quinta-feira, 4 de julho de 2013
JORNALISTA SHIRLEY M. CAVALCANTE (SMC) ENTREVISTA ESCRITOR ROMULO NÉTTO
Escritor Romulo Carvalho Netto, com mais de 10 livros publicados, residente na cidade de Cuiabá – MT, jornalista. Foi servidor da Universidade Federal de Mato Grosso onde exerceu por vários anos a Presidência da Comissão Permanente de Concurso Vestibular. Posteriormente exerceu a Supervisão da Imprensa Universitária, chegando a ser Presidente da Comissão Editorial, que na realidade era a Editora Universitária. Foi um dos criadores da Revista Universidade. Aposentado, trabalhou por um ano e seis meses na Assessoria da Superintendência de Política Indigenista, órgão da Casa Civil do Governo do Estado de Mato Grosso. Coautor do livro Universidade Ameríndia – a moderna política indigenista de Mato Grosso.
Por diversos anos escrevia, diagramava e imprimia artesanalmente seus livros de poesia.
Atualmente dedica seu tempo à literatura buscando mostrar ao Sul Maravilha (eixo Rio-São Paulo) que nos estados periféricos há bons escritores, falta-lhes a boa vontade de críticos e editoras em garimpá-los nos mais diversos estados.
Em entrevista ao projeto Divulga Escritor o escritor Romulo Netto, conta-nos sobre sua trajetória literária, nos dá dicas e cita melhorias para o mercado editorial no Brasil.
“A criança que cresce num lar onde ninguém lê, dificilmente adquirirá o hábito da leitura. Embora meus pais não lessem romances ou poesias, eles nos incentivaram a ler e ler. Éramos leitores vorazes. Hoje, os pais não mais compram livros para seus filhos, desde cedo dão a eles smartfones, ifones, ipads e a imensa parafernália tecnológica existente no mercado.”
Boa Leitura!
SMC – Escritor Romulo Netto é um prazer tê-lo conosco no projeto Divulga Escritor, conte-nos quando começou seu gosto pela escrita? Em que momento decidiu publicar seu primeiro livro?
Romulo Netto - Meu gosto pela escrita iniciou no exato instante que tomei gosto pela leitura. Isto ocorreu quando tinha nove anos de idade. Venho de uma família humilde. Meus pais eram semianalfabetos, porém não descuidavam da educação dos livros. Papai era guarda-fios dos Correios, assinava o jornal Correio da Manhã, que demorava quatro dias até chegar em nossa cidade. Vendo meu interesse pela leitura permitiu que eu comprasse na Casa Rocha (armazém de secos & molhados), em Paracatu-MG, a maravilhosa coleção de livros infantis publicada pela da Editora Melhoramentos. Aos onze anos pulei para A Carne, de Júlio Ribeiro, Iracema, de José de Alencar, Dom Casmurro, de Machado de Assis e a fabulosa coleção Viagem Através do Brasil. Depois me enfiei na leitura de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Carlos Drmummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna Érico Veríssimo, Aníbal Machado, Jorge Amado, Hemingway, Dostoievsky, Faulkner, Robert Frost e Jerzy Kosinski entre tantos outros. Da leitura para a escrita foi um passo. Meus poemas iniciais aconteceram quando tinha doze anos. De lá para cá apenas dei continuidade à vontade nata de escrever, razão pela qual escolhi o curso de Comunicação Social.
Inicialmente publiquei meus trabalhos no mimeógrafo. Livro impresso mesmo só aconteceu em 1980, com Ameríndia. Tive a honra de receber em Cuiabá, o embaixador do Peru, no Brasil, Rocca Zella, a embaixatriz e o adido cultural para o lançamento.
SMC – Você hoje é autor de vários livros de poesia: Transitoriedade Palavra; Cidades Ciudades e Os Deserdados da Sorte que temas você aborda em suas poesias através de seus livros?
Romulo Netto - “Cidades Ciudades” é um livro que escrevo sobre diversas cidades do mundo, mas das quais apenas conheço Brasília, Belo Horizonte, San Juan de Teotihuácan e México. Em “Transitoriedade Palavras” há um misto de poesia romântica (poemas escritos quando ainda era jovem) e poemas sobre um índio que sai do Xingu e vai morar debaixo de um viaduto em São Paulo, sua tristeza com a cidade grande e a saudade da selva. “Os Deserdados da Sorte”, que eu tive o prazer de receber a seguinte mensagem do poeta Manoel de Barros; Recebi Os Deserdados da Sorte. Li com agrado seus poemas. Acho que quem apresenta o poeta é a poesia que o poeta apresenta. E nisso você está apresentado. Afetuoso abraço Manoel de Barros. Este livro está dividido em três partes. Na primeira os poemas versam sobre a dor da perda irreparável, da agonia de um rio. Na segunda, apresento um sobrevivente de um mundo desprovido de sonhos. A última parte: Um Chão de Quase Coisas, surge Filisberto das Âncoras, pobre sertanejo, sem heranças e sem família, até que surge em sua vida Hemengarda Epifânia e dá-lhe um Norte, doutrinando politicamente, fazendo ver e acreditar que para o faminto a cegueira de um olho é pior que a cegueira das letras.
SMC – De forma geral qual o público que você pretende atingir com o seu trabalho? Que mensagem você quer transmitir para as pessoas através de seus escritos?
Romulo Netto - Escrevo para o público adulto, principalmente, mas estou trabalhando textos infanto-juvenis, tais como: O Mundo Encantado de Serapião Fala Mole, A Menina Sem Tranças, O Menino e a Peroba-Rosa e É Proibido Ler, todos ainda inéditos. A mensagem que procuro transmitir é a da igualdade social, da luta do bem contra o mal. Nos inéditos abordo temas como racismo e bullying.
