quarta-feira, 24 de abril de 2013
O ÚLTIMO TIRO
Na verdade não sei quantos anos fiquei perdido naquele pensamento. É bem possível que tudo não tivesse passado de um sonho ruim, mas o final ficou lá posto: o corpo do homem estendido no chão, bem diante dele, eu e minha fumegante arma de fogo.
Ora bolas foi apenas mais uma morte. Mas porque aquele pequenino demônio que decidiu fixar sua moradia dentro de mim continuava martelando em minha cabeça todas as aquelas miseráveis lembranças? Não bastava eu ter sido predestinado pra ser o executor de um homem que nunca dantes tinha visto na vida? Era pouco sabê-lo casado, pai de três filhos pequeninos, feitos em escadinha, marido de mulher exemplar, que jamais abriu a boca pra xingar o menor dos passarinhos? Filho de pais amantíssimos que todos os domingos descambavam de seus pagos, atravessando o perigoso riacho de águas tortuosas, o famigerado Filó Preto, pra passar os mais doces momentos com nora, netos e o filho perdidamente tão querido?
Era pouco saber que finei sem o menor remorso uma pessoa que nunca atravessou meu caminho, e jamais ousou olhar-me nos fundos dos olhos ou dirigir uma só palavra, por mais pequenina que fosse?
E o diabinho lá dentro de mim apenas atiçando fogo nas cangalhas do pensamento: — qual o quê foi apenas ato de justiça, seu lugar no inferno depois desta está mais do que garantido!
Se pensava, via o sangue escorrendo, os gemidos, os olhos estatelados, o chegar do estertor da morte, o momento do ir-se embora sem ter sabido a razão da morte, ou não saberia ele? Por certo que sim, pois se fui incumbido de cumprir a missão, o dito lá já morto deveras devia de reconhecer que seu fim se aproximava a largos passos, só que não presumia que ele estivesse tão próximo. E como estava.
No fundo de meu coração doía aquela dor fininha, desengonçada, tremeliqueira, desavisada, desavergonhada, corroendo o de melhor de mim, sempre acusando os abusos cometidos. E lá estava eu ligando pra alguma coisa que não fosse receber pelo serviço pago?
Fui, ou melhor, nasci pras incumbências solenes das jagunçagens e difícil por demais dizer que teria melhor destino não fosse o enveredar por esse caminho de sangue. Sangue feito e construído de dor e sofrimento, de angústias, revezes, alegrias (pra quem mandava executar), tristeza pra quem cumpria a sina de fazer o trabalho.
Tudo isso é só uma mesma coisa que a gente tenta escapulir do significado, mas o marcante da violência fica resguardado na mente. Pior ainda, o danadinho do cramulhão, o pé de gancho que não perde um só momento de ficar assoprando nos ouvidos da gente: — muito bem valentão! Você provou mesmo que é cabra duro na queda, machão, dos de confiança, daqueles que se conta em todas as horas. Tô contigo e num abro!
E se me foram dados os minutos de arrependimento. Bem sei não consegui qualquer significado de guarida. Tinha feito tiro certeiro.
Infeliz de mim que sabia de meu precoce destino mesmo bem antes dele acontecer. Sempre foi assim. Nunca nada ocorrera sem que nos miolos moles meus pingasse uma ponta de indicação, como anunciando: amanhã você acabará com uma pomba de bando! E não é que mal e mal amanhecia e a primeira coisa que via na frente era ela e, eu, sem dó nem piedade punha a pedra no estilingue e atirava. Tanta certeza tinha da morte da pobre ave que corria de olhos fechados só pra ter o prazer de apanhar a bichinha que ainda estrebuchava. Acabava com seu sofrimento torcendo o pescoço, correndo pro riacho mais próximo pra depená-la, abri-la tirando suas partes, cortando em pedaços e assando ali mesmo na beira do mato. Ficava feliz? Ara se ficava, de imensa felicidade pra não perder de vista e fôlego.
Nasci pra ser cruel. Mas, aquela hora não saía de minha cabeça. Difícil esquecer aquele momento, como se ele tivesse vindo pra marcar presença eterna.
A forja da maldade estava instalada dentro de mim desde criança e, agora me sentindo adulto, sabia que não existia distanciamento entre o passado, o presente e o futuro que mal e mal se avizinhava.
O que pintava na minha frente não parecia boa coisa. Acontece que mesmo desconfiado de tudo tinha pequena ponta de prazer em torturar, massacrar, aniquilar qualquer vivente que surgisse. Não importava o tamanho, peso, se era bicho de plumas, rasteiro. Cobras, lagartos, teiús, jacarés, passarinhos, o que os olhinhos espichados pra bem ver de longe alcançassem já estava preparado pra trucidar, esfolar, assar e devorar com apetite assassino.
A história parou no meu peito, encravando unhas felinas não deixando que esquecesse o destino cheio de sangue que, de pouco em pouco, deixaria pelo meu longo caminho.
Talvez por algumas horas me sentisse possuído pelo demo, mas acho que não era bem assim. Nascera predestinado pra ser ruim. Não adiantaria nada tentar fugir do que já fora escrito pra ser minha vida bem antes mesmo do nascimento. Tava tudo lá posto no livrão que me acompanharia em cada passo dado.
Um tiro! Uma queda! Uma vida! Qual maior prazer pra mim senão o de sentir detentor de decisões extremadas?
Não era um bode velho, caquético, doente. Invés disso, possuidor de fortaleza corporal e mental invejável. A boca demonstrava o prazer enorme que sentia ao despachar quem fosse pro outro lado da vida. Céu? Inferno? Nem nunca quis saber aonde o dito cujo ia, sabia apenas que tinha despachado mais um. Tão só!
Por Romulo Nétto - as duas primeiras páginas do meu livro inédito O ÚLTIMO TIRO.
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