segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Lula é vagabundo com todas as letras e definições, mas crê que seus desafetos são iguais a ele

Dono de verborragia que não coaduna com o cargo que ocupou, Luiz Inácio da Silva é o retrato vivo do pior e mais corrupto período político da história do Brasil. Lula, o semideus, tem motivos de sobra para estar atormentado, mas descontrole sempre foi o seu forte, especialmente quando está acuado e tenta reagir. Essa atitude animalesca de ir contra o eventual predador faz de Lula um personagem da pior espécie, um exemplar détraqué da raça humana. Covarde contumaz, pois nunca fala o que pensa a respeito de alguém de forma direta e objetiva, Lula certa feita chamou de “idiota” o secretário-geral da FIFA, Jérome Valcke, que cometeu o pecado de externar sua justa preocupação com os aeroportos brasileiros. Herói de botequim, pois só os ébrios se enchem de repentina coragem, o ex-presidente vociferou a ofensa de maneira transversa e inominada, pois o ex-metalúrgico não honra as calças que veste. Lula é um borra-botas com todas as letras. Preocupado com os desdobramentos de diversos escândalos de corrupção, os quais podem levá-lo de roldão ao núcleo de cada um dos imbróglios, Lula saiu de cena durante duas semanas, tempo suficiente para a camarilha petista organizar um esquema de blindagem e disparar ordens aos genuflexos filiados ao partido. Montada a farsa, Lula voltou de viagem com meia dúzia de palestras canceladas, o que turbinou ainda mais a sua ira. Não pelo dinheiro que deixará de receber, pois o vil metal ele soube amealhar durante os oito anos em que esteve no Palácio do Planalto, mas pelos arranhões em sua imagem. Sem saber no que podem dar as investigações do Ministério Público Federal a partir das recentes denúncias de Marcos Valério ou, então, temendo um descontrole de Rosemary Noronha, a Marquesa de Garanhuns, que pode abrir a boca a qualquer momento e revelar o que sabe, Lula está literalmente atordoado. Cenário nada favorável para quem está se recuperando de um câncer. Durante evento no ABC paulista, onde falou para ensandecida claque de sindicalistas, Lula voltou a abusar do “non sense” e declarou que percorrerá o Brasil em 2013 e que não será derrotado por qualquer “vagabundo”. Como sempre tomado pela covardia, o ex-metalúrgico mandou um recado sem destinatário e sem endereço, pois metade do Brasil quer vê-lo derrotado. Considerando que o que mais lhe preocupa no momento é uma eventual ação do Ministério Público, Lula pode ter chamado Roberto Gurgel de “vagabundo”. Se o procurador-geral da República era o alvo do xingamento, Lula pode ter se equivocado e precipitado, pois de “vagabundo” ele nada atem. Até porque, Roberto Gurgel prometeu entregar no STF, na sexta-feira, o pedido de prisão imediata dos mensaleiros condenados, mas se antecipou e entregou dois dias antes. Em outras palavras, Gurgel, diferentemente de um “vagabundo”, trabalhou arduamente e com afinco e celeridade. Considerando que o MP é o seu calcanhar de Aquiles, Lula pode ter chamado de “vagabundo” o seu outrora salvador e agora desafeto Marcos Valério, que foi até Roberto Gurgel para contar detalhes extras e comprometedores sobre o Mensalão do PT, que o ex-presidente inicialmente admitiu, depois negou, para, ao final, dizer que foi um golpe articulado pela oposição, setores da imprensa e Judiciário. O que mostra que a Lula falta imaginação e criatividade, pois o discurso é velho e repetitivo. Admitindo que Lula tenha usado o vernáculo “vagabundo” para se referir ao publicitário mineiro, apenas porque contou um pouco de tudo o que sabe, Lula deveria conceder a mesma deferência a Roberto Jefferson, o delator do Mensalão do PT. Que também contou o que sabia, quiçá apenas parte. Se na opinião de Lula o operador do mensalão é “vagabundo” porque foi condenado, vagabundos também são os outros 24 condenados. Se a namorada Rosemary Noronha não suportar a pressão, surtar e resolver contar tudo o que de errado aconteceu no escritório paulistano da Presidência da República, Lula, por questão de coerência, terá de chamá-la de “vagabunda”. O que ninguém sabe se esse é o real pensamento de Dona Marisa sobre a Marquesa de Garanhuns. Como o seu primeiro diploma foi o de presidente da República, Lula pode não saber o significado exato da palavra “vagabundo”. Nos bons dicionários da língua portuguesa, que o petista jamais ousou abrir ao menos uma vez, há diversas definições para “vagabundo”. A primeira faz menção àquele que é nômade, andarilho, vagamundo. Tomando por base as inúmeras, quase intermináveis, viagens internacionais que fez, Lula é um “vagabundo”. Levando-se a sério a afirmação de que ele andará pelo Brasil, em 2013, Lula está prestes a ser novamente um “vagabundo”. A segunda definição para o vernáculo também se encaixa com Lula, pois faz referência àquele que é “vadio, desocupado ou que faz as coisas sem vontade”. Pois bem, voltando no tempo e parando em 1988, ano da Assembleia Nacional Constituinte, Lula, alegando que no Congresso existiam trezentos picaretas, virou as costas e não mais voltou à labuta. Como estava sem vontade de cumprir os compromissos de um parlamentar, Lula tornou-se um “vagabundo”. Durante parte da vida, Lula se instalou na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos, cargo típico de desocupado. Portanto, segundo o Aulete, Lula é “vagabundo” de longa data. A terceira definição do dicionário para a palavra “vagabundo” refere-se a quem demonstra inconstância ou é volúvel. Analisando sua ideologia ao longo dos anos, Lula é um perfeito “vagabundo”. Em relação a ser solúvel, Lula é um “vagabundo” inconteste. Afinal, durante duas décadas criticou os banqueiros e o FMI, mas para chegar ao poder se aliou aos primeiros e depois emprestou dinheiro ao segundo. Outra prova da sua volubilidade está relacionada ao senador José Sarney, a quem criticou com palavras duras durante longos anos, mas no primeiro aperto na presidência pediu ajuda ao maranhense. A quarta definição faz referência ao reles, ordinário, inferior. Como presidente ele conseguiu ser reles. Como político não precisou de esforço algum para ser ordinário, que é aquele de baixo valor moral e intelectual. Como alguém que promete e não cumpre, ele é inferior. Resumindo, nesses três quesitos Lula não deixa dúvidas de que é um “vagabundo” de carteirinha e com direito a fã clube. Por fim, o dicionário traz uma definição que faz referência a quem é infame, canalha e desonesto. No quesito da infâmia, Lula é um “vagabundo” ousado e mundialmente conhecido. Como o canalha é aquele que comete ações “vis, desprezíveis e indignas”, segundo o Aulete, Lula é um perfeito “vagabundo”. Na seara da desonestidade, Lula já mostrou essa sua vertente ao abafar escândalos diversos. Um deles foi o do fatídico Dossiê Cuiabá, cujos aloprados foram presos pela Polícia Federal, em São Paulo, com R$ 1,7 milhão em dinheiro. E o delegado do caso foi afastado. Outro viés da sua desonestidade ficou provado na tentativa de chantagear o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, para que o julgamento do Mensalão do PT fosse adiado. Somando tudo isso, Lula é um “vagabundo” considerável. Hoje, Lula não passa de um reles cidadão e a ele me dirijo como sempre fiz nos tempos de presidência. Assim como milhões de brasileiros de bem, considero Lula um vagabundo com todas as letras e rimas, além de acintoso. O que causa mais tristeza é que durante oito anos, por culpa de uma parcela incauta que foi abduzida pelas esmolas sociais e pelas pilhas de carnês vencidos, o Brasil esteve nas mãos de um vagabundo, agora sem as aspas porque a declaração é minha e não sou covarde como ele, que destruiu o País, levando-o à encruzilhada da insolubilidade. Coisa de vagabundo. Caso Lula ouse me chamar de vagabundo, esse vagabundo terá de acertar as contas comigo, pois o meu conhecimento e o meu intelecto não me permitem uma nivelação tão rasa, chula e desprezível. Como o Natal está batendo à porta, pedirei ao bom Noel, mesmo com certo atraso, um presente não material. Que Lula deixe de aparecer por causa das sandices que balbucia, não sem antes se contentar com a insignificância de um vagabundo que acredita ser herdeiro de Aladim. E eu, Lula, mesmo não sendo um vagabundo desses que você conhece, farei tudo o que estiver ao meu alcance para derrotá-lo. Anote! Postado por Ucho Haddad no Ucho.Info