SMC – Em que você se inspira para escrever seus livros de Contos: Contos dos Gerais; As Jagunças, Filisberto das Âncoras, Tatão Malemais, o Capador de Anjos, Tarenço, o Capanga de Lata, Não Fala Comigo! A História de um Autista; O Infinito Desespero de Ementério e Serapião Fala Mole? Tem algum livro que você destaca como o que mais se aproxima de uma história real?
Romulo Netto - Na verdade livros de contos são apenas dois: Contos dos Gerais e Serapião Fala Mole. Os outros, exceção para Não Fala Comigo! A História de um Autista e O Infinito Desespero de Ementério, são romances.. Cada capítulo é como se fosse um conto e pode ser lido em sequência ou alternadamente, o leitor não sentirá nenhuma dificuldade ou embaraço na leitura. Em todos eles há um pouco de realidade, pois que descrevo muito da minha infância. Sou sertanejo e o sertão do Gerais das Minas está presente em cada página de meus romances e contos.
SMC – Escritor Rômulo, você é Coautor do livro: Universidade Ameríndia – a moderna política indigenista de Mato Grosso, conte-nos um pouco sobre este livro, como surgiu a ideia de escrever sobre este tema?
Romulo Netto - Quando trabalhava na Superintendência de Política Indigenista, órgão da Casa Civil do Governo do Estado de Mato Grosso, por força do ofício, mantive contato com índios de diversas etnias e senti a necessidade de tentar ajudá-los. Enveredei na pesquisa sobre indígenas em outros países e fiquei fascinado com o grande número de Colleges existentes nos Estados Unidos destinados aos chamados “peles vermelhas”. Então pensei, porquê não criar no Brasil, especificamente uma universidade onde somente os indígenas fossem seus alunos? Daí juntamente com os ex-indigenistas Izanoel Sodré, Idevar Sardinha e o cacique Aritana Yawalapiti, escrevi o livro Universidade Ameríndia – a moderna política indigenista mato-grossense. Seria uma universidade ímpar, cuidei de idealizar o câmpus em formato de uma aldeia indígena, apta a receber índios das mais diversas etnias brasileiras, latino-americanas, norte-americanas, o aborígene australiano e o negro tribal africano. Nessa universidade teríamos apenas quatro cursos: Cooperativismo, Administração de Empresas Rurais Indígenas, Gestão Ambiental e Turismo. Os cursos das universidades regulares seriam feitos através de intercâmbio. A universidade contaria com um Festival Interétnico de Música e Dança, uma Feira Interétnica de Artesanato, um Programa de Etnoturismo e um Fórum Permanente de Medicina no qual faríamos constantemente o encontro dos cientistas, médicos e pesquisadores brancos com os pajés para uma constante troca de conhecimento. Contaria com a participação de observadores de laboratórios farmacêuticos, que se comprometeriam em destinar um percentual dos ganhos obtidos com patentes de remédios os quais tenham o princípio ativo originado das plantas usadas pelos indígenas. A construção da estrutura física seria financiada pelos grandes empresários do agronegócio que possuíssem seus empreendimentos em terras contíguas às reservas. Criaríamos, também, a Bienal Internacional do Livro e da Literatura Indígena, a ser realizada, pela primeira vez em Mato Grosso e depois nos outros países que se dispusessem a sediar o evento. Infelizmente não houve vontade política por parte do governo para que a ideia prosperasse.
SMC – Onde podemos comprar os seus livros?
Romulo Netto - Pela internet na Livraria Cultura, Livraria Saraiva e na própria editora Carlini & Caniato Editorial, pelo e-mail comercial@tantatinta.com.br ou carmen@tantatinta.com.br
SMC – Escritor Romulo, conte-nos sobre seus próximos projetos literários? Quais os seus objetivos como escritor?
Romulo Netto - Minha prioridade é tentar publicar os inéditos que são: Torturados – tempos de bullying, O Mundo Encantado de Serapião Fala Mole, O Último Minuto, Simplesmente Gerais, O Menino e a Peroba-Rosa, A Menina Sem Tranças, Bernardo, o Meu Cão-guia, É Proibido Ler, A Revolta dos Livros e Buritis.
Enquanto escritor meu principal objetivo é furar o bloqueio imposto pela crítica e, os poucos programas de televisão que tratam da literatura, mostrando que nos estados periféricos existe vida literária. A literatura brasileira não é feita apenas no Sul Maravilha (leia-se eixo Rio-São Paulo). O Divulga Escritor tem tudo para ser nosso porta-voz.
SMC – Você já trabalhou como presidente da Comissão Editorial na Universidade Federal de Mato Grosso, de acordo com sua experiência literária, quais as principais dificuldades que você destaca para os escritores no mercado literário brasileiro?
Romulo Netto - Não tecerei comentários sobre os escritores do Sul Maravilha. Atenho-me apenas a situação em que me encontro enquanto escritor que reside em um estado periférico e só aparece quando o assunto é o agronegócio ou desmatamento. Acho um absurdo as livrarias abocanharem de quarenta a cinquenta por cento do preço de capa do livro, enquanto o autor fica apenas com dez por cento. As editoras dos estados periféricos são pequenas e quase nunca dispõem de recursos para investir na divulgação e distribuição. Ademais o público não quer saber da produção local, quer ler o que vem de fora, não se importando com a qualidade. Estrangeiro é sinônimo de bom para a grande maioria dos leitores. Enquanto um livro de renomado autor estrangeiro começa com tiragem de até 500.000 exemplares, os nossos têm apenas 2.000. Best-seller nacional é quem vende tão apenas 10.000 exemplares.
