quarta-feira, 24 de abril de 2013

SERTÃO DE SANGUE

Dizia que estrelas são almas penadas que vagavam pela imensidão do céu depois de desocuparem os corpos aqui na terra. Indagado sobre a razão pela qual elas não se moviam escapulia com as respostas mais extravagantes.  Uai! É que elas não gostam de ser observadas. Então quando o mundo adormece, elas começam a dançar rasgando o infinito azul com seus rabos enchameados, parindo fogo, buscando lugar pra se esconder dos maldosos olhares humanos. E quem de nós podia contestar suas verdades? Arguto como são os matutos profundos conhecedores das mentes, adivinhadores dos mais tênues e tenebrosos pensamentos ele não escondia suas desconfianças: o homem está ficando cada vez mais ganancioso e perigoso. Parava um momento. Cofiava a barba rala, picava o fumo de corda, alisava a palha de milho, aprontava o cigarro e se perdia num pitar sem fim. Tava pouco ligando se o dia se renderia ao calor do sol. Logo ali, a dois palmos e meio de distância, a vereda estava pronta pra receber seu corpo nu, acariciando as partes, refrescando a mente, pondo na cachola mais coisas pra desvendar.  Hum! Hum! Pra que mais descobertas a fazer?  Venerava seus muxoxos e não sabia a razão de suas espertezas. Nunca dormia com os dois olhos fechados. Essa prática antiga salvou-lhe a vida diversas ocasiões. Ninguém sabia de onde arrancava o dinheiro que usava pra pagar, religiosamente as despesas que fazia nas vendas do vilarejo. Ladrão ele não era, pois jamais arredara os pés da região. Trabalhar mesmo, aquele trabalho duro, suado, empreitadas de sol a sol, não era muito chegado. Mas dinheirinho curto, contado, de notas amassadas e moedas meio carcomidas pelo tempo, ele tinha pro sustento e dava de sobrar de quando em onde um pouco. Não que fosse mão de vaca. Gastava com parcimônia e certeza de quem se proibia cometer excessos. Luxo? Não! nem num era chegado a tais desesperos. Amava a noite como nós amamos as mulheres. Seu prazer maior era ficar escarafunchando o céu esperando a primeira estrela aparecer, com seu brilho fogoso, convidativo, pra boa pitada ou generosa primeira e única dose noturna da cachaça escolhida a dedo entre as inúmeras garrafas da venda de seo Jacó, o turco desnaturado. Do lado da casinha a mirrada horta com dois ou três pés de tomate, couve, pimenta malagueta, batata doce em profusão. Mais ao largo as bananeiras, mangueiras, laranjeiras e o imenso cajueiro que frutificavam o ano inteiro. O poço que furara a duras penas, mas recompensado pela fartura d’água, que mesmo nas maiores secas jamais o deixara com sede. Dali retirava latas e latas pra regar sua pequena horta e as plantas. No pequeno cercado os dois pangarés de estimação. Mal punha os pés fora da casinha e os bichos despencavam numa danadeira de relinchos, aguardando a comida farta. Milho, capim picado com carinho e prazer, além da necessária colherada de sal fino. Quando sentia saudade das redondezas selava um dos animais e disparava mundão afora, mesmo sabendo que o outro cavalo ficava relinchando, pisoteando raivoso o chão duro, furioso por não ter sido o escolhido. Até parecia que o bicho pensava, dizer dele. E varava o dia, pra na volta trazer buritis, gabirobas, às vezes um tatu, noutras vezes uma capivara. Passava horas limpando e manteando suas caças. Gostava de chupar as frutas deixando o forte caldo escorrer pelo queixo empapando a barba que apresentava os primeiros sinais de embranquecimento. O chão cavucado há tempos imemoriais estava sempre pronto esperando apenas que pedaços de angico fossem colocados e acesos. Ali ele passava horas assando suas caças. O mundo não lhe dava outras coisas pra fazer e se sentia recompensado com o poder ficar à toa, descompromissado com o tempo, apenas preocupado em viver sua vida da maneira mais pachorrenta possível. Assim era aquele matuto: um sábio da natureza. Precoce em seus conhecimentos sobre flores, frutas, pássaros e bichos rastejantes ou não. Ouvido apurado distinguia de longe por onde uma onça desavisada preparava seu pulo, ou a cascavel aguardava sua comida. Vez por outra praticava pequenas maldades apanhado dos ninhos das aves os ovos com os quais preparava a farta farofa com couve e pedaços de toucinho de barrigada de capivara. Esparramava o corpo na velha e carcomida rede, colocava sobre o tamborete o bule com café escaldante e na velha lata de goiabada a farofa. Enchia a mão e lançava na boca escancarada empurrando goela abaixo com boa golada de café que descia queimando e rasgando o peito. Por vezes tossia, mas logo se acalmava. Dizia que nada mais falta lhe fazia. Mas pensando bem talvez uma mulher fizesse a diferença. Qual o quê! Ele não se dava ao desfrute de sair zanzando à noite pelos dois únicos bares da cidade à cata de companhia feminina, menos ainda, frequentar a missa mensal apenas porque lá poderia encontrar fermoso rabo de saia. Domingo pra ele não era dia de ir até o vilarejo, senão de tirar a alpercata de carreiro, chafurdar os pés no lodo das beiradas veredianas, esquecer-se por longas horas, deixando o sol tisnar-lhe ainda mais a pele curtida pelas longas cavalgadas ou caminhadas com o torso nu. De longe divisou a aproximação de três cavaleiros. Quem diabos enfrentaria aquele sol de inferno vestindo grossas capas Ideal? Boa gente decerto não seria e também não lhe pareceu que viessem carregados em boa paz. Por Romulo Nétto - as primeiras páginas do livro SERTÃO DE SANGUE, a ser lançado brevemente.

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