sábado, 1 de dezembro de 2012

SERAPIÃO FALA MOLE

Serapião Fala Mole Serapião Fala Mole nunca escondeu de ninguém sua loucura. Dizia que se alimentava de ventos e sonhos. Escrachava, lembrando a todos a impossibilidade de lhe roubarem os alimentos. Se chovesse arranjava um gramado fofo, estatelava-se, abria a bocarra deixando a água descer pela garganta com a força de corredeira. Quando a chuva cessava, dando início ao período seco, cofiava a barba, preguiçoso, media a distância que o separava do Riacho de Sangue, pesava os prós e os contras, pra depois, só ao saber a língua esturricando arriscava mover-se à cata de algum filete d’água onde pudesse matar a sede. Soletrava lua e estrelas quando o céu se encharcava de azul, brindando os olhos com clarões de feri-los quase ao ponto de cegar. Desconversava ligeiro quando alguém se achando mais esperto tentava fazê-lo dizer o que não devia. Muitos por sua esquisitice o julgavam viciado em drogas. Respondia que era viciado na vida. Nada mais. Agora mesmo estava de bem com o mundo. Queria se entupir de alegria, andar sem destino, cavalgar os raios do sol. Essas loucuras se apossavam dele, sem mais nem menos, mas Serapião aprendeu a viver com todas as doidices e não dava muita bola pro que pensavam a seu respeito. Era tempo de jabuticaba e ele ficava sentado, esquecido de tudo, xingando a natureza, pois que ele tinha vontade era de chupar gabiroba. Seus tempos e coisas pareciam ter mudado. Sossego, calma, o olhar perdido em busca do futuro pareciam reinar, dando a Serapião Fala Mole convicção que não podia se esconder detrás de morros e moitas, deixando que as pessoas buscassem respostas pras perguntas ainda não feitas. Era homem de poucas palavras, mas jamais largava companheiros na mão. Bisbilhotava tudo querendo descobrir o que movia o mundo. Patético, alegre, cabisbaixo ou triste só se encontrava quando dava de cara com a Cachoeira de Livros. As gentes de Ipê-branco, minúsculo povoado que o progresso se esqueceu há tempos de olhar, reclamavam dizendo que as loucuras de Serapião Fala Mole impediam o governo estadual, mais preocupado com as exportações de soja transgênica, milho, algodão, etanol, arroz e madeira extraída ilegalmente das reservas indígenas, de investir naquelas bandas, deixando-os morrer quase que à míngua. Há mais de dois anos que um médico da Secretaria de Saúde não visitava a comunidade. Quem fosse acometido de algum mal súbito tinha que se virar procurando a cidade mais próxima. Quando dizia que vinha de Ipê-branco no sempre era largado em qualquer canto, esperando a morte chegar. O abandono chegou a tal ponto que o povo do Ipê, agora preferia morrer aos poucos, devagarinho, na solidão de seus ermos, sem se preocupar em buscar alívio pros seus males nas vizinhanças. Ademais aquela gente nunca virava as costas aos amigos, mesmo quando acreditava que aquela pessoa poderia destruir o povoado. Mas ninguém acreditava que Serapião Fala Mole fosse tão ruim a ponto de provocar o desaparecimento de Ipê-branco do mapa. Podia ser lelé da cuca, variado, mas todos o sabiam e reconheciam inofensivo, um louco manso, cujo único mal era dizer verdades e viver lendo solitariamente seus livros debaixo de sol ou chuva. O povão só moderava a perseguição acirrada quando ele colhia a cana-de-açúcar, prepa-rando em seu improvisado alambique a pinga de orelha, especialíssima e com parte dela produzia centenas de litros dos mais variados licores. Festa junina sem a bebida apurada de Serapião Fala Mole era impensável. Por mais brasileira que fosse aquela população, acostumada a roubar até galinha morta, algo estranho acontecia com a produção de Serapião. Ele deixava suas garrafas sobre imensa mesa ou dentro de caixas, com o preço. Ao lado uma espécie de urna onde deveria ser colocado o valor de cada garrafa. Durante anos nunca foi passado pra trás. No outro dia, depois da festança, pela manhã, quando vinha conferir o resultado da venda, sempre encontrava o equivalente às garrafas deixadas nas caixas. O povo não tinha coragem de roubá-lo, embora fosse capaz de persegui-lo e atormentá-lo. Indecifráveis mistérios da mente humana. A população do povoado não entendia de onde Serapião Fala Mole arrancava tantos li-vros. Perguntado se fazia de desentendido aumentando ainda mais a curiosidade. Certo é que as crianças da única escola da comunidade recebiam regularmente dezenas de livros e elas cuidavam de devorá-los, com urgência, prevendo a chegada de outros, em breve espaço de tempo. No fundo existia terna cumplicidade entre elas e seu benfeitor. Por mais que tentassem segui-lo, em determinado pedaço do caminho ele passarinhava e ninguém era capaz de encontrá-lo. O máximo que conseguiam enxergar era um gavião-anta, talvez a encarnação avoadeira de Serapião pra modo de se defender das maldades dos homens. Não havia de ser novidade. Muita gente acreditava nessa possibilidade, ainda que remota. Quando julho findou todos os ipês ficaram carecas. Bastava a primeira chuva pra eles folhescerem e depois vesprando a primavera florescerem. Era o tempo que Serapião Fala Mole mais gostava no ano. Podia dividir os momentos admirando flores, insetos e livros. Tinha vaga notícia do futuro, mas sabia que havia um lugar reservado pra recebê-lo. Jurava de pés juntos que lá estaria sozinho ou bem acompanhado. Mas não via razão em se emaranhar nessas brenhas já que tinha por obrigação viver cada momento do presente. E seu tempo se resumia em plantar e colher livros. Destino ou perdição. Eram certezas que mal e mal conseguia sustentar em suas pernas de andador desnaturado. Pra ele, hoje foi dia de festa, arrancou uma dúzia de livros que julgava não mais encontrar em lugar algum, mas lá estavam eles, enfileirados, alguns semiabertos. Enroscado no Pequeno Príncipe encontrou Reinações de Narizinho. Apanhou os dois de uma só vez e se pôs a lê-los com ganância. Os pestinhas viviam fugindo, quanto mais os procurava, mais escafediam, como pretendessem tornar livros raros. Mas, enfim, os danadinhos foram agarrados, sem chance de fuga. Enfurnou na leitura acabando por esquecer todos os outros problemas que o afligiam, a Até da fome costumeira que naquela hora o rondava tal qual praga de mulher grávida sem desejos satisfeitos. Mas o que de melhor havia no mundo, além do livro companheiro para os momentos mais difíceis? Quando aquele emaranhado de letras negou-lhe carinho? Ou o fez pensar di-reito, rejeitando as próprias pechas e aquelas que os invejosos lhe impunham? Já nem mais ligava quando alguém berrava ao vê-lo passar:  lá vem Serapião Fala Mole marido de livros! Por certo as pessoas tinham mesmo era mágoa por não conseguirem entender que ele descobrira o melhor alimento para a alma. E por serem mesquinhas queriam impedir que ele desfrutasse das gostosuras que encontrava em cada página lida. Foi por pura mangação que disseram pra ele que o céu, lugar que somente os bons al-cançavam abrigava a maior biblioteca do mundo. Em sua santa inocência Serapião Fala Mole acreditou piamente e passou a perseguir um meio de chegar até lá, mas queria provar primeiro, antes de morrer, pois se perguntava a todo momento: – será que depois de morto ainda saberei ler? Será que terei olhos ansiosos à cata de um bom livro? Uma resposta que só cabia mesmo na boca do tempo. Quando ficava por demais de aperreado enfiava a fuça no primeiro compêndio que en-contrava pela frente. Serapião adorava falar compêndio. Enchia a boca de satisfação irritando as pessoas que, em suas santas ignorâncias acreditavam que ele estava xingando cada uma delas. Nessas horas se contorcia em risadas, enfurecendo ainda mais o povaréu, que, por vezes corria atrás do padre pra modo de descobrir o significado das palavras. Mas nem sempre tudo dava certo, pois acabavam esquecendo o que tinham escutado, enraivecendo o pároco que dizia ter mais o que fazer além de ficar ouvindo queixumes e fofocas. É por isso que Serapião Fala Mole gostava mais das crianças. Elas, no máximo, tentavam irritá-lo com alguma brincadeira ou grosseria, que de bom coração perdoava. Num longínquo dia fora criança arteira, o que permitia compreender e aceitar tudo que viesse delas. Por vezes discordava, envermelhava a cara, socava o ar com raiva, mas tudo coisa passageira, nada que um bom livro ou pequena história contada bem devagarinho não curasse. Sabia de antemão que não tinha tempo para se ocupar guardando mágoas ou criando desafetos. A vida era tão curta, impossível dividi-la com quizilas. Só via o que era belo. E o que era belo estava encerrado sempre nas páginas dos livros. Não deixava por menos. Queria incutir na cabeça daquela criançada o valor da leitura e assim ia levando a vida, rompendo barreiras, construindo um novo mundo. Não esperava recompensas terrenas. Aceitava de bom grado o que tinha, pouco se im-portando com aquilo que a vida negava. Já não mais guardava rancor das pessoas que costumeiramente gostavam de chamá-lo louco. Sabia vagamente que sua loucura era de lucidez estonteante. Bastava-lhe reconhecer incapaz de fazer o mal a qualquer vivente. Depois, bom depois, ele tinha consolo nos livros... Quando ouviu dizer que o céu era um lugar bonito, com uma biblioteca imensa, livros em todas as línguas e de todos os lugares, até da esquecida Paracatu, achou que era tempo de abandonar os evangélicos que só viviam pedindo dízimo, sem nunca ter lhe dado um só livro. Além do mais eles não acreditavam em santos e como ele poderia chegar até aquela biblioteca sem antes passar por São Pedro? Assim se converteu ao cristianismo, na esperança de conseguir seu lugar bem ao lado daquilo que amava por sobre todas as coisas: os livros. Nem se deu ao luxo de avisar ao famigerado pastor de sua igreja. Ele, esperto como cão raivoso, tentaria todos os meios para convencê-lo a mudar de ideia. Qual o quê! queria milhares de livros a seu redor e daquele um miserável não arrancaria nada. Virou assíduo frequentador da igreja. Se dependesse dele não perdia uma missa. Até mesmo as celebradas nos dias úteis. Por vezes estava agarrado num livrinho quando ouvia o sino repicar. Deixava tudo de la-do e corria sem olhar pros lados. Não gostava de chegar atrasado, temendo assim perder seu lugar no céu. E os anos foram atravessando e cada vez mais Serapião Fala Mole acreditava que estava aos poucos garantindo seu lugar. Arrepiava todinho só em pensar na livraiada esparramada pelas mesas da enorme biblioteca, podendo pegar um por um sem que ninguém viesse chamar sua atenção. Igual a sua Cachoeira de Livros. Jamais foi proibido de escolher. Dependendo da época, se era tempo das chuvas, a queda d’água se avolumava ainda mais despejando ensurdecedoramente enorme quantidade de brochuras que brilhava quando o sol batia de frente. Era um festival de luzes, cores e letras, dominando sua vida, seu pensamento. Apesar de tudo que fez pela criançada Serapião Fala Mole sabia que o povo de Ipê-branco sonhava descobrir a origem de seus livros. Muitos dali juram que aconteceu inesperadamente. Dizem que ao ser apanhado colhendo dezenas de exemplares na Cachoeira de Livros Se-rapião Fala Mole passarinhou de vez. Transformou-se em imenso gavião-real, com belíssimas asas de Grande Sertão: Veredas e bico de Vidas Secas alçando voo, rumando pro céu pra nunca mais voltar. (Serapião Fala Mole é o título do último livro de contos de Romulo Nétto, publicado pela Carlini & Caniato Editorial e será lançado em dezembro de 2012).

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

NOVAS LEITURAS

Recebi, em setembro último, um presente inestimável: Livros! - Ora, tesco, você ainda tem a casa cheia de livros, vive sorteando livros, compra livros, como é que recebeu um presente "inestimável"? Primeiro, porque considero livro o presente por excelência.. - Sei, como Suas Excelências da Câmara e do Senado, né? Não, nada a ver com essas referências abomináveis! "Vade retro"! Segundo, porque são livros de um autor que eu desconhecia. Por mérito exclusivo da mídia, diga-se, que prefere dar destaque a um escritor finlandês, casaquistanês, japonês ou australiano, a falar de um escritor brasileiro, mineiro como é o caso. - Não é isso tudo não. De vez em quando falam de Drummond, de Guimarães Rosa, de... Mas esses são conhecidos e consagrados! Refiro-me a caras novas. Esses não têm vez. E esse referido nem novato é, já tem 11 (onze) livros publicados. - Diga quem é, pode ser que eu conheça. Romulo Nétto. - Não, também conheço não. E é um ótimo escritor. Sua temática preferida é o sertão, seus habitantes típicos e seus problemas climáticos. Tem uma escrita dinâmica, que deixa sempre os leitores acordados. - Hum... Nesta temática temos bons escritores realmente. E qual é o estilo? Ah, aí cê me pegou, não entendo desse negócio de estilo literário. O que posso dizer é que ele me lembra o Graciliano Ramos. - Não quer dizer Guimarães Rosa, não? Não porque... Pra falar a verdade, ainda não li Guimarães. - O que?! Não leu Guimarães Rosa???? Acontece, né? Só li um trechinho: A história de Augusto Matraga. Mas a Sagarana toda já está na pauta. - Bem, menos mau. Mas quem lhe deu este "inestimáv... Deixe de zombaria e cuide de ler mais. O presente foi uma gentil oferta do próprio autor. "Meu mais novo amigo de infância", como diria a Yvonne.Como creio que os leitores deste blog também não têm intimidade com a escrita de Romulo, pretendo sorteá-los. Depois de lê-los, naturalmente. - Vai sortear os livros recebdos de preente? Isto não é uma desfeita não? Não vejo assim. Acho que o que é bom deve circular, e o Romulo não vai se ressentir por isto. Em novembro já teremos alguns no sortesco. Bem, tá dada a notícia, já posso voltar à leitura. Abraço do tesco. Postado originalmente por Roberto Dantas de Oliveira no www.tescoaqui.blogspot.com.br