SMC – Quais as melhorias que você citaria para o mercado literário no Brasil?
Romulo Netto - Não é que o livro seja um produto caro, nas maioria das vezes não o é. É preciso uma mudança radical na educação de base, e, principalmente familiar. A criança que cresce num lar onde ninguém lê, dificilmente adquirirá o hábito da leitura. Embora meus pais não lessem romances ou poesias, eles nos incentivaram a ler e ler. Éramos leitores vorazes. Hoje, os pais não mais compram livros para seus filhos, desde cedo dão a eles smartfones, ifones, ipads e a imensa parafernália tecnológica existente no mercado. Lembro-me de que participei de uma única feira de livro no interior de Mato Grosso. A criança estava vidrada num livro do estande da editora que me publica. Ela agarrou o livro e insistiu para que a avó o comprasse. Eis que surge a mãe e aos berros diz: não é para comprar nada. Lá em casa tem um montão de livros e ele não lê nada. Calou a pergunta: será que os livros que ela disse ter em casa foram escolhidos pelo filho ou imposto por ela? Deixemos nossas crianças, sob nossa supervisão, escolher o que querem ler, vamos incentivá-las, somente assim a médio prazo formaremos milhões de leitores.
As pequenas e médias editoras deveriam receber tratamento diferenciado por parte do governo federal, principalmente.
Elas deveriam unir forças e criar um sistema próprio de divulgação e distribuição, esperar que o governo acuda é utopia.
SMC – Pois bem, estamos chegando ao fim da entrevista, agradecemos sua participação, muito bom conhecer melhor o Escritor Romulo Nétto, que mensagem você deixa para nossos leitores?
Romulo Netto - Antes de tecer minha mensagem quero agradecer a você Shirley M. Cavalcante a oportunidade que deu a este velho jornalista e escritor fazendo a presente entrevista.
Não posso deixar de agradecer a Ramon Carlini, meu editor e incentivador, pela oportunidade que me deu abrindo as portas da Carlini & Caniato Editorial, bem assim à sua sócia Elaine Caniato, sem os dois parceiros e amigos jamais teria conseguido publicar qualquer dos meus livros.
A minha mensagem é calcada na esperança de que os leitores se multipliquem. Através da literatura podemos viajar para lugares inimagináveis. A mente nos leva através do tempo a qualquer região do planeta Terra. Cultivem a leitura como um bem precioso. Trate o livro com carinho, dele só recebemos boas lições.
Participe do projeto Divulga Escritor
segunda-feira, 24 de junho de 2013
SINHÁ MOCINHA
Desde piquititita era da pá-virada ou nascera com. Andava acompanhada pelos moleques mais sacanas e pervertidos. Um pouco mais crescida não mudou a preferência. Quanto mais maltrapilho, vagabundo ou desqualificado mais se identificava. Seus amigos não podiam demonstrar nenhum pitaco de bondade. Quem recaía praticando amores, agradecimentos, era banido de seu bando.
Passou por colégios internos em Paracatu, Patos, Araxá, Uberaba, Uberlândia, sendo expulsa de todos nas primeiras semanas de aula, antes de completar doze anos.
Aos treze ameaçou matar siá Genésia porque não tinha um xixi de segurar, mas rachadura estranha no meio das pernas.
Aos quatorze mudou de comportamento no completo. Uma manhã de agosto entrou arrepiada na cozinha da casa-grande. Siá Genésia, como de costume, comandava as cozinheiras. Sem que ninguém esperasse, tascou a pergunta desconcertante. Queria porque queria uma resposta. Não arredaria pé. Fez a mãe ajoelhar diante do fogão talequal faria se estivesse defronte do altar-mor de sua igreja preferida, prometendo jura eterna.
Veio a questão arrodeada de elogios. Já que pr’ela a mãe sabia tudo, então verborragiu de pronto, sem pestanejos, indagando o que o bom Deus colocaria no mundo em lugar da música. O inesperado da pergunta deixou siá Genésia quase tontificada, a não ser pela mão rápida em pegar graúda colher de pau desfechando dolorosa bordoada na cabeça da atrevida.
Dali pra frente Sinhá Mocinha não mais dirigiu olhares ou palavras pra siá Genésia. Emudecera de inteiro. De sua boca, na casa-grande, não se ouviu mais uma palavra até as férias, quando conheceu Gregório Tomba-Tomba. Se viu coberta de profunda apaixonite juvenil. Quando o traste aparecia na Goiás, cabelo emplastado de gumex, blusão de napa preta, golas alevantadas, ela suspirava profundo, enrubescia, molhava a calcinha, as mãos tremiam. O mundo parece que vinha abaixo. Calor imenso tomava conta de seu corpo, mal se aguentava sobre as pernas. Eta mundão sem porteira, diriam os mais velhos.
Ela só que olhava, e fugia correndo pra dentro do sobrado.
Um dia ele se aproximou de surpresa, com ramalhete amarrotado de onze-horas, suando bicas. Indefesa, Sinhá Mocinha não teve forças pra correr. Nem achou chão. Tremia como vara verde em tarde tempestuosa.
Quando menos esperava se viu agarrada. O moço estranho tascou intenso desentupidor de pia na boca. Longo beijo quase a fazendo perder o fôlego. Escândalo generalizado deixando todo mundo boquiaberto. No outro dia não se falava em outra coisa senão na beijação espalhafatosa que Gregório Tomba-Tomba deu em Mocinha desesperando te todo em todo Belarmino B. Ninguém daquelas bandas pode negar que Tomba-Tomba tinha topete. Menos de semana depois, a notícia chegou até a casa-grande. Furiosa, siá Genésia, mais que Izé Cabedelo, mal selou a montaria, se despachava pra cidade. Não quis conversa. Arrastou Sinhá Mocinha pelos cabelos, arrebanhou as outras meninas rumando pra fazenda. No caminho um latinório sem fim. Mocinha, desmilinguida, desconfortada, muda, mal ouvia o que siá Genésia gritava. Nem assim as palavras ousavam sair de sua boca. Do jeito que deixara o sobrado chegou na casa-grande.
