de soja transgênica, milho, algo-dão, etanol, arroz e madeira extraída ilegalmente das reservas indígenas, de investir naquelas bandas, deixando-os morrer quase que à míngua. Há mais de dois anos que um médico da Secretaria de Saúde não visitava a comunidade. Quem fosse acometido de algum mal súbito tinha que se virar procurando a cidade mais próxima. Quando dizia que vinha de Ipê-branco no sempre era largado em qualquer canto, esperando a morte chegar. O abandono chegou a tal ponto que o povo do Ipê, agora preferia morrer aos poucos, devagarinho, na solidão de seus er-mos, sem se preocupar em buscar alívio pros seus males nas vizi-nhanças. Ademais aquela gente nunca virava as costas aos ami-gos, mesmo quando acreditava que aquela pessoa poderia destru-ir o povoado. Mas ninguém acreditava que Serapião Fala Mole fosse tão ruim a ponto de provocar o desaparecimento de Ipê-branco do mapa. Podia ser lelé da cuca, variado, mas todos o sabiam e reconheciam inofensivo, um louco manso, cujo único mal era dizer verdades e viver lendo solitariamente seus livros debaixo de sol ou chuva. O povão só moderava a perseguição acirrada quando ele co-lhia a cana-de-açúcar, preparando em seu improvisado alambique a pinga de orelha, especialíssima e com parte dela produzia cen-tenas de litros dos mais variados licores. Festa junina sem a bebi-da apurada de Serapião Fala Mole era impensável. Por mais brasileira que fosse aquela população, acostumada a roubar até galinha morta, algo estranho acontecia com a produ-ção de Serapião. Ele deixava suas garrafas sobre imensa mesa ou dentro de caixas, com o preço. Ao lado uma espécie de urna on-de deveria ser colocado o valor de cada garrafa. Durante anos nunca foi passado pra trás. No outro dia, depois da festança, pela manhã, quando vinha conferir o resultado da venda, sempre en-contrava o equivalente às garrafas deixadas nas caixas. O povo não tinha coragem de roubá-lo, embora fosse capaz de persegui-lo e atormentá-lo. Indecifráveis mistérios da mente humana. A população do povoado não entendia de onde Serapião Fala Mole arrancava tantos livros. Perguntado se fazia de desentendido aumentando ainda mais a curiosidade. Certo é que as crianças da única escola da comunidade rece-biam regularmente dezenas de livros e elas cuidavam de devorá-los, com urgência, prevendo a chegada de outros, em breve espa-ço de tempo. No fundo existia terna cumplicidade entre elas e seu benfeitor. Por mais tentassem segui-lo, em determinado pedaço do ca-minho ele passarinhava e ninguém era capaz de encontrá-lo. O máximo que conseguiam enxergar era um gavião-anta, talvez a encarnação avoadeira de Serapião pra modo de se defender das maldades dos homens. Não havera de ser novidade. Muita gente acreditava nessa possibilidade, ainda que remota. Quando julho findou todos os ipês ficaram carecas. Bastava a primeira chuva pra eles folhescerem e depois vesprando a prima-vera florescerem. Era o tempo que Serapião Fala Mole mais gos-tava no ano. Podia dividir os momentos admirando flores, insetos e livros. Tinha vaga notícia do futuro, mas sabia que havia um lugar reservado pra recebê-lo. Jurava de pés juntos que lá estaria sozi-nho ou bem acompanhado. Mas não via razão em se emaranhar nessas brenhas já que tinha por obrigação viver cada momento do presente. E seu tempo se resumia em plantar e colher livros. Destino ou perdição. Eram certezas que mal e mal conseguia sustentar em suas pernas de andador desnaturado. Pra ele, hoje foi dia de festa, arrancou uma dúzia de livros que julgava não mais encontrar em lugar algum, mas lá estavam eles, enfileirados, alguns semiabertos. Enroscado no Pequeno Príncipe encontrou Reinações de Narizinho. Apanhou os dois de uma só vez e se pôs a lê-los com ganância. Os pestinhas viviam fugindo, quanto mais os procurava, mais escafediam, como pretendessem tornar livros raros. Mas, enfim, os danadinhos foram agarrados, sem chance de fuga. Quando Serapião Fala Mole ouviu dizer que o céu era um lu-gar bonito, com uma biblioteca imensa, livros em todas as línguas e de todos os lugares, até da esquecida Cuiabá, achou que era tempo de abandonar os evangélicos que só viviam pedindo dízi-mo, sem nunca ter lhe dado um só livro. Além do mais eles não acreditavam em santos e como ele poderia chegar até aquela bi-blioteca sem antes passar por São Pedro? Assim se converteu ao cristianismo, na esperança de conseguir seu lugar bem ao lado daquilo que amava por sobre todas as coisas: os livros. Nem se deu ao luxo de avisar ao famigerado pastor de sua i-greja. Ele, esperto como cão raivoso, tentaria todos os meios para convencê-lo a mudar de ideia. Qual o quê! queria milhares de livros a seu redor e daquele um miserável não arrancaria nada. Virou assíduo frequentador da igreja. Se dependesse dele não perdia uma missa. Até mesmo as celebradas nos dias úteis. Por vezes estava agarrado num livrinho quando ouvia o sino repicar. Deixava tudo de lado e corria sem olhar pros lados. Não gostava de chegar atrasado, temendo assim perder seu lugar no céu. E os anos foram atravessando e cada vez mais Serapião Fala Mole acreditava que estava aos poucos garantindo seu lugar. Ar-repiava todinho só em pensar na livraiada esparramada pelas mesas da enorme biblioteca, podendo pegar um por um sem que ninguém viesse chamar sua atenção. Igual a sua Cachoeira de Livros. Jamais foi proibido de escolher. Dependendo da época, se era tempo das chuvas, a queda d’água se avolumava ainda mais despejando ensurdecedoramente enorme quantidade de brochu-ras que brilhava quando o sol batia de frente. Era um festival de luzes, cores e letras, dominando sua vida, seu pensamento. Dizem que ao ser apanhado colhendo dezenas de exemplares na Cachoeira de Livros Serapião Fala Mole passarinhou de vez. Se transformou em imenso gavião-real, com belíssimas asas de Grande Sertão: Veredas e bico de Vidas Secas alçando voo, ru-mando pro céu pra nunca mais voltar.

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