sábado, 13 de outubro de 2012

A URNA DESMEMORIADA

Vidrão foi o primeiro a desconfiar que a urna-mãe estava desmemoriada. Pensou contar suas dúvidas ao Magrão, ele é mais sabido, estudava na Capital Federal. Se esparramasse todo mundo diria tratar-se de coisas de bêbado. Resolveu calar, ver o circo pegar fogo. As urnas da cidadezinha estavam interligadas numa simbiose de tecnologia, verdadeira parafernália, inacreditável praqueles capiaus. Inúmeras vezes eleitores chegavam à cabine e ficavam regongando. Uns enxeridos campeados pra fazer raiva nos mais nervosos que acabavam desistindo de votar. A maior parte voltava ao esfriar a cuca temendo punição. Vidrão impaciente visitou várias seções sem ouvir nenhuma reclamação. Pra ele a coisa tava esquisita. Não tirava nenhuma notícia de urna entrevada ou de greve. Certeza, certeza não tinha mas que a urna falou com ele, ah! isto falou mesmo! Um predestinado ou um bêbado variado? Tendo visões já de manhãzinha pela falta de um bom gole da Segura o Tombo. Afogado em dúvida desceu até a venda de Sô Lemos tomou enorme talagada da branquinha. Respirou aliviado, despencou pras imediações do fórum onde ficava a maior parte das seções. Cauteloso, sem chamar demasiada atenção indagava a quem não conhecia como fora a votação. Guarida não encontrou para aquartelar suas conjeturas. Beliscou o braço, a bunda, estapeou a cara. Sãozinho da silva. Diacho! O puto do Magrão não aparecia. O desgramado na certa ficou até altas horas arrastando a traseira no serrote modo de apazigar a atazanada paixão por Irene. Vaca desgranhenta, destrambelhada, tomando tempo do amigo, e ele ali sozinho carregando dúvida do tamanho das estrelas sem arranhar resposta por mais pequena que fosse. A garganta seca incitava despencar novamente até a venda de Sô Lemos. Vontade não faltava. Arre égua. Indecisão das grandes apunhalava o peito. E ele preso, os pés grudados no chão como se tivessem imãs. Pensou. Repensou uma saída, qual nada de resposta. O povo que entrava e saía do fórum arrastava cara de zumbi enfeitiçado. Se a malina fosse invenção do cramulhão, de função definida a esparramar discórdia e desunião entre eles? No seu tino a verdade aclarando sem jaça, desprovida de mistérios, artimanhas magicadas pelo coisa ruim. Nos antanhos os de mais respeito diziam que surgiriam criações de pôr cristão boaquiaberto, a barba de molho, coisas do arco da velha. Se benzeu mentalmente mijando perna abaixo numa tremedeira tal que os passantes olhavam de olhos arregalados. Vidrão vestira a carapuça da febre terçã, resmungavam. Fincado no chão como toco de amarrar jegue, sem mover um dedo e piscar um olho, a não ser tremer, tremer, mijar sem parar, mais se mostrando como cachoeira. A tremedeira por medo do chifrudo ou falta do destilado? Nhor que sim! nem Vidrão aguçando as ideias tinha resposta não. Apois! Mas a urna tinha falado com ele, lá isso tinha mesmo. Nessa hora desatinou num latinório sem fim. Ora pro nobis it missa est dominus vobiscum etc e tal. O sol castigando o cocuruto avisava que chegava o momento do almoço e ele entrevado não dispunha a levantar o pé, ameaçar qualquer passada. Homem de Deus, o que havera de estar acontecendo? O povo na discussão besta de que o presidente esconjurava o candidato da oposição. Caso ganhasse o país seria um miserê de fazer dó. Onde já se viu presidente sem anel de doutor? Vidrão gritava, mas seus gritos não saíam da garganta. Queria fazer o povão entender que a sorte fora jogada. O presidente atual tinha fodido ainda mais os pobres. Agora borrava nas calças de medo de revoltado subisse numa marcha sem fim até seu palácio e o degolasse. Qual o quê! O desafortunado perdera a voz, tamanho o susto. Feito estátua começou a desfiar seu rosário de pecado pra ninguém ouvir. Roubo de galinhas, laranjas, punhetas, quantas vezes trepara com Tibúrcia e não pagara? Ih! O inferno de boca aberta não faria de rogado, a fogueira pronta pra queimar seu corpo. Vixe que não podia ir-se embora sem resolver as pendengas, que ele não era homem de deixá-las como herança pra mulher e filhos. O mais importante a se anunciar na mente era sair daquele torpor. Pôr-se logo como vivo, disposto em luta, a fim de descobrir os porquês dos acontecimentos emboramente não atinasse como. No lancetar da memória tinha que espremer resposta por mais doida parecesse. Nem bem cessou a mijação arrebentou-se numa peidorreira mais assemelhando foguetório de porta de igreja nas noites de novena, quermesse em homenagem a Santantônio, padroeiro da cidade. Apoquentado com a situação Vidrão rumina seus pensamentos até sentir que fixaram tramela na boca, grilhões nos pés. Não arranca palavras, passos. Por certo transmudou-se em estátua pensante, dinossauro, fóssil de além mar, estranheza de ser garupando penar quando no vai chegando da vida tudo é festa. Quem será o culpado de tamanha desgraceira? Nem que quando criança tivesse caído num tonel de pinga causaria estrago lhe fazendo leso, lelé da cuca. Atarantado disparou xingamentos só ouvidos por ele mesmo. Suava às bicas. De ronco o bucho tava cheio, recomeçava a peidorreira, faltava-lhe borrar nas calças, completança de festa pra tristeza imensa sua. Nem seria por acaso filho de Deus? Mas Ele não erra nunca. Por certo havera de ter alguma culpa no cartório lá de cima. Bem que valia a sustança do jantar da noite passada: pratada de angu de milho verde com caldo de mocotó, cachaça sem batismo. De repetir por vezes, vendo formar o colarinho duradouro, marca maior da boa procedência e qualidade. Não fosse isso estava fodido e mal pago: sem saída, perdido, sem tenência de ser encontrado e desfeito o feitiço do tinhoso maledicente. Só não vê e sente suas agruras quem é cego de pensamento. Ah! se um dia ele se encontrar com o maldito há de querer quebrar a cara com soco de peso infindo. Na pasmaceira de seu estado de estátua queria regular os procedimentos do mundo, ditar normas pros investigadores pôr um fim na sua angústia de ser quase pedra. Desinferno de vida. Fosse são, bisbilhotaria o oco do inferno parando quando encontrasse o causador de tamanha tortura. Nada ficaria pra trás. Removeria tudo. O diacho do Magrão que não vem votar. Deve ter tomado porre de café preto coado em calcinha de mênstruo de noite de lua cheia preparado por Irene. Cai fora cobra d’água. Até mais ver. Belzebu esquartejado buliu com Vidrão mas não esparramou derrota em seu caminhar. Há imensidão de cascalheira a ser trilhada. O entrevero do dia não implica em derrota, batalha perdida, não a guerra. Algum beldroegas destemente a Deus haveria de ter se postado pratrasmente essa maldade. De miolo mole o estabanado prestou-se a esturpor de maledicência de grande quilate. No deve-haver das contas de sua vida caberia espaço vazio que não sucumbisse a horror tamanho, transformando-o em estátua viva? O cachorro sem dentes se redimiria nem que fosse nos quintos dos infernos, estrebuchando na fogueira, ardendo em brasa, pedindo perdão! Sabedor de quem não deve não teme apaziguou a consciência enquanto a roupa se encharca de suor fedorento. Pudesse taparia o nariz pra não sentir estranho odor, de proveniência sabida, mistura de cachaça com rabada, caldo de mocotó. O sino da igreja zuniu as doze badaladas. O sol a pino aumentava o sofrimento de Vidrão, embora dissesse pra si mesmo esperançoso. De repente se lhe voltam os movimentos, a fala, justo no instante que Magrão estapeava com força as costas. Puro milagre. A sorte retornara. Gaguejando, quase engolindo as palavras foi discorrendo o passado, sem fôlego, sem drama, desconfiança, ante um amigo estupefato. Difícil acreditar em bizarra confusão. Vidrão, entretanto não se enveredava em mentiras. O semblante por demais de sóbrio, não denunciava invencionices. Aliás criar um cenário desse porte fugia por completo da capacidade imaginativa dele. Apois tudo se lhe pintava verdadeiro, de uma veracidade impossível de ser colocada em dúvida, quanto mais negada com veemência. No desconforto da situação, melhor procurar Anum Branco. Quase um gênio. Com os irmãos menores montou diversos rádios de galena e distribuía aos menos favorecidos. O pai gastava as horas de folga lendo tudo que caísse nas mãos. Apurava a mente quando o assunto era a União Soviética, sua foice e martelo. Anum Branco entendia as máquinas. A ajuda dele, de enorme valia, não podia ser desprezada. Somariam suas interrogações. No certo teriam bom resultado. Como achá-lo e fazê-lo participar do desvendamento daqueles mistérios sem causar rebuliço na cidade? Nesta época de eleição os chefes políticos conseguiam redobrar o ódio do doutor delegado. O homem devia ser correligionário de todos os partidos. Ficava sempre acima da lei. No dizer dele pra não deixar dúvidas que a justiça era cega, mas enxergava tudo. Não tolerava voz alta nem destempero de ninguém. Prender não podia prender não. Acabada a eleição a cadeia transformava em feira, tamanha a barafunda de vozes. Motivo pra arrebentar os que desacataram a autoridade não era esquecido nunca. A fiança sustentava a família o ano inteiro. Voz corrente na cidade. Os dois careciam usar mais que cautela. Fugir de aglomerações evitando o vazamento das desconfianças. Dar o bote quando as urnas estiverem sendo lacradas. A notícia explosiva percorreria em segundos a cidade alcançando rápida a capital do Estado, daí ao cenário nacional recheada por manchetes espalhafatosas questão de minutos. As televisões ávidas por furos espetaculares enviariam seus repórteres e a parafernália pra transmissão ao vivo. Encontraram Anum Branco e a namorada curtindo a beira do açude. Farreavam à solta. Ele quase bêbado como um gambá. Ela virginalmente sóbria como deve acontecer com moça casadoura. Prevendo o estado que encontrariam o amigo levaram um suco de plantas pra levantar defunto, composto por cáscara sagrada, chapéu de couro, jatobá, alcaçuz, raiz jalapa, fedegoso, catuaba, angico, boldo, velame, jurubeba e anis-estrelado. Dose cavalar num tiquinho d’água. Mexida, remexida no copo, empurraram goela abaixo do abilolado, que de instantâneo botou pra fora a imensidão de mistura de cachaça, vinho, cerveja e farofa. Anum Branco tomou meio copo de café preto. Passe de mágica estava quase são. As novidades não fossem bem contadas causariam retorno ao estado de embriaguez. Magrão foi incumbido de expor a situação, detalhe por detalhe, tim-tim por tim-tim, repetindo calmo as respostas às necessárias perguntas. Agora Anum Branco se recorda. Ao votar notara alguma estranheza, mas deixou passar batido, delegou pouca importância quando a urna engoliu o voto. Ela riu na sua cara. Risada de escárnio, gozação, sabe-se lá o quê mais. O destino uniu os três detetives do cerrado na dura tarefa de desvendar o mistério do desmemoriamento das urnas. Não chegando a ele pelo menos denunciá-lo ao mundo todo. Por menos não ficaria. Horas depois arrebanharam desconfiados eleitores. Restou nenhuma dúvida. As urnas de Santo Antônio do Rio das Antas enlouqueceram. Fome voraz atingiu a vontade delas, mais votos colocassem mais rapidamente desapareceriam sem deixar rastro, sem mostrar razão. Ao findar o dia o sol escaldante cedeu lugar à calmaria da noite. Izebeiju chegou esbaforido à pracinha defronte da igreja. Outros surgiram. Seria um deus nos acuda. Também ele fora vítima do roubo do voto. Solidários, Chico Doido, Sá Genésia, Papa U, Bam-Bam-Bam, Maria Farofa, Nenzito e Burilim se juntaram a eles. Desarmados com o acontecido mal se continham. Maria Farofa distribuiu copada de seu assovio-de-cobra que bebiam escondidos, por trás do busto do governador. Estavam ali, não sabiam a razão, todavia não era por causa das diversas talagadas das águas-de-setembro ingeridas na noite anterior. Passaram pelos quartéis da cidade, sem distinção de partido. O importante era empanturrar à grande com as rodadas incessantes da boa cacharolete. Sem olheiros reprovadores se fartaram. Queriam mais que o mundo acabasse em goladas da arrebenta-peito. O último a cerrar fileira foi Beto. Também pudera há coisa de quatro noites acoitara nas barrancas do cemitério. No decerto pra descabaçar Ornela, morena de olhos amendoados, baitas coxas e seios durinhos como pêssego. Mostrava receio do desaprovo do Magrão. Fudelança só no casamento, antes dele demonstrava safadeza, falta de caráter. Beto cagava e andava pros conceitos e valores do irmão. Respeitava mas não acatava. Izebeiju assoviou e o Nego Sivi aproximou-se rápido, de antena ligada, pronto pra escutar e esparramar as novidades. Por sua boca as notícias corriam, espalhavam no ar mais rápido que a televisão. Um horror de esperteza. Igual que ele só mesmo o Marreta. Tristão Bezerra com autoridade de escrevente juramentado de cartório quis saber as acontecências. Repente a praça era um alvoroço só. Quando o sino da igreja do Rosário picou e repicou as cinco horas da tarde Vidrão, Anum Branco e Magrão apareceram com cara de quem tinha visto o destrambelhado. Bagas de suor rolavam por entre os fios das barbas ralas dos três. Susto, pavor. Enfiaram num vespeiro maior que as mãos entrelaçadas conseguiam pôr fim, dar um basta sem choro nem vela. Transformando caixote em palanque Magrão desabou suas desconfianças e temerosidades. A cada palavra, exclamação uníssona. Incrédulos viam, desviam as mãos do tinhoso tramando, tecendo confusão. Pra não perder o controle da situação os três inseparáveis organizaram comissão a fim de detalhar ao doutor juiz da eleição o havido. Tristão Bezerra investido em sua autoridade de escrivão juramentado pigarreou chamando atenção pro corpo mirrado. Queria porque queria ser o primeiro a anunciar as novas. De procissão improvisada rumariam ao fórum. O fuzuê estava formado. Fileiras engrossadas por onde passavam. O novo. Acontecia o absurdo surrupiamento de votos pelas urnas e ele corria à boca miúda. Urna revoltosa, doida varrida? Invenção de quem? Por mor de que alguém instava arruinar a cidade? Qual vivente seria capaz de vingança tamanha? Mais e mais gente aumentava a procissão do desassossego. A cidadezinha que de tão pacata não crescia arranjaria jeito de sair ilesa da situação revertendo em lucro a artimanha desaforenta? À frente da comitiva, os três inseparáveis controlavam a turba. Logo, logo surgiriam políticos loucos pra serem considerados os pais do desvendamento do mistério. As fileiras engordavam com a chegada dos craques do futebol: Tonho da Nena, Vadô Dois-Cus, Celino, Vatinho, Jão Brasil, capitaneados pela madrinha Dirce da Descaída. Pra maior destempero a furiosa atacou de dobrado inflamando a multidão. Panelaço, buzinaço, velas encimando janelas onde beatas rezavam temendo o fim do mundo. Algazarra, folia, carnaval. Todos andavam a bom andar rumo ao fórum que parecia distanciar ainda mais. Os ingleses da mina Morro do Ouro assistiam assustados. Não passava pela ideia deles entender o motivo de repentina loucura coletiva. Reclamadores da pasmaceira da cidade, viam surpresos a envolvente mudança. Verdade seja dita ninguém queria o fim dos acontecimentos. Talvez Sá Andreza pudesse fazer um feitiço em dose cavalar paralisando o tempo e a balbúrdia continuasse pra sempre, sem perseguição, enfrentamento, descontentamentos. Naquele instante o paraíso era ali, desnudado de mistérios. A multidão serpenteava pelas tortas ruas estreitas calçadas de pedras seculares. Testemunhas de namoros e infindas atrocidades. Juras de amor encimadas por vingança, assassinato. Séculos de história que em minutos poderiam mudar o destino do país inteiro. E se a rainha da Inglaterra, Tio Sam ou mesmo os comunistas comedores de crianças estivessem por trás do fuzuê? Correriam risco de morte os três inseparáveis? No cruzamento da Goiás, Irene com seus cabelos cacheados, um tesão de mulher aguardava a chegada do povaréu. Nest’ora iria grudar-se no Magrão. A safada aproveitaria a situação pra aparecer. Mostrar-se teiuda e manteiuda, sem nunca ser dele por inteira. O som dos dobrados preenchia o vazio. O fazedor de ventos cuidava de dispersá-lo pelos quatro cantos da cidade. Parada alguma botou o povo em frenesi pelas ruas, não antes desta. Não que não fosse patriota. Mas havia um cheiro de mudança no ar. Chegando na confluência das duas ruas principais Gustavinho Bem-Bem muda o repertório da Euterpe, mais ao gosto popular. Homens, mulheres, jovens e crianças saracoteavam ao som da inflamante Alegria, Alegria. As putas da Ferreirinha descambaram do Amoreiras passando pela igreja do Rosário estacando entre a Goiás e a Quintino Vargas, todas com os fartos seios à mostra. Ali não eram muié-damas, mas cidadãs mesmo sem saber com exatidão o havido. Reunidas pra alegria e capricho de Eli Caolho, sedento de luxúria, com dinheiro no bolso, horror de tesão de mal curtidas noites, de pau duro, pronto pra enrabar a primeira que desse chance. Iam os três inseparáveis num marchar sem fim. Amados, odiados por mudarem a história da pacata cidade. No fundo, no fundo estavam lixando pras coisas acontecidas ou por acontecer. Pexico e Robertinho vazaram a multidão. Agruparam-se aos três. Sem medir distâncias, cansados, esfomeados, sonhavam com um naco de pão com manteiga. Como no milagre da multiplicação centenas de sacos de papel com pastéis crocantes, passados e repassados de mão em mão saciaram a fome, repondo energia prum dia que prometia acabar nunca. A lua cheia qual balão de fogo apossou-se do céu de poucas estrelas. Os soldados do doutor delegado perfilados, mãos nas coronhas riam um riso forçado pra multidão que serpenteava avenida acima. O alto-falante da loja de João Turco dizia em bom som que era novembro e não outubro, roupas miúdas, jaquetas em promoção, como se um vivente arredasse os pés da caminhada e enveredasse pelas prateleiras de seu comércio. Velho Neco Galdino, Minerita, Nonô, Maria Dindinha, Auzina, Zau e seo Adriles encorpavam o rebuliço do inesperado, impensado movimento. No deveras os Botelho, gente mal amada pela pobretama toda se vira forçada a rumar com o populacho. Dona Maria Botelho dizia que aquilo acabaria em merda. Foi arrastada avenida acima, amordaçada, como a hora exigia. Pra ela deixar de pose que dinheiro graúdo, do bom a família tinha perdido todo nas mesas de sinuca, bacará, nas camas das formosas donzelas de Ferreirinha. Come lambari e arrota bacalhau. Portassem armas, não o título de eleitor, seriam todos confundidos com revoltosos de qualquer canto do mundo. Sem querer outras conversas iam avançando pela avenida. Inda não houve adesão de políticos. Por certo os engravatados e preguiçosos esperavam a multidão na praça do fórum sem gastar energia, cansar as pernas, ávidos por assumirem o comando do espontâneo movimento. Atenção voltada pra outros pensamentos Magrão não deu a mínima pelota pra Irene que chateada pelo pouco caso do enrabichado soluçou baixinho. No palanque armado às pressas já se empoleiravam o prefeito, vereadores, o bispo, um candidato a deputado estadual pela região e o doutor delegado. O cenário era de velório, tamanha a estrovenga notícia. Apenas o doutor juiz da eleição não comparecera. Dentro do fórum tinha os olhos pregados na televisão. A qualquer momento uma edição extraordinária aconteceria, não queria ser apanhado de surpresa. O fato devia ter atravessado a imensidão do cerrado. Lá fora o barulho ensurdecedor dividia suas preocupações. Os três inseparáveis e sua comitiva apossaram-se da praça. Subiram no palanque, não sem antes expulsar os que lá se encontravam. Exigiram a presença do juiz. Silêncio inaugural percorreu as ruas adjacentes quando Magrão recém-nomeado porta-voz dos descontentes convocou a autoridade pra ouvir denúncias. Durante quinze minutos expôs a insegurança das urnas. Contou o sofrimento de Vidrão, a certeza de que a eleição tinha sido fraudada. Urgia tomada de decisão do juiz eleitoral. Escarafunchar as urnas, descobrir se as suposições encerravam algum cunho verídico. Juiz e representantes do povo rumaram ao auditório do fórum onde vistoriariam as urnas. Os meganhas do doutor delegado bateram continência pro juiz em reverência de imediato repudiada, pois o homem não era muito chegado a tais salamaleques. Três ou quatro especialistas em informática, todos do Tribunal Regional Eleitoral, foram convocados às pressas e testavam os equipamentos. Foram mudando de cor. Corriam de um lado pro outro, conferindo dados, expondo angústias. Sem nenhuma razão aparente as urnas tinham enlouquecido. Engoliram os votos dando um chá de sumiço neles. Centenas e centenas delas intatas. Virgenzinhas da silva, nunca foram descabaçadas por um voto sequer. A confusão estava formada sem haver meios pra escondê-la dos olhos e ouvidos da nação. O juiz como caminhando pra forca telefonou ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral comunicando o tresloucado acontecimento. Em menos de uma hora helicópteros das mais variadas emissoras de rádio, televisão, jornais e agências noticiosas tomariam conta do espaço aéreo de Santo Antônio do Rio das Antas. A parafernália eletrônica pra transmissão ao vivo logo abarrotaria a praça do fórum. A cidade seria manchete nos principais veículos de comunicação do país e das estranjas. Ovacionados pela multidão, os três inseparáveis aguardavam a volta do magistrado com instruções da Capital Federal. O burburinho corrente incriminava o presidente da República como mandante da chacina dos votos. Principal interessado na derrota do candidato da oposição empregou todos os meios para inocular vírus quase indetetável na memória de cada urna eletrônica. A dose virulenta superou o estimado e desejado. Bem antes da meia-noite não havia espaço vazio na praça do fórum e cercanias. Repórteres gritavam ordens pra cinegrafistas. Um descabimento de vozes, alvoroço condizente com o tamanho do acontecimento. Luz, câmera, ação. Um foco de azul intenso engole a fachada do fórum e o palanque. Dali sairia a notícia perturbadora. Fez-se silêncio mortal quando o juiz saiu do prédio da justiça eleitoral anunciando que o vírus denominado DP27OUT fora inoculado nas urnas eletrônicas de Santo Antônio. Na conexão com o centro de processamento de dados do Tribunal Superior Eleitoral aconteceu a contaminação geral apagando todos os votos. O país estava à beira de um conflito. Fraudadas as urnas um terceiro turno aconteceria. A multidão descontrolada, enraivecida, urrava palavras de ordem pelo impeachment do presidente da República. Rebelião iminente explodiria até o raiar do sol. A uma hora dessas ou o presidente fugira ou o palácio estava cercado, até mesmo em chamas. Notícias desencontradas reportam que temendo reação descontrolada da população saíra deixando a Capital Federal em verdadeiro pandemônio. Dias passados corre à solta que no exílio forçado, verificando suas contas em paraísos fiscais descobriu que piratas de computadores saquearam seus depósitos bancários...