Parece que até os cachorros foram proibidos de festejar a chegada. A casa parecia velório de tristeza sem medida. Só Izé Cabedelo se via contente com o desafio imposto pela filha. Siá Genésia de há tempão precisava enfrentamento daquele tamanho. Não podendo agradar o destempero da filha, se fez feliz por rir-se por inteiro, por dentro, enquanto amaciava uma folha de milho pra preparar o pito que acenderia prenhe de satisfações. Genésia o esconjurava arrematando que riria em grandes gargalhadas chegando o fim daquele acontecimento. No que derradeiramente talvez pudesse acobertar-se em razões.
Os dias passaram depressa como os carneirinhos que a gente conta no céu, de noite, pra chamar o sono. As férias acabaram pra meio sossego de siá Genésia.
Parece que nem bem Sinhá Mocinha voltara pra capital, estava novamente em casa.
Era costume de Izé Cabedelo festejar Santantônio atrasado toda vez que Mocinha vinha pra fazenda nas férias de meio ano. Foi como encontrou seu modo de compensar a filha que sempre perdia a semana dedicada ao santo padroeiro da Lua Cheia, principal herdade sua deixada por dona Nhaiá, mãe falecida de saudosa memória.
Após mais de três anos em completo jejum de palavras, uma mágica e morna manhã Sinhá Mocinha contestou siá Genésia. A mãe reprimindo corriqueira tarefa de Menina Morena, aprendiz de cozinheira ah! não. Sinhá Mocinha rápida, rasteira, corrigiu dizendo ser anão um homenzinho, pessoa qualquer que se recusara a crescer. Foi gargalhada geral, motivo de lágrimas encachoeiradas, renascendo alegrias na família, promovendo novas festanças na Lua Cheia. A notícia correu mundos e fundos. Chegou até ouvidos surdos, quando tinha necessidade, de Gregório Tomba-Tomba. Lá na fazenda o rasta-pé arrancaria todos do sério, prolongaria por dias, quem sabe semanas. Sua hora tinha por fim madrugado.
Quando a cidade anunciou o esvaziamento, já sabendo cada um sua ausência de eterna lembrança na mente de Izé Cabedelo, Gregório Tomba-Tomba aboletou na primeira carroça com vaga confortável, ele não nem era de pôr sua bunda em qualquer madeira. Seus traseiros careciam de confortos. Foi o que achou na condução de Nhô Bernardes, velho fofoqueiro que logo o reconheceu e tão logo se prometeu colocar em silêncio eterno, desde que fosse conhecedor dos segredos por acaso nascentes dendiante.
Eis que somente ele poderia esparramar qualquer boato surgido pela chegança em surdina de Tomba-Tomba. Trato feito, seguiram parceiros, como fossem eles de antanhos conhecimentos. Trocaram longos goles de pinga, confidências que no futuro renderiam a Gregório Tomba-Tomba encontros amorosos, furtivos com as mais recatadas viúvas ou senhoras bem-casadas. Sua sede não tinha limites. A delas também.
No que deu. Fudeu-se. Não ele, que saiu ileso, mas elas que arreganharam as pernas, abriram xuranhas. Como Divina explicaria ao Nego Bastião que o filho lá deles era loirim, loirinho da silva, se não trepara com outro. Por dúvidas, até que pudera ele pensar que o façanhoso autor daquele filho fosse Frei Norberto, vindo das Holandas para empacificar as brigas no Vale do Urucuia. Mesmo assim havera traição a ser punida com morte. E as outras? As outras como ficariam? Com chifres ou reticentes, inconformadas e irrespondíveis respostas? No que ele garanhão dos cerrados dos Gerais nem sequer sonhara. Seu divino pau duro só queria mesmo encontrar buraco fofo pra adormecer, sonhar com seus cansados anjos.
Mal chegaram na primeira cancela da fazenda, Gregório Tomba-Tomba descresceu em antigos agradecimentos e reverências. Antes bem de ser respostado já se pôs longe, modo não ser reconhecido. Ele que viera pra ser avistado preferiu buscar outros pagos, que bem eram ali ao lado, quase no final da casa, aos próximos do monjolo onde, em adonde, o barulhar da roda-d’água, o martelar constante no vai que vem das estranguladas peças daquela máquina de antigo uso encontrou guarida. Mal a festança esquentou, ele atacou, praticando seu modo de agir, fatal certeza de ser sedutor irresistível. Naqueles sertões nunca se houvera nascido um tão tremendo filho da puta conquistador. Todos concordavam sem relutança.
Sinhá Mocinha enlouqueceu peões peados, velhos coronéis que mal se mantinham sobre as pernas, moças recém-liberadas, prontas pra experimentar a novidade do sexo entre iguais. Tudo na mais perfeita liberdade, que nos cerrados até a aberração parece normal. E ele ali na escuita, na espreita, esperando vagar seu momento de ataque. Nem bem fora assuntadamente combinado, o final se aconteceria por igual.
Num cochilo de Belarmino B., Gregório Tomba-Tomba se aproximou silencioso, por detrás, enlaçando Sinhá Mocinha, fungando no seu cangote, causando arrepios, mais que desfalecendo, semimorta de amores e destemperos, ela em sua virginal inocência se deixou levar pelos beijos ardentes do homem sonhado pra companheiro de uma vida inteira. No crescer das luzes, no justo momento em que peões atiçavam as brasas colocando mais angico-vermelho sobre o tapete ardente, foi em daí que a visage tomou corpo, projetando Sinhá Mocinha e Gregório no mais fogoso dos agarramentos.
Vendo entre a fogueira o povaréu aplaudindo aquele teatro muquetrefe, Izé Cabedelo teve um treco, ficou meio zureta das cabeça, saiu às tontas chamando o diabo de Deus, e Nosso Senhor Cristo Jesus do coisa dos avessos. Perdera porcertamente sua inteira razão. Belarmino B. puxou as armas atirando pro alto. Num salto de sapo-cururu Gregório Tomba-Tomba sumiu na imensidão do escuro, enquanto todo mundo, cada bicho de dois pés acudia siá Genésia loucamente desmaiada por desesperos de suposta avozice prematura.
sexta-feira, 14 de junho de 2013
DIDÃO
Já fazia calor quando os primeiros raios de sol pincelaram com aquarela davinciana as poucas nuvens que pairavam mansas por sobre as águas verde-lodo do São Marcos, meio Gerais, meio Goiás.
Arreliado, Didão fincou os pés no chão ainda encharcado pela última chuvarada. A cara vermelha pegando fogo de tanta raiva provocada por sandices de Zé do Corgo. O patrão pegou corda acreditando que logo ele, Didão, pau-pra-toda-obra, pudesse ser um vendido traidor a cuspir no prato que sempre comera do bom, do melhor.
— Nhor que não! Juro por meu santim que não fiz nada. Sou apenas amansador de burro brabo. Monto nele sem medo, quebro o freio com força uma vez pras esquerdas outra pras direitas, enfio o esporão nas ancas que é pra ele distinguir quem está no comando. Na segunda montada, só um leve toque na garupa, puxãozinho no freio, nadica de nada, um pitaco, ele obedece sem zanga, sem sofrer cansaço. Assim venho amansando cavalos, burros desde que me entendo por gente, sempre nas terras secas do meu patrão – Coronel Elesbão. Nhor que não! Sou lá homem de fazer essas criaturas do bom Deus padecer na ponta da espora? Tudo são invencionices. Ciumaria de quem não sabe pelejar a vida botando olho gordo no bem querer dos corretos.
Quem não se lembra de quando folguei a peonada vesprando Santantônio? Todo mundo desembestou rumo a Ingazeiras dando tiros ao léu, invadindo o povoado de uma rua só, escandalizando recatadas mulheres ou ainda quando um peão desaforado agarrou à força Rosinha, finura de moça-donzela de bons costumes, tão recolhida em seus pudores que só deixava à mostra as mãos finas delicadas – verdadeira pintura –, os pés além do rosto dono de dois olhos verdes mais verdes que broto de capim navalha após a primeira chuva primaveril.
Logo ele que pra manter as aparências apoiou a greve de dona Orobó, mulher do vendeiro Chico Fumaça, maior autoridade de Ingazeiras quando cismou que não queria ter as casas com as portas dando de frente pras das muié-damas. Brava, decretou greve, obrigou todas as mulheres a fechar as pernas em grave greve de sexo. Durou mais de mês, mas no fim lacraram as portas que se abriam pra rua única, as mudaram pro fundo olhando cada uma a morraria distante, o poço d’água bem doce, fresquinha a poucos passos da nova porta.
Não fosse sua posição de firmeza, Chico Fumaça teria acabado com a greve no grito, na marra. Justa. Justíssima a reivindicação das mulheres de bem.
Agora ele, acusado de bandear pro lado de Zeca Fortuna, inimigo jurado de morte de seu patrão Coronel Elesbão. Vingança é um prato que se come frio. Quando o coronel resolvesse destirar a bunda dos sofás da casa grande da capital retornando ao sertão, poria tudo em pratos limpos. Nhor que sim! Que ele não prega os olhos com desconfianças rondando sua cabeça. Nem havera-de... Queria que um raio dos graúdos o partisse ao meio se debandasse pro lado daquele um. Tinhoso. Falso como mulher de político em véspera de eleição. Apois!
Nenum era pra ser daquele jeito sua vingança. Mais trinta anos trabalhasse sol-a-sol, ainda assim Coronel Elesbão continuaria acreditando nas invencionices de Zé do Corgo. Dianho que ele não entendia nadica desses amores desrevelados à queima-roupa: quem bandeara proutro lado fora ele – o coronel – parece que nasceu com o dito cujo dentro do corpo. Não era de estranhar sua postura, seus medos.
Só então Didão se apercebeu que estava jurado de morte. Guardava tantos segredos, por eles, não merecia continuar vivendo.
Entendia. Conhecia de tudo naquele cerrado; cada curva no caminho, cada galho de pau quebrado na estrada ou entre os arbustos denunciava a seus olhos todos os perigos, todos os mistérios.
Assim que, aliviando o calor sentado debaixo de um buritizeiro com os pés na água fria da veredinha, viu ao longe um dois, três reflexos. Poderia não ser nada, mas também poderia anunciar jagunços em tocaia: ele, a vítima, já se antecipando em raivas, espumando pela boca, soltando fogo pelas ventas.
Decidiu não esperar o ataque. Desarreou o cavalo, deixando-o livre a pastar; quebrou duas curvas pras esquerdas. Depois de duas horas andando a sol pleno, penetrou num pedaço de cerrado podre; sambaibeiras e pequizeiros ladeados de pequena morraria bem ao pé da curva da Cacunda Velha. Afrouxados, estavam lá três capangas do Coronel Elesbão, atocaiados, sabedores eles, os três de seu caminho. O sangue ferveu na cabeça. Só teve forças pra gritar:
— Estão me assuntando?! — No mesmo instante, a parabélum cuspiu bala. Mal tiveram tempo de virar a cabeça, foram mortalmente feridos.