O MUNDO ENCANTADO DE SERAPIÃO FALA MOLE

Um dia se descobriu possuidor de poderes sobrenaturais, mágicos, impossíveis de ser descritos. Não piscava os olhos. Piscava livros. Deles jorrava imensa catarata dos mais diversos e coloridos livrinhos de histórias que as crianças adorariam conhecer. Pôs-se a pensar o que fazer deles? Mais: que fazer de seus poderes? Estava encurralado sem saber como proceder. Pensou primeiro esconder que era um prodígio. Porém o outro lado mais humano e sensível o obrigou a ponderar que aquele dom não lhe pertencia totalmente, precisava mostrá-lo ao mundo. Desde muito cedo acreditava que a salvação da raça humana estava na educação e, por tabela, na leitura. A gente se transformava rapidamente quando possuía um livro nas mãos, dizia ele. Por isso levou horas, dias até, matutando o destino que daria àqueles poderes que num repente tomaram conta de sua vida. Decidiu não pensar mais nos livros enquanto procurava um meio de abrigar o montão deles que estava à espera de um lugar pra ser guardado. Mesmo contrariado decidiu derrubar algumas árvores frondosas na esperança de conseguir as tábuas necessárias pra construir sua Biblioteca. Sim, ali quase no meio do mato, mas não muito longe da cidade. A ideia tomou vulto, criou sustança e pra ele já não mais era possível voltar atrás. O destino estava praticamente traçado e entrelaçado às cataratas, aos rios, aos riachos, aos lagos, às montanhas e aos oceanos de livros. Ele e os livros acabavam-se tornando uma só pessoa. Dormiu, sonhou o sonho mais absurdo da vida. Ele não tinha pernas nem braços. Os membros superiores e inferiores eram feitos de livros que se abriam, bastava ter o mais breve dos pensamentos. E Serapião Fala Mole os lia com a fúria de quem nunca está satisfeito com o que possui. Com os olhos marejados de lágrimas, ou melhor, de livros, emprestou de Costa de Galo surrada motosserra e deu início à derrubada das árvores com as quais planejava construir sua Biblioteca. Não queria ter um amontoado de publicações, mas ordenaria cada um em seu devido lugar nas estantes que construiria. Trabalho desumano pra apenas ele desempenhá-lo. Sem querer revelar o que tinha mente, conseguiu convencer Costa de Galo a ajudá-lo na secreta empreitada. Sorte a sua que Costa de Galo não era dado ao dom das palavras, pois quis o destino que viesse ao mundo surdo e mudo. Assim os dois começaram a dura luta de derrubar e aparelhar as tábuas que serviriam pra confecção das prateleiras. A Biblioteca teria suas paredes construídas de grossas toras, como as casas que vira num passado recente em filme de faroeste. Gostou da construção e sabia que era bem fácil de ser feita. Seu ajudante, de quando em onde, se punha a coçar a cabeça, talvez imaginando na enrascada pra qual fora puxado sem ao menos ter tido o direito de recusar. Mas amigo não foge de um pedido, por mais estranho seja ele. Pra cada árvore derrubada, Serapião Fala Mole plantou outras dez. Trabalhavam de sol a sol, só parando quando o corpo, extenuado, se recusava a mover um só músculo. Iam os dois pro corguinho nas bordas da colina, se refrescavam, retornavam pra cabana de Serapião Fala Mole onde preparavam simples refeição, capaz de encher os buchos e refazer as energias empregadas no manuseio do facão, da enxó, da motosserra e do martelo. Esparramavam-se na cama de varas coberta por fino colchão de palha e roncavam. Entre um ronco e outro, Serapião, pra não perder o costume sonhava livros. Gastaram três meses naquela luta solitária e solidária. Os dois irmanados numa construção que assombraria a cidade. Numa bela manhã Costa de Galo amanheceu encantado, gesticulando, apontando pra todos os lados como se tivesse adivinhado a finalidade daquele casarão. Era um enorme salão com prateleiras que iam do chão ao teto, cobrindo todas as quatro paredes, espaçadas por no máximo oitenta centímetros entre uma e outra, a perder de vista enormes estantes, nas quais Serapião Fala Mole tivera o cuidado de gastar horas lustrando com cera de abelha jati. No escuro elas brilhavam como fossem revestidas por pequeninas lâmpadas. Ainda faltava alguma coisa. A construção estava pronta, mas precisava de um atrativo pra chamar a atenção das pessoas de Serro Azul. Faltava o nome. E lá foi Serapião gastar mais tempo tentando encontrar um que traduzisse não só seu pensamento, mas, principalmente, o sentimento responsável pela construção daquela obra encravada quase no meio do mato. Foi entre um sonho e outro que acordou aturdido, berrando alto como quisesse fazer Costa de Galo ouvir e entender a razão de tamanho estardalhaço. – Já sei! Já sei! Ela chamará Biblioteca Mundo Encantado! Ninguém no mundo seria capaz de convencê-lo a dar outro nome à sua Biblioteca. Passou o restante da noite rolando de um lado pro outro da cama. Às vezes as costas topavam com um nó da madeira que servia de estrado, machucando-lhe a ponto de gemer de tanta dor. Se tinha dor, a alegria de ter bem diante de seus olhos de livro o mais belo prédio que uma Biblioteca poderia almejar, era muito superior. Acordou satisfeito. Preparou sua xanguana: café ralo e açucarado. Sorveu pequenos goles deixando o sabor permanecer no céu da boca, enquanto começava a matutar o momento em que iniciaria a encher as estantes e prateleiras com livros novinhos em folha. Julgou estar preparado pra ir até a Cachoeira dos Livros onde a bel-prazer escolheria os mais belos e vistosos exemplares. Tinha tanta coisa na cabeça que, às vezes, temia esquecer o motivo principal de sua luta: construir um novo mundo onde as crianças, mal começassem a andar, já estariam com um livro nas mãos. E ele se pôs a recortar imensa tábua, desenhando letra por letra, aprofundando perto de um centímetro em cada uma, deixando o alto-relevo falar mais alto que o próprio nome da Biblioteca. A madeira dura deu trabalho para ser entalhada, mas depois de duas semanas, auxiliado por Costa de Galo, suspendeu a pesada e enorme tábua afixando por sobre a porta de duas folhas, que era o único acesso às entranhas da Biblioteca. Sem poder se expressar de outra forma a não ser esboçando largo sorriso, Costa de Galo escancarou a bocarra deixando à mostra enormes e brilhantes dentes, elevando as mãos pro alto, dando saltos e cambalhotas, mesmo sem saber a razão de tanta alegria e felicidade. Serapião Fale Mole cuidou de abrir caminho entre o prédio da Biblioteca e a estreita estrada vicinal que passava a pouco mais de cem metros de distância. Mais tarde, quando tudo estivesse pronto, cuidaria de cortar os últimos arbustos que impediam o livre acesso até sua casa e a Biblioteca. Mal esperou Costa de Galo dormir e saiu sorrateiro rumando pra Cachoeira dos Livros. Era noite de lua quase cheia. Nem bem chegou e enorme disparate de livros desabou do mais alto ponto em queda livre. Serapião Fala Mole foi apanhando um por um, de olhos fechados, empilhando-os, formando pequenas montanhas de livros. Pequenos, grandes, coloridos, recortados. Livros e mais livros. Assenhoreou-se de que era o único conhecedor dos poderes mágicos da Cachoeira, ou seria só dele? Outra pessoa que ali chegasse conseguiria ver as águas cristalinas serem transformadas em livros, milhares, milhões deles? Por qual motivo aqueles que não eram apanhados se revertiam novamente em água límpida, boa pra matar a sede? Os braços cansados pediam repouso. A lua, admirada pela beleza da mágica mudança de água em livros, anunciava que não muito mais tarde procuraria o lugar de sua quietude. Serapião Fala Mole, pra não despertar desconfiança em Costa de Galo, rumou pra casa. Entrou pé ante pé, sem fazer o menor barulho. Estirou-se na cama cobrindo o corpo com seu cobertor seca-poço, deixando metade da canela de fora. Dormiu. Sonhou falando alto, palavras incompreensíveis. Palavras livrescas, nascidas das profundezas das páginas de livros que nunca lera, mas sonhava um dia poder fazê-lo. Acordou com os braços moídos de tanto aparar não sabe bem quantas centenas de livros. Sabia o esforço recompensado, mas gostaria de poder continuar estirado na cama. Outro dia vinha acordando e novas tarefas careciam ser executadas. Imaginou a alegria estampada na cara das crianças quando invadissem sua Biblioteca. Bateu duas vezes com a mão direita na boca, refugando o pensamento de que a Biblioteca lhe pertencia. Não! ela era das crianças, era do mundo, de todos aqueles que sonhavam poder ler e não tinham condições de comprar um livro. Em Serro Azul as pessoas eram muito mesquinhas, jamais tinham coragem de emprestar, que fosse, um só exemplar. Elas adquiriam coleções por metro, com o prazer único de enfeitar o escritório, vulgarmente chamado de Biblioteca. Lá os livros passavam anos empoeirando, sem serventia, sem que nenhuma pessoa da casa se desse ao trabalho de folheá-los por simples curiosidade fosse. Serapião Fala Mole viu distante sorriso de extrema alegria estampado na cara de Costa de Galo. Pensou rápido: – diabos, por quais motivos anda rindo esse homem? Desconfia de alguma coisa? Pode ser mudo e surdo, mas burro não é! Se fartaram tomando café e comendo ovos estrelados com pão dormido havia dias. A vida era bela e não tinham motivos pra proceder a nenhuma reclamação. Fala Mole arreou o velho e dócil cavalo empurrando pra dentro dos braços da carroça. Há muito tempo deixara de encilhar seu animal, já o tinha como aposentado, mas aquela era ocasião especial. Aboletou-se, sendo seguido por Costa de Galo, saiu assoviando como cumprimentasse o novo dia. Era todo sorriso e alegria. Sem pressa foi desviando dos buracos e dos cupinzeiros. A mente pensava livros. As mãos irrequietas folheavam livros imaginários. Histórias feitas por crianças, pra crianças. Histórias de adultos que jamais deixaram de ser crianças. Enquanto o velho cavalo trotava a passos lentos, quase se arrastando, Serapião Fala Mole navegava num mar de infinitas páginas coloridas. De olhos abertos sonhava imensidão de crianças entretidas, maravilhadas com a livraiada esparramada pelo chão. Naquela Biblioteca era proibido proibir qualquer criança de debruçar no tosco assoalho com seu livro preferido. Serapião Fala Mole foi seguindo a estrada escorado na ideia da Biblioteca Mundo Encantado. Os dois jamais se separariam. Unha e carne. De repente o barulho ensurdecedor da Cachoeira tomou conta do tempo. Um rasto de arrepio percorreu vagarosamente o espinhaço de Serapião Fala Mole como prenunciasse que alguém, mais esperto, tinha passado antes dele e carregado seus livros. Deixou escorrer pelos cantos da boca fina baba de apreensão e medo. E se tivesse perdido o poder de encantar as águas da Cachoeira e elas, entrevadas, recusassem a se transformar em livros? Não! não era possível! Era demasiado castigo pra um só pobre vivente. Foi arrastando pensamentos no mesmo vagar em que o velho cavalo carregava sua sina. Quinze minutos depois o silêncio foi quebrado pela exclamação de alegria. As montanhas de livros estavam lá, quietas, aguardando o destino. Costa de Galo olhou embasbacado pra seu amigo como perguntasse que diabos andou acontecendo naquele lugar. Saltaram da carroça e começaram a apanhar os livros. Dezenas, centenas, muitas centenas deles. Novos. Novíssimos em folha. Todos esperando sua dúzia de leitores mirins. Um brilho de satisfação saiu dos olhos de Costa de Galo. Pensou que ele também seria atraído pelos livros, e quem sabe, aprendesse a ler. Um dia encontraria alguém com paciência infinita e tempo pra ensiná-lo. Sonhou breve sonho acordado enquanto empilhava mais livros na carroça. Serapião Fala Mole imaginou quantas viagens daria até levar todos os livros pra Biblioteca, mas isso era o que menos importava. Ele agora tinha um mundo feito só de livros em sua frente e urgia transportá-lo. Foram duas, três, dez viagens. Não em apenas um dia, mas durante quase toda a semana. Agora vinha nova tarefa: separar e colocá-los nas prateleiras e estantes. Serapião Fala Mole fez tudo por instinto. Mas pesou também a beleza das capas. Imaginou que as crianças procurariam os mais chamativos, por isso mesmo foi dispondo os mais coloridos nas partes mais baixas, assim os pequeninos poderiam alcançá-los