Didão puxou a aba do chapéu em sinal de respeito aos recém-defuntos. Aprumou o corpo, pegou os animais selados, descansados, precisava escondê-los longe dos olhos da jagunçada do Coronel Elesbão.
Resolveu buscar guarida num esconderijo seguro. Da última vez que se viu obrigado a matar quando os bate-paus do delegado Simplício fizeram serão nas imensas terras do coronel, nem pestanejou. Rumou pras bandas da Serra da Aldeia bem perto do ribeirão São Pedro; naquele fim de mundo, descobriu a Caverna da Onça. Onça mesmo fazia já um quartel de século que elas tinham desaparecido a custo de muito cachorro brabo, zagaia, balas de parabélum, winchester de papo-amarelo. Construiu ali pequena fortaleza. Pra não ser descoberto, quase não acendia fogo. Vivia mais de comer frutas ou mascar nacos de carne-seca. Luxo mesmo só de quando em vez na chegada do frio, que subia pela morraria carregado por vento incessante, cortante, doído. Aí não tinha gueriguéri: pegava uns gravetos, acendia seu binga, velho companheiro, sentia o fogo crepitar levemente; enquanto assava um pernil de cateto, ia rememorando sua vida. Não era senhor de si. O coronel o tinha preso. A hora que bem entendesse, ou matava ou entregava pro doutor delegado. Confiante que ninguém o conhecia, passou por alguns sítios perto da Lagoa de Santo Antonio onde barganhou um bornal de couro por um galo e duas galinhas caipiras; tinha tenção de dar início a um criame de aves dentro da caverna. Seria a economia da sobrevivência. Parando aqui, acolá um mês, depois se viu defronte da Serra da Aldeia após dois estirões a Caverna da Onça: não dava sinal de que uma viv’alma tivesse feito pousada, por pequena que fosse a demora. Seu segredo ainda era segredo. Só seu!
A velha rede estava no lugar que deixara há muitos meses. O fogão de pedra com sua inseparável panela, duas ou três latas onde punha mantimentos.
Desceu a bruaca do cavalo cansado desarriando-o em seguida, pegando com cuidado a manta de carne colocada debaixo do baixeiro, espetando num pedaço de pau em boa altura pra que nenhum bicho pudesse roubar sua refeição dos próximos dias. Amarrou a criação na estaca da rede, depois prepararia um galinheiro.
Desacostumado a tomar banho o que mais deseja agora é pôr o corpo na rede, mordiscar levemente um bom bife de carne salgada pelo suor do cavalo, saborear suave talagada da pinga Segura o Tombo, a predileta dos vaqueiros do Paracatu. Deixou- se levar pelos sonhos desencontrados, a vingança atravessada na garanta. Estava selado. O coronel aguardasse. Não tinha muita pressa.
De vez em vez, se arriscava indo a alguma corrutela. Sentado, ouvia conversas; só espiava, não perguntava. Trouxe linha, anzol. Já se sentia novamente quase homem livre. Variava sempre de local de pescaria, ora no ribeirão São Pedro ora no Aldeia que era pra não encontrar nenhum bicho homem desconfiado perguntador.
Já ia pra meses que ele estava ali. Escondendo, aparecendo furtivo. O criatório de galinha rendera perto de dez frangas, seis frangos. Tudo tinha dosagem certa. Os frangos iriam pra panela. As frangas virariam poedeiras; quando pensava, lambia os beiços. Gostava de beber ovo recém-botado ainda quente pelo calor das tripas da galinha. Dois ou três de uma vez só. Um dia, acordou destrambelhado, com a avó atrás do toco. Tinha fome, queria comer comida caseira, os seus dotes culinários eram muito curtos. Fechou os olhos, se viu moleque no fundo do quintal de sua casa. Donana segurava a velha galinha pedrês pelos pés enquanto arrumava a tigela. Assistiu a toda a cena. Dela não esqueceria jamais.
Acendeu o fogo pôs água pra ferver no latão grande, afiou cuidadoso a faca. Sobrepesou dois frangos, escolheu o de pescoço pelado; pegou a cuia, prendeu entre as pernas já sentado num tamborete; deu duas batidas no pescoço do frangote que era pro sangue subir, cortou a veia, aparando o borbotão vermelho denso.
Pôs o sangue pra descansar com algumas gotas de limão, pois não tinha vinagre. Depenou o frango semi-vivo. Decepou a cabeça, sapecou as penugens, foi pra beira da vereda abrir a ave, separou as iguarias: fígado, coração, moela seriam cozidos em separado. Destrinchou pescoço, peito, asas, coxa, santantônio, sobrecu, pés. Espremeu um limão galego, jogou sal, algumas folhas de manjericão, cebolinha, deixando marinar. Esquentou a panela com banha de piaba, jogando na gordura quente os pedaços, dourando cada parte, cobrindo depois com água fervente. O cheiro suave recendeu pela caverna. Mexeu duas vezes com improvisada colher de pau; no borbulhar da água, viu que era chegado o momento de jogar o sangue. Remexeu a cuia algumas vezes, colocando um pouco de farinha de mandioca para engrossar o molho. Derramou de uma só vez na panela fervendo, tampando em seguida. Coração, fígado, moela cozidos eram seu tira-gosto. Breve beiçada de cachaça. Agora, sua fome poderia esperar.
Duas horas depois, as partes do frango pareciam ter derretido no grosso, cheiroso molho pardo.
Abastecido, refestelou na rede; roncou, sonhou.