facilmente. Quando essa etapa terminou, notou que ainda existia espaço pra muitos livros. Fechou os olhos e novamente pensou livros. Quando a noite surgisse, pegaria sua carroça e rumaria pra Cachoeira. Tomara seus poderes não tivessem acabado. Passou o restante do dia amargurado, pensativo, taciturno, acabrunhado. A lua assomou, de longe, pequeno pedaço do céu azul recém-povoado de estrelas que mais pareciam dar boas-vindas ajudando a iluminar o caminho. Sem que Costa de Galo percebesse, saiu de mansinho. Os olhos postos nas curvas da estradinha, o coração na ponta da língua, o pensamento transformado em livros de variadas cores e tamanhos. Sem sossego prosseguiu na surda viagem, esperançoso de poder trazer mais e mais livros. Tão logo apeou da carroça, as águas da Cachoeira desabrocharam em belíssimos livros. Serapião Fala Mole pulava, gritava, sorria e chorava de alegria. O mundo era mesmo bom e mágico. Ninguém jamais acreditaria que de uma queda-d’água pudesse jorrar tantos e variados livros. Era o mais significativo espetáculo da natureza. E a água se fez em livros. Serapião Fala Mole agora senhor das leituras, transmissor de conhecimentos, conhecedor das palavras, podia se dar ao luxo de fechar os olhos e deixar que os próprios livros escolhessem suas mãos. Em meia hora a carroça estava abarrotada. Como a noite apenas iniciara, Serapião ousou pensar que conseguiria fazer duas ou três viagens trazendo exemplares suficientes pra preencher o espaço vazio existente na Biblioteca, mas a mão direita coçava como pretendesse obrigá-lo a fazer outras idas. Quando isso acontecia, ele não sabia resistir. Terminou suas andanças quando a lua decidiu descansar dando lugar a um Sol preguiçoso, que apareceu por entre nuvens e intensa cerração. Serapião voltou o pensamento prum passado quase recente, quando as pessoas de Serro Azul escarneciam dele por andar sempre com um livro nas mãos. Mesmo sem ter frequentado a escola, tinha imensa sede de saber. Encontrou nos livros deixados nas lixeiras o motivo pra iniciar sua viagem através da leitura. Percorreu incontáveis países sem jamais ter saído de sua terra natal. Sabia-se satisfeito com aquelas viagens, pois tinha consciência da impossibilidade de ajuntar dinheiro pra sequer conhecer a capital do Estado. Mais tarde descobriu a mirrada Biblioteca Municipal. Lá deparou com duas enciclopédias, e o mundo escancarou de pronto suas portas, puxando-o de vez praquele universo encantado. Quase sempre embirrava quando a bibliotecária anunciava que o expediente estava se encerrando, tendo que recolher livros e fechar as portas do estabelecimento público. Pra seu consolo, vendo quão assíduo ele era, começou a permitir levasse um e outro exemplar pra casa, com a condição de trazê-lo de volta no dia seguinte. E Serapião se debruçava sobre sua conquista sob a luz da lua ou debaixo de um poste. Varava a noite. Ainda tinha certa dificuldade em entender enormidade de palavras, por isso mesmo ia anotando em surrado caderno de folhas amareladas, cheias de orelhas de burro, pra no dia seguinte vasculhar o dicionário à cata do significado de cada uma delas. Assim aprendeu mais rápido do que poderia imaginar. Foi aprendizado sofrido, amargurado e marginalizado pelas pessoas da cidade que não se cansavam de dizê-lo burro como uma porta. No início padeceu em silêncio. Em breve espaço de tempo vestiu espessa couraça e nada mais o atingia. Serapião Fala Mole fora moldado pela dor pra distribuir alegria e conhecimento. Longe da lida com seus livros, Serapião realizava toda sorte de biscate. Ganhava mais do que o suficiente pra sua subsistência, e até economizava no caso de acontecer uma eventualidade. Agora sabia que guardar as sobras fora a decisão mais acertada de sua vida. Contou e recontou seus reais, imaginou quantas crianças viriam pra inauguração da Biblioteca, decidiu encomendar doces, pastéis, marias-moles– que criança não as saboreava –, sucos, broas de milho e bolos. Além de nutrir a mente da garotada e até dos marmanjos mais curiosos, alimentaria, também, o estômago de duas ou três centenas de comilões. Houvesse fome e vontade de comer. Sem muito alarde, procurou as velhas quituteiras da praia dos Macacos. Permitiu-se o capricho de lembrar os tempos de criança, quando vagava com alguns amigos, fuçando aqui e acolá atrás de ovos de passarinhos, ou em prolongadas pescarias que sempre rendiam costumeiras tacas. Os pais não gostavam que aventurassem praquelas bandas, pois a molecada arriscava saltar da barragem perigando afogamento ou quebrado o pescoço. Quem éramos nós pra não enfrentar o desafio do desconhecido? O que importava mesmo, traduzíamos quando chegávamos à casa das mauriças, como –ninguém desconhecia – chamávamos as quatro irmãs descendentes de escravos. Batíamos palmas, com olhos de piedade pedíamos um copo de água fresca da moringa e, raro isso não acontecia, nos agraciavam com doce de leite no canudo, goiabada cascão, com generoso pedaço de queijo feito na cozinha do velho casarão. Deviam beirar os cem anos e continuavam no batente. Foi recebido em festa. Apresentou a enorme lista de encomenda. Embora não soubessem ler, elas jamais esqueceriam a quantidade, nem os variados tipos de doces e outras iguarias. Não gostavam de receber adiantado, porém Serapião Fala Mole argumentou a necessidade de efetuar parte do pagamento, pois ajudaria na aquisição do material a ser empregado na confecção do pedido. Sorridentes como sempre, ofereceram água da mesma moringa e uma porção do doce preferido de Serapião. Deu meia-volta, esmurrou o ar em sinal de contentamento. O dia estava mesmo belo. Retornou pra casa conversando baixinho com seus botões:  e nem num é que sou um homem feliz? Nem se deu ao trabalho de respostear, mas assentiu com ligeiro menear de cabeça. Poucas vezes naquelas paragens alguém poderia dizer alto e bom som, como era feliz e quase realizado. Talvez Serapião Fala Mole fosse o primeiro. Esperava não ser o único, nem o último. Atravessara Serro Azul pelas bordas, fugindo do meio da cidade e seu costumeiro burburinho, onde quase sempre era achincalhado por crianças e adultos. Não que isso o aborrecesse como antigamente, é que agora ele não queria de modo algum anuviar seus dias. Estava feliz demais pra deixar que estragassem os momentos que beiravam chegar. Retornando, apressou os passos. Trazia o coração quase na boca, pois temia que em sua longa ausência pudessem ter descoberto o que somente ele e Costa de Galo conheciam e, por mero capricho, resolvessem destruir apenas pra sabê-lo sofrendo. Avançou sôfrego deixando pra trás a estrada vicinal, rompendo com o peito o capinzal que a separa do estreito caminho aberto por ele e pelo amigo. O chão parecia prender seus pés, pois tanto a casa quanto a Biblioteca resistiam em aparecer. Fechou os olhos, pareceu ver fumaça, abriu entre assustado e impaciente. Não notou nenhum sinal de fogo. Respirou aliviado. Sossego mesmo só encontrou quando deu de frente com as duas construções. A casa que resistia todas as intempéries e a Biblioteca Mundo Encantado que viera pra deslumbrar a cidade inteira, no seu pensar e sonhar. Empurrou a porta da casa enquanto procurava a moringa, desejava matar a sede, aplacar as angústias. Da acanhada cozinha exalava o perfume entremeado de alho, açafrão, manjericão e alecrim. Por certo Costa de Galo estava preparando sua especialidade: saborosa galinha ao molho pardo. Apenas duas ou três vezes na vida tivera oportunidade de provar prato tão bem preparado. Enquanto tirava a velha e carcomida botina, começou a pensar como faria pra atrair as pessoas até a Biblioteca. Desprovido de recursos pra mandar imprimir panfletos ou colocar um anúncio na única estação de rádio, só conseguiu pensar em pedir emprestado na lojinha de João Batrício, o libanês, o megafone que utilizava em suas promoções. O velho e sério imigrante tinha enorme admiração por Serapião Fala Mole, achava-o divertido e meio maluco, mas gente de bem, confiável, amável, prestativo, amigo de todas as horas. Na manhã seguinte João Batrício nem sequer tinha acordado e lá estava Serapião acompanhado por Costa de Galo, costumeiro e fiel guarda-costas. A velha carroça pronta pra conduzi-los por todas as ruas e praças de Serro Azul. Fariam o maior dos estardalhaços convidando a população pra inauguração da Biblioteca Mundo Encantado. Sabia de antemão que a grande maioria das pessoas iria apenas com o intuito de gracejar, fazer chacota, pois ninguém ousaria pensar que a tal Biblioteca tivesse mais de meia dúzia de livros. O barulho da chave penetrando na imensa fechadura fez os dois ficarem de prontidão. João Batrício se assustou quando viu o amigo de prontidão, querendo falar sem conseguir pronunciar uma só palavra. Aos poucos a calma se apossou de Serapião e ele descarregou enorme carreira de palavras. João Batrício não entendia nada, apenas pedia calma, falasse devagar. Costa de Galo gesticulava apontando pras letras da fachada da loja, aumentando loucamente a confusão na cabeça do velho libanês. Uma eternidade até que Fala Mole se acalmou, conseguindo explicar a razão pela qual quase madrugara na porta da loja. Batrício caiu em estrondosa gargalhada. Achou uma loucura a ideia da Biblioteca, mas não podia mesmo esperar outro procedimento do amigo de longa data. Buscou o fundo da loja, voltando em seguida com seu megafone meio descascado pelo tempo de uso, mas em perfeitas condições pra atender aos propósitos de Serapião. Os dois se aboletaram na carroça. Costa de Galo se empertigou, pois a partir daquele momento fora promovido a condutor, fato nunca acontecido antes, até mesmo quando Serapião careceu de sua ajuda pra chegar ao posto médico, acometido de pneumonia que quase o levou deste pro outro mundo. E lá se foi Serapião com o megafone na boca, explodindo em alegria ao anunciar que, na sexta-feira, toda a cidade estava convidada pra inauguração da Biblioteca Mundo Encantado. Em poucos minutos, um bando de crianças aderiu ao movimento, umas segurando nas bordas da carroça, outras apenas seguindo enfileiradas, gritando, gesticulando, bagunçando o coreto. Festavam. Poucos criam na possibilidade de terem sido ludibriados por Serapião Fala Mole, que às escondidas conseguira construir um prédio e, pra surpresa de todos, enchê-lo de livros, coisa que nem o mais arrojado prefeito de Serro Azul fizera. Quanto mais rodavam pela cidade, mais crianças ajuntavam formando imenso séquito. Até os filhos das famílias mais ilustres foram arrastados pela voz grave de Serapião. Alguns pra sentir o gosto do fracasso, porém os mais sedentos movidos exclusivamente pelo desejo de poder contar com um espaço onde os livros reinassem e eles pudessem desfrutar do incontido prazer da leitura. Serapião Fala Mole, tendo a seu lado o inseparável Costa de Galo, varreu todas as ruas da cidade até que Quadrado, o velho cavalo puxador da carroça, demonstrou os primeiros sinais de cansaço. Estancaram diante da casa de Nhá Bernardina onde pediram água pro animal e obtiveram permissão pra cortar um pouco de capim-navalha. Serviram a refeição pro puxador da carroça, que relinchou alegremente. Descansaram por longos minutos. A criançada não arredou os pés do lado de Serapião, a farra estava muito boa e ela queria apenas ver o circo pegar fogo. Hábil, Serapião parou na praça da igreja matriz. Esperou que o povo fosse se aproximando pra, finalmente, soltar a voz convidando todos pra inauguração da Biblioteca, não sem antes anunciar que os quitutes das mauriças seriam servidos o dia inteiro. Houve quase que um uivar de contentamento. As crianças conheciam de perto o sabor dos doces feitos pelas irmãs e sabiam que elas não costumavam atender a qualquer pedido. Aquele certamente era muito especial. Alguns pais se sentiram importunados com a inauguração da Biblioteca e decidiram apelar ao delegado de polícia e até ao promotor de justiça, alegando que Serapião Fala Mole constituía perigo praquelas crianças. Diziam que bem poderia ser um pedófilo, pronto pra machucar seus filhos. O promotor de justiça perdeu as estribeiras com a maldade daquelas insinuações. Severo, não se fez