Apaziguada a primeira temporada das chuvas, pressentiu que o natal rondava seus dias, véspera das andanças solitárias do Coronel Elesbão, que escondidinho se afogava nos seios fartos da brejeira Terta. Nada mais justo. Aquele seria o momento do acerto de contas. Esperaria por ele bem próximo da curva do Ó. Uma bala, nem um ai ou ui!
Penou cinco dias debaixo de um sol capaz de fazer inveja ao fogo do inferno, nada do homem aparecer. Mudara de amante ou de caminho? No sexto dia, a recompensa. Lá vinha ele em seu elegante terno de linho branco, imenso chapéu Panamá, soltando intensas baforadas do inseparável palheiro. Não! Um tiro era muito pouco. Decidiu. Fez mira cuidadoso. Prendeu a respiração. A bala certeira cravou na cabeça do cavalo. Desgovernado, desabou no chão caindo por sobre uma das pernas do coronel.
Sem pressa, Didão acendeu um pito, tomou ligeiro gole de cachaça, limpando os beiços com as costas das mãos. Nem sôfrego nem atabalhoado, escorregou pela pedra do Lagarto ganhando a curva do Ó. Viu o terror estampado na cara do Coronel Elesbão.
Desembainhou o punhal de prata. Deu apenas uma espetada de cinco centímetros no coração. O homem estrebuchou. Didão puxou a aba do chapéu...
Por Romulo Nétto - Jornalista e Escritor
REVOLTOSOS
Minha caduquice faz com que as lembranças se percam no tempo, remexendo a história, contando-a pela metade.
O ano talvez se situe nos trinta, quando a coluna de revoltosos invadiu a cidade, tomando posse da prefeitura, delegacia, correios.
O uniforme deles, um tanto desbotado, ainda denunciava pálida cor de brim cáqui.
Não vieram em boa paz. Entravam casa adentro remexendo baús, latas de mantimentos, e revolvendo colchões, pois pensavam que todo mundo guardava lá seus tostões.
A comida nem cozida estava iam eles destampando panelas, queimando os dedos, palmas das mãos nos pedaços de costelinhas de porco ou coxas de galinhas. Davam a entender que havia meses não sentiam o cheiro de boa comida, incapazes de esperar a refeição ficar pronta comiam como selvagens.
Depois, buscavam o descanso nas redes armadas nas varandas, o fuzil carregado sempre às mãos; dormiam com um olho aberto, o outro fechado. Coisa do demo.
Quando bêbados, amontoavam as pessoas na praça da Matriz espancando-as a golpes de coronhadas dos pesados fuzis. Queriam porque queriam saber onde se esconderam o doutor-delegado e o juiz de direito. Somente se acalmavam quando padre Bento saía da Matriz de Santo Antônio jurando excomungá-los, condenando-os ao fogo eterno dos quintos dos infernos. Temerosos se aquietavam, permitindo que as famílias retornassem aos lares, mas, quando o amanhã renascesse, o primeiro deles lavasse a boca com o matinal gole de cachaça, a tortura recomeçava.
Tio João, irmão mais moço de papai, quis dar uma de valente: se meteu em farda de soldado, ficava na porta da casa do vovô, ora aparecendo ora se escondendo. A cena foi se repetindo horas, dias sem fim. O ato de rebeldia enchera de furor o mais exímio atirador revoltoso. Ele estava sentado num banco tosco à frente dos Correios, de guarda; de quando em vez, pegava o fuzil, fazia a mira, pensava duas vezes, ao final desistia de apertar o dedo no gatilho.
Tio João continuava praticando impune sua fanfarronice até que, num sábado pela manhã, nem bem eram oito horas, começou seu jogo de esconde-esconde. Talvez o revoltoso já tivesse mamado sua primeira grande dose de cachaça, por isso o gesto. Mirou calmo, prendeu a respiração, apertou o gatilho. A bala certeira explodiu no meio da testa de tio João.
O atirador viu o corpo cair. Caminhou a passos largos para certificar que o “soldado” estava mesmo morto; dois ou três minutos depois, estava diante do cadáver ensangüentado. Meu pai ajuntava os miolos do irmão sem entender nada.
O revoltoso apenas disse:
— Num gostou? Se está descontente, ainda tenho munição na agulha.
Papai nada disse. Recolheu no chapéu o que pôde, chorou por dentro a morte do irmão, parte do preço pago por uma revolução que ninguém naquelas bandas até então conseguira descortinar a razão.
por Romulo Nétto - jornalista e escritor
segunda-feira, 10 de junho de 2013
BELARMINO B.
Ficava fincado de plantão. Talequal pastor das moças, guarda-cabaços pra modo ninguém se apresentar em excessivas ousadias quando as meninas em férias vinham da capital.
Belarmino B. pior que o coisa-ruim. Mas dizia a si mesmo que cumpria ordens. Maldosas, as crianças diziam que o B. era de bundão. Em altos gritos passavam diante do sobradinho no largo do Santana, onde sabiam da presença de Sinhá Mocinha gritando, sem cerimônia, Belarmino Bundão. Ele furioso, babando fel, soltando fogo pelas ventas pegava o rebenque, a pistola, ao mesmo tempo que estalava o chicote, atirava a esmo tentando espantar quem desde minutos antes tinha se escafedido. Só pra mostrar valentia, serventia.
Passava horas diante do espelho penteando o bigode-escovinha, as sobrancelhas, cavanhaque, costeletas, a vasta cabeleira, se gabando do pretume do cabelo emplastado por grossa camada de glostora.
Chorava no seu recolhimento por saber-se bonito. Só que alguns olhos tortos não decifraram sua beleza, principalmente siá Genésia, aquela flor de maio, tão proximal da própria belezura dele, mas mesmo o vendo todos os dias não se encantecia de Belarmino B. causando imensa tristeza.