de rogado dizendo que não titubearia em deixar seu casal de filhos com Serapião Fala Mole, cujo único propósito na vida era incutir nas crianças o gosto pela leitura. Houvesse o menor indício de molestação a quem quer que fosse, seria o primeiro a aplicar o rigor da lei. Serapião fazia o que a maioria dos pais abominava: abria a mente da criançada distribuindo livros. Todo o mal do mundo acabasse numa chuva de livros, certamente as pessoas agiriam de forma diferente. Aconselhou aos pais das crianças que não proibissem seus filhos de participar da inauguração da Biblioteca Mundo Encantado, anunciando que ele mesmo estaria presente prestigiando aquele homem simples, do povo, responsável pelo mais gigantesco passo pra formação do caráter de bons cidadãos em Serro Azul. A notícia da reprimenda do promotor de justiça a meia dúzia de pretensos homens de bem percorreu a cidade em questão de minutos. Serapião Fala Mole quase chorou de alegria quando soube do acontecido. Ele era incapaz de ver ruindade nas pessoas. Acreditava numa segunda chance e tudo fazia pra que todos pudessem enxergar o erro e repará-lo. Dizem que seu coração não cabia no mundo, de tão grande. O sol deu os primeiros sinais de ir embora e Serapião Fala Mole sabia terminado o tempo de anunciar a inauguração da Biblioteca. Nem sequer imaginou repetir no outro dia a peregrinação pelas ruas da cidade. Não existia uma só pessoa que desconhecesse o fato. Se dirigiu pra loja de João Batrício onde, além de tomar o café coado na hora, proseou por bons momentos até que decidiu ser o momento de buscar o rumo da casa. Tinha um banho a tomar, preparar o jantar pra ele e Costa de Galo, vistoriar mais uma vez a Biblioteca certificando-se de que todos os livros estavam seguros, protegidos contra qualquer tentativa de algum maluco da cidade. Nunca como agora sentiu na vida tanto prazer em procurar sua morada. Agora mais do que nunca a vida estava cercada de objetivos. Enquanto esquentava água pro banho, pois que a noite anunciava a chegada de leve friagem e não desejava adoecer no momento mais feliz da vida, ligou o radinho a pilha pra ouvir A Voz do Brasil. Era assíduo radiouvinte. Uma notícia atraiu sua atenção. O Governo Federal estudava a implantação de linha de crédito pra que as editoras publicassem livros a preços módicos, ao mesmo tempo destinava enorme soma de recursos pra que os municípios instalassem Bibliotecas e adquirissem livros. Anunciou ainda recursos destinados a incentivar a prática de contação de histórias, reconhecendo que contá-las era profissão a ser valorizada. A oralidade permitia que o passado de uma nação pudesse ser preservado. Serapião Fala Mole não cabia em si de contentamento. Embora sua Biblioteca não precisasse de recursos governamentais, na grande maioria dos municípios a inexistência de Bibliotecas e a falta do hábito de leitura em casa eram fator preponderante pra que os alunos terminassem o ensino fundamental sem conseguir interpretar o mais simples texto. Ali em Serro Azul essa história não seria repetida. Enquanto vivesse, Serapião Fala Mole andaria com as mãos ocupadas, carregadas de livros, distribuindo-os pelas ruas, praças, vendas, botecos, onde houvesse uma pessoa interessada em gastar seu tempo numa boa leitura. Demorou no banho, usufruindo da água morna colocada num latão, seu chuveiro improvisado. A mente ia longe, mas voltava sempre pro mesmo lugar. Ali era seu paraíso encantado. Tão logo saiu de debaixo do chuveiro improvisado, enfrentou o fogão. Na mesa o que seria cozido estava temperado, apenas aguardando ser colocado nas panelas. Costa de Galo manteve distância, aquela noite não era sua, Serapião foi muito claro e não gostava de ser contrariado. Pelo visto o jantar sairia bem tarde. A água da panela em que diversos pedaços de mandioca amarela tinham sido colocados, fervia a bom ferver. Os graúdos pedaços de músculo teimavam amolecer, mas o cheiro de tudo era muito bom. Apenas o feijão e o arroz pouco demoraram pra cozinhar. Já era bom sinal. Pela primeira vez Costa de Galo viu Serapião Fala Mole apanhar pequena garrafa que trazia escondida entre a lataria de mantimentos. Pegou dois copos, deu uma sacudidela até ver o colarinho espesso se formar e demorar alguns segundos até se desfazer. Pinga da boa, guardada ali havia mais de uma década. Agora seria saboreada a goles pequenos pelos dois. Esperariam um pouco até os pedaços de músculo amolecerem pra poderem desfrutar do tira-gosto. Os dois primeiros goles da branquinha entorpeceram de leve o corpo magoado de Serapião. Ele não era dado a bebedeiras, senão em ocasiões muito, muito especiais, e essa era uma das poucas. No entanto tinha plena consciência de que não podia abusar. O dia seguinte seria cheio, imensamente cheio de atividades. Qualquer descuido e poria tudo a perder. Aquelas crianças não mereciam seu fracasso, tinha por obrigação não decepcioná-las. Bebidos e jantados, deitaram e logo adormeceram. Serapião Fala Mole, como sempre, viu os sonhos serem repetidos. Neles só havia espaço pros livros. Centenas, milhares deles. Viu a Cachoeira dos Livros transbordar enquanto milhares de crianças enchiam os braços, sem se dar ao trabalho de escolher. Aliás, ninguém tinha o poder de escolher qualquer livro, nem mesmo Serapião. Quantas piruetas eles faziam, prometiam cair num braço e acabavam parando em outros bem distantes. A Cachoeira dos Livros era mesmo muito estranha, até nos sonhos. Acordaram cedo, embora o Sol já tivesse a postos pra lhes dar um bom-dia afetuoso. Irradiante, vermelho como fogo. O vento puxava a fumaça das queimadas encurralando-a no meio do céu. Tentavam tapar o Sol e este acabava por vingar, envermelhando o tempo. Com o dia posto pela frente, os dois só podiam contar as horas que separavam da inauguração da Biblioteca Mundo Encantado. O isopor com bastante gelo receberia as inúmeras garrafas com sucos de laranja, maracujá e melancia. Quando chegasse o meio da tarde, os dois rumariam pra casa das mauriças onde apanhariam os doces e salgados. Depois restava tão somente aguardar a sexta-feira. O Sol escaldante estava empinado no céu, e nada de Serapião Fala Mole decidir quando selaria o cavalo, ajeitaria a carroça e decidiria sair atrás da comida. Apenas ficava ali defronte da Biblioteca de boca aberta, deixando espessa baba escorrer pela barba rala. Estava em transe. De onde em onde coçava a cabeça, cruzava os braços no peito, esfregando-os como pretendesse afastar o frio inexistente. Sonhava de olhos abertos. E mais uma vez, mesmo estando acordado, seu sonho era povoado por livros. Enorme revoada de maitacas o fez despertar. Arregalou os olhos dando conta que o avançado da hora não permitia nenhum atraso. Quase bravo com sua descontração, gesticulou inúmeras vezes pra Costa de Gelo como pretendesse culpá-lo por ter dormido tanto tempo de olhos abertos. Trepou na carroça quase provocando um desastre, pois seu companheiro de longa data por pouco não teve tempo de se jogar no banco. Fosse um carro, teria saído cantando pneus. Furioso, chicoteava o velho cavalo, punido por culpa que era tão apenas sua. Serapião Fala Mole era mesmo assim, destrambelhado. Uma hora depois estavam diante da porteira das mauriças. Foram recebidos com festas. O amontoado de gamelas e bandejas abarrotados de salgados e doces, cobertos por frescas folhas de bananeira, recém-colhidas, demonstrava o apreço que as irmãs tinham pelo cliente. Mesmo com a insistência delas pra voltar outro dia e efetuar o restante do pagamento, Serapião jurou que não arredaria os pés dali enquanto não recebessem o que lhes era devido. Pagamento feito, esqueceu as loucuras e iniciou a viagem de volta com o maior dos cuidados, os vasilhames não poderiam sofrer nenhum dano. O trajeto até sua casa seria coberto de cautela. Sem pressa, deu-se novamente a sonhar. Anteviu o povaréu tomando conta da pequena praça defronte da Biblioteca Mundo Encantado. Reinava ar de expectativa. Pairava também em algumas caras desdém e incredulidade. Um homem sozinho, a não ser que tivesse pacto com o demo, não conseguiria fazer aquele prédio, mas ele estava ali pra que todo o mundo visse. E dele se encantasse Embora temesse que a noite gastasse semanas pra passar, mal dormiu e os galos se puseram a cantar quase solenemente. Serapião Fala Mansa e Costa de Galo acordaram assustados, imaginando que tinham perdido a hora. O Sol apenas nascia, mas dali em diante tudo seria motivo de festa. Antes de fazer o café, correram até o encontro da estrada vicinal com o caminho que conduziria as pessoas até a Biblioteca. Munidos de facão e foice abriram o restante da pequena passagem, não sem antes colocar tosca placa indicando que, seguindo em frente, chegariam ao local da festa. Retornaram céleres. Enquanto um preparava a primeira refeição, o outro tomava banho. Em poucos minutos os dois estavam sentados, saboreando o café que naquela manhã foi feito com redobrado carinho. Às nove horas em ponto ouviram os primeiros gritos. Meia centena de crianças invadiu a minúscula praça. Outras vieram em seguida. Pais, mães, autoridades, até o incrédulo prefeito se fez presente. A praça inteira era das crianças. Mesmo as mais traquinas não se atreveram a bulir nas bandejas cobertas com as folhas de bananeira ou abrir o isopor em que os sucos reinavam no gelo. Uma escada bilateral permitia o acesso ao prédio da Biblioteca e foi lá de cima que Serapião Fala Mole falou de seu sonho: dotar a cidade de um lugar calmo onde as crianças travessurassem sossegadas, pudessem apanhar o livro que quisessem, se debruçassem sobre ele, o levassem pra casa, com a condição de devolvê-lo. Não lhe perguntassem como conseguiu construir, apenas com a ajuda de Costa de Galo, a Biblioteca Mundo Encantado ou tentassem descobrir como adquirira tantos livros. Livros se multiplicam através de doação. Nossa Biblioteca recebeu a maioria dos exemplares doados por anônimos. Ela hoje não me pertence, aliás jamais pertenceu. Em seguida introduziu a chave abrindo a imensa porta. A criançada não esperou convite. Invadiu o grande salão e foi apanhando a bel-prazer os livros que jamais sonharam ler um dia. Serapião Fala Mole mal acreditava no que seus olhos viam. As crianças se jogavam no chão, abriam os livros, liam em voz alta, largavam o que estava nas mãos e corriam à cata de outro exemplar. Elas tinham sede de leitura e, finalmente, encontraram no meio do mato uma Biblioteca que permitia folhear, ler, dar risadas, levar pra casa, povoar a mente com o que de melhor existia no mundo: um livro. Os adultos entraram temerosos, mas aos poucos ficaram embasbacados com tamanha profusão de livros. Todos novos. Milhares deles, das mais variadas cores e tamanhos. O promotor de justiça sorriu levemente pra Serapião Fala Mole, não sem antes apresentar os filhos dizendo que, a partir daquele momento, aquela seria a segunda casa deles. Os que vieram com intenção de acabar com a festa foram saindo devagarinho. Derrotados por um homem que jamais ousou pensar em lutar contra quem quer que fosse. Um homem que tinha na cabeça apenas um pensamento: enquanto as famílias não se conscientizarem da leitura como instrumento capaz de mudar o mundo, nós não conseguiremos sequer mudar nossa vida. As crianças mal tocaram nos doces e nos bolos. Tinham outro tipo de fome. E ela não seria saciada hoje, talvez não o fosse nunca, mas ali tinha sido dada a partida para que aos poucos começasse a debelação da sede e da fome da leitura. Serapião Fala Mole volveu os olhos aos céus. Em sua característica economia de palavras, agradeceu os poderes sobrenaturais a ele concedido, fazendo-o igualmente à Cachoeira dos Livros, que tornou seu sonho realidade. Pra surpresa de todos, uma das crianças deu um baita psiu calando todo o mundo. De repente todas gritaram: – era uma vez a Biblioteca Mundo Encantado, e ela veio pra abrir as portas do mundo da leitura pra todas as crianças de Serro Azul. Serapião Fala Molde olhou aquele mundaréu de pequerruchos, sorriu um sorriso gostoso, abriu um livro e garrou a sonhar que o caminho fora finalmente escancarado.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

CUBA DE CHE 50 anos depois da Revolução

Não se trata apenas de um livro sobre Cuba, mas de fiel retrato da prepotência norte-americana que se iniciou com o embargo econômico, comercial e financeiro, em sete de fevereiro de 1962. A mesma prepotência que fez os norte-americanos sair com os rabos entre as pernas da Coréia, do Vietnam, do Iraque e futuramente do Afeganistão. Os americanos somente não invadiram Cuba porque seriam massacrados pela Rússia e China pondo fim à vida no planeta Terra. Estão massacrando Cuba, mas jamais conseguirão tirar do povo o sentimento de Liberdade. Assassinaram Che Guevara, entretanto não destruíram seus ideais. Fotografias em branco e preto que se sucedem mostrando a beleza de um País que teima resistir às pressões do vizinho gigante. Fotos lindíssimas, exuberantes como exuberante é o povo daquela ilha caribenha. Vemos sofrimento, mas não há sentimento de ódio esparramado na cara do povo cubano. Ele demonstra ser feliz embora saiba que a pouco mais de cem quilômetros existe tudo que gostaria de possuir e não pode comprar. Lá a miséria não é sinônimo de sujeira, as pessoas podem estar maltrapilhas, as roupas esfarrapadas, mas a altivez não as deixa usá-las sujas. Izan Petterle retrata com fidedignidade a Cuba de hoje, a mesma Cuba de cinquenta anos atrás. Homens e mulheres que sobrevivem às mais duras condições sem, entretanto, abaixar a cabeça. Muitos fogem de Cuba, mas a grande maioria mesmo sofrendo o que sofre com o embargo imposto pelos Estados Unidos jamais abandonará o solo amado. Há em cada foto um quê de esperança e resignação. Esperança que dias melhores virão. Resignação com o que foi imposto em nome do combate ao comunismo. Fidel pode ter mandado assassinar muitos compatriotas, mas jamais cometeu tantos crimes como os presidentes americanos cometeram em nome de uma suposta luta pela liberdade e democracia. O norte-americano é esperto em assassinar seus próprios filhos: Luther King, John e Bobby Kennedy, Abraham Lincoln... A América será derrotada. O branco e preto das fotografias não é sombrio, pelo contrário, carrega forte sentimento de paz, alegria e nostalgia. Até a dor contida nas fotografias de Izan Petterle não nos transmite a sensação de um povo derrotado, pelo contrário, esboça na pobreza de seus lares a fortaleza interior, digna de ser imitada. Cuba de Che, de Izan Petterle não é apenas um livro de fotografia, senão o mais belo hino de amor à liberdade que um povo pode cantar. Autores: Izan Petterle (fotos) Texto: Frans Glissenaar Carlini & Caniato Editorial

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

SERAPIÃO FALA MOLE

Serapião Fala Mole nunca escondeu de ninguém sua loucura. Dizia que se alimentava de ventos e sonhos. Escrachava, lem-brando a todos a impossibilidade de lhe roubarem os alimentos. Se chovesse arranjava um gramado fofo, estatelava-se, abria a bocarra deixando a água descer pela garganta com a força de corredeira. Quando a chuva cessava, dando início ao período seco, cofia-va a barba, preguiçoso, media a distância que o separava do Ria-cho de Sangue, pesava os prós e os contras, pra depois, só ao saber a língua esturricando arriscava mover-se à cata de algum filete d’água onde pudesse matar a sede. Soletrava lua e estrelas quando o céu se encharcava de azul, brindando os olhos com clarões de feri-los quase ao ponto de cegar. Desconversava ligeiro quando alguém se achando mais esper-to tentava fazê-lo dizer o que não devia. Muitos por sua esquisitice o julgavam viciado em drogas. Res-pondia que era viciado na vida. Nada mais. Agora mesmo estava de bem com o mundo. Queria se entupir de alegria, andar sem destino, cavalgar os raios do sol. Essas loucuras se apossavam dele, sem mais nem menos, mas Serapião aprendeu a viver com todas as doidices e não dava mui-ta bola pro que pensavam a seu respeito. Era tempo de jabuticaba e ele ficava sentado, esquecido de tudo, xingando a natureza pois que ele tinha vontade era de chupar gabiroba. Seus tempos e coisas pareciam ter mudado. Sossego, calma, o olhar perdido em busca do futuro pareciam reinar, dando a Sera-pião Fala Mole convicção que não podia se esconder detrás de morros e moitas, deixando que as pessoas buscassem respostas pras perguntas ainda não feitas. Era homem de poucas palavras, mas jamais largava companheiros na mão. Bisbilhotava tudo querendo descobrir o que movia o mundo. Patético, alegre, cabisbaixo ou triste só se encontrava quando dava de cara com a Cachoeira de Livros. As gentes de Ipê-branco, minúsculo povoado que o progresso se esqueceu há tempos de olhar, reclamava dizendo que as lou-curas de Serapião Fala Mole impediam o governo estadual, mais preocupado com as exportações de soja transgênica, milho, algo-dão, etanol, arroz e madeira extraída ilegalmente das reservas indígenas, de investir naquelas bandas, deixando-os morrer quase que à míngua. Há mais de dois anos que um médico da Secretaria de Saúde não visitava a comunidade. Quem fosse acometido de algum mal súbito tinha que se virar procurando a cidade mais próxima. Quando dizia que vinha de Ipê-branco no sempre era largado em qualquer canto, esperando a morte chegar. O abandono chegou a tal ponto que o povo do Ipê, agora preferia morrer aos poucos, devagarinho, na solidão de seus er-mos, sem se preocupar em buscar alívio pros seus males nas vizi-nhanças. Ademais aquela gente nunca virava as costas aos ami-gos, mesmo quando acreditava que aquela pessoa poderia destru-ir o povoado. Mas ninguém acreditava que Serapião Fala Mole fosse tão ruim a ponto de provocar o desaparecimento de Ipê-branco do mapa. Podia ser lelé da cuca, variado, mas todos o sabiam e reconheciam inofensivo, um louco manso, cujo único mal era dizer verdades e viver lendo solitariamente seus livros debaixo de sol ou chuva. O povão só moderava a perseguição acirrada quando ele co-lhia a cana-de-açúcar, preparando em seu improvisado alambique a pinga de orelha, especialíssima e com parte dela produzia cen-tenas de litros dos mais variados licores. Festa junina sem a bebi-da apurada de Serapião Fala Mole era impensável. Por mais brasileira que fosse aquela população, acostumada a roubar até galinha morta, algo estranho acontecia com a produ-ção de Serapião. Ele deixava suas garrafas sobre imensa mesa ou dentro de caixas, com o preço. Ao lado uma espécie de urna on-de deveria ser colocado o valor de cada garrafa. Durante anos nunca foi passado pra trás. No outro dia, depois da festança, pela manhã, quando vinha conferir o resultado da venda, sempre en-contrava o equivalente às garrafas deixadas nas caixas. O povo não tinha coragem de roubá-lo, embora fosse capaz de persegui-lo e atormentá-lo. Indecifráveis mistérios da mente humana. A população do povoado não entendia de onde Serapião Fala Mole arrancava tantos livros. Perguntado se fazia de desentendido aumentando ainda mais a curiosidade. Certo é que as crianças da única escola da comunidade rece-biam regularmente dezenas de livros e elas cuidavam de devorá-los, com urgência, prevendo a chegada de outros, em breve espa-ço de tempo. No fundo existia terna cumplicidade entre elas e seu benfeitor. Por mais tentassem segui-lo, em determinado pedaço do ca-minho ele passarinhava e ninguém era capaz de encontrá-lo. O máximo que conseguiam enxergar era um gavião-anta, talvez a encarnação avoadeira de Serapião pra modo de se defender das maldades dos homens. Não havera de ser novidade. Muita gente acreditava nessa possibilidade, ainda que remota. Quando julho findou todos os ipês ficaram carecas. Bastava a primeira chuva pra eles folhescerem e depois vesprando a prima-vera florescerem. Era o tempo que Serapião Fala Mole mais gos-tava no ano. Podia dividir os momentos admirando flores, insetos e livros. Tinha vaga notícia do futuro, mas sabia que havia um lugar reservado pra recebê-lo. Jurava de pés juntos que lá estaria sozi-nho ou bem acompanhado. Mas não via razão em se emaranhar nessas brenhas já que tinha por obrigação viver cada momento do presente. E seu tempo se resumia em plantar e colher livros. Destino ou perdição. Eram certezas que mal e mal conseguia sustentar em suas pernas de andador desnaturado. Pra ele, hoje foi dia de festa, arrancou uma dúzia de livros que julgava não mais encontrar em lugar algum, mas lá estavam eles, enfileirados, alguns semiabertos. Enroscado no Pequeno Príncipe encontrou Reinações de Narizinho. Apanhou os dois de uma só vez e se pôs a lê-los com ganância. Os pestinhas viviam fugindo, quanto mais os procurava, mais escafediam, como pretendessem tornar livros raros. Mas, enfim, os danadinhos foram agarrados, sem chance de fuga. Quando Serapião Fala Mole ouviu dizer que o céu era um lu-gar bonito, com uma biblioteca imensa, livros em todas as línguas e de todos os lugares, até da esquecida Cuiabá, achou que era tempo de abandonar os evangélicos que só viviam pedindo dízi-mo, sem nunca ter lhe dado um só livro. Além do mais eles não acreditavam em santos e como ele poderia chegar até aquela bi-blioteca sem antes passar por São Pedro? Assim se converteu ao cristianismo, na esperança de conseguir seu lugar bem ao lado daquilo que amava por sobre todas as coisas: os livros. Nem se deu ao luxo de avisar ao famigerado pastor de sua i-greja. Ele, esperto como cão raivoso, tentaria todos os meios para convencê-lo a mudar de ideia. Qual o quê! queria milhares de livros a seu redor e daquele um miserável não arrancaria nada. Virou assíduo frequentador da igreja. Se dependesse dele não perdia uma missa. Até mesmo as celebradas nos dias úteis. Por vezes estava agarrado num livrinho quando ouvia o sino repicar. Deixava tudo de lado e corria sem olhar pros lados. Não gostava de chegar atrasado, temendo assim perder seu lugar no céu. E os anos foram atravessando e cada vez mais Serapião Fala Mole acreditava que estava aos poucos garantindo seu lugar. Ar-repiava todinho só em pensar na livraiada esparramada pelas mesas da enorme biblioteca, podendo pegar um por um sem que ninguém viesse chamar sua atenção. Igual a sua Cachoeira de Livros. Jamais foi proibido de escolher. Dependendo da época, se era tempo das chuvas, a queda d’água se avolumava ainda mais despejando ensurdecedoramente enorme quantidade de brochu-ras que brilhava quando o sol batia de frente. Era um festival de luzes, cores e letras, dominando sua vida, seu pensamento. Dizem que ao ser apanhado colhendo dezenas de exemplares na Cachoeira de Livros Serapião Fala Mole passarinhou de vez. Se transformou em imenso gavião-real, com belíssimas asas de Grande Sertão: Veredas e bico de Vidas Secas alçando voo, ru-mando pro céu pra nunca mais voltar.

FORÇA NA PERUCA

FORÇA NA PERUCA Por Romulo Nétto* Humor e sensibilidade. Não sei bem qual sobressai mais neste gostoso livro de fácil leitura. Humano e trágico? Ou somente a tragédia traduzida de forma simplesmente humana. Assim é Força na Peruca, da até então desconhecida Mirela Janotti. Ela soube tratar com sutileza, com non plus ultra (última perfeição) uma doença abominada por todos nós, simples mortais. Encarou-a, sem subterfúgios, sem medo. Forte, como são as mulheres, não deixou que os momentos de tristeza causados pela doença tomassem conta de sua vida, escravizando-a implacavelmente. Pelo contrário, saiu à luta, buscou viver intensamente cada minuto, vezes há que o fez como fosse o último, ainda assim sem fraquejar. O que se lê é um humor recheado de amor. Amor pelo que temos de mais caro: a vida. Mirela soube com maestria driblar a doença, pois fez dela sua aliada, quase a transformando na mais fina piada. Somente quem conviveu durante longo período com um paciente canceroso pode aquilatar o sofrimento da autora. Ela não deixou que sua doença atingisse como punhal afiado as pessoas que mais ama: a filha e a mãe. Não permitiu que o câncer de mama a separasse dos amigos e das amigas. Permitiu-se ao luxo de debochar da aparência em determinados momentos, sem cair na pieguice da zombaria desenfreada pelo fato de “estar” doente. Força na Peruca é antes de tudo a prova cabal de que diagnosticado precocemente o câncer de mama pode ser enfrentado. As mulheres podem tirar deste livro o exemplo de que nem tudo está perdido. A experiência de Mirela há de servir como paradigma para os milhares de mulheres que a cada ano são acometidas por esse mal. Não bastasse isso Força na Peruca traz o lirismo permeado de fino humor capaz de nos fazer sorrir mesmo sabendo da desgraça que atingiu a autora. Mas o que vale mesmo é a lição que fica: a fé e a vontade de viver são capazes de nos fazer enfrentar e vencer todos os grandes males. *Romulo Nétto, jornalista e escritor com onze títulos publicados pela Carlini & Caniato Editorial.

SÁBADO OU CANTOS PARA UM DIA SÓ

Marta Helena Cocco nasceu poeta. Mais: nasceu poeta pronta. Isto não quer dizer que ela não tem mais que crescer. Há de crescer e muito e os que a lerem proximamente descobrirão que sua poesia melhora a cada livro escrito. Há uma dose de crueldade em seus versos, não se trata de crueldade intencional, mas da crueldade que abandonou as metrópoles e hoje ocupa os menores vilarejos: “Deveria endereçar alguma prece a quem tenha decidido as coisas como estão? Do contrário pode-se ficar abaixo do bem e do mal obedecendo a ser indiferente o que é o mesmo que ser igual.” . Ainda que seja o retrato fiel do que ocorre em nosso dia a dia, há um quê de ternura em cada poema. Não se trata de uma ternura explícita. É preciso ter a lente mental aguçada para adentrar nos entre versos de cada canto. E a poesia se me afigura diamante inabalável, irrequietamente desprovido de jaça. A poeta nasceu pronta e desafia seu próprio destino se provocando, se instigando a produzir mais e mais perfeitamente. Só os grandes têm o poder de pensar na magnificência do que escreve sem que isso venha carregado de petulância. Os grandes escritores na pureza da alma carregam o fardo da simplicidade, pois que a simplicidade pesa muito mais que a arrogância. Pari passu dos seus outros três livros de poesia, Sábado ou Canto para um dia só veio para ficar entre os grandes livros da contemporânea literatura mato-grossense.