Dizia que o ano tem muitos dias, num deles, quem sabe, siá Genesia se apaixonaria.
Enquanto a paixão não acontecia, buscava proteger Sinhá Mocinha com suas inúmeras convidadas.
Até que o pior aconteceu. Izé Cabedelo não pôs culpa. Reconheceu que a filha era tão fogosa como sua Genésia, também lhe saíra a ele, que não desperdiçava ocasião pra trepar. Tinha comido mocinhas, mulheres casadas, viúvas, até uma freira caiu em sua lábia. Não gostou apenas de quem foi comido por Sinhá Mocinha. Qualquer um, menos aquele traste. O mal estava feito. Agora era se resguardar evitando que o acontecido caísse na boca do povo. Aloitasse nas conversas das beatas o nome da menina valia nada. Só com o sangue haveria paga. Isto Izé Cabedelo queria evitar de maneiras todas. A seu modo amava Sinhá Mocinha. Era turrão, duro na queda, mas não alimentava saber a filha envolvida em nenhuma barafunda.
Belarmino B. tinha agora a incumbência de ficar entre ela e Gregório Tomba-Tomba, não permitindo aproximações, rela-relas desnecessários. Foi um namoro sem graça pra quem já sabia fazer muito mais na cama. O casal acatou a decisão de Izé Cabedelo. Não muito. Houve um momento em que o tesão falou mais alto. Daí eles começaram a dormir juntos, pra desespero de Belarmino B. mais as desesperanças dos pais de Sinhá Mocinha.
Acabada a função de guarda-cabaços de Belarmino B., iniciava devastadora vida de crimes e barbaridades. Desconsolado por não ter protegido Mocinha, desatinou em peregrinação por todo Vale do Urucuia, sangrando na peixeira, furando na bala todo ser vivente que tivesse desonrado qualquer rapariga.
Se deu ao luxo de beber o sangue dos desinfelizes, assou corações como fossem carne do mais precioso churrasco. Seu nome correu cerrado, grimpou sertões. Nunca ninguém o pegou com a boca na botija. Pôde por diversas vezes retornar à fazenda sem que nele lançassem as mais pequeninas suspeitas.
Belarmino B. não desdeixava de seu lado o amor por siá Genésia. Continuava se arrumando solene diante de um espelho quase sem aço, de tanto uso. Via refletida a imagem encantadora que nunca permitia fisgar a mulher amada. Teve arroubos de loucura, mas se manteve recatado. Se guardando em sofrido silêncio, sem pensar em deitar com outra mulher. Quando se masturbava na mais escondida das veredas, ainda assim ficava apavorado temendo alguém vê-lo em seu solitário desespero, ou quem sabe adivinhando pensamentos, vendo que ele via, no momento de tensão, tesão maior, o corpo moreno, nu, seios duros, empinados de siá Genésia, quebrando o encanto da imaginária posse.
Mais que nunca Belarmino B. se sentia um órfão de esperanças.
Saiu da água fria, revigorante, como deixasse pra trás o peso de passados pesados, inquisidores, preocupantes, malvividos e descortinados. Pra ele era novo homem que se redescobria na posse ilusória de uma mulher que suas rudes mãos de capanga jamais tocariam. Mesmo sentindo esse destino, permitiu largo sorriso desprovido de dor, carregado em assanhamentos. Tão difícil sua vida, tão estranho seu caminho, mas ele sabia detentor de todos os segredos das curvas do coração, por isso mesmo não deixava que suas angústias aflorassem na cara a marca pela indomável feiura, macilenta cor.
Vez por outra em sinal de brincadeira Izé Cabedelo mandava que ele acompanhasse os peões em comitiva. Pro patrão era jogo de descobrir lealdades, pra ele certeira certeza de no lombo do cavalo baio poder sonhar desavergonhadamente com sua príncipa.
Voltava cheio das forças, alegre. Brincalhão. Sem no entanto encontrar na cara de siá Genésia menor brilho de contentamento por seu retorno. Acostumado a sofrer ,nem mais se dava ao luxo de chorar o desprezo.
A olhos vistos admirava o bucho de Sinhá Mocinha crescer. Via ali o neto-torto que poderia ser muito bem seu. Balançava a cabeça em reprovação quando tinha essas súbitas recaídas, sem esmorecer, que o sonho sempre havera-de ser companheiro de seu peito.
Como essas, todas outras esquisitices, escalafobetices, acompanharam seguidamente os pensamentos, quando sozinho ou peladamente solitário no burburinho dos peões em comitiva.
Tinha esperanças que um dia a príncipa reinaria dona de seu mundo, embora soubesse que futuro é um fiapo de tempo que, mal chega, vira passado.
Belarmino B. fingidor de felicidades foi se indo, esparramando sorrisos pelos imensos caminhos tortos dos cerrados dos Gerais.
Romulo Nétto - Jornalista e Escritor
domingo, 9 de junho de 2013
SIÁ GENÉSIA
Mal desapearam amarrando as rédeas das montarias no primeiro pé de pau, um forte cheiro de enxofre açucarado tomou conta das redondezas da casa-grande.
Nhá Parteira sentiu profundo calafrio percorrer o espinhaço. Se benzeu repetidas vezes, rezando baixinho suas herdadas rezas de espanta coisa-ruim. Pra ela ali tinha coisa feita, pesada, de difícil desmanche.
Mas quem havera-de mal querer Sinhá Mocinha? Tão doce, tão nova, como pode ela ser causadora de maldades pra outras pessoas, que não seja apenas o mal do amor não corespondido?
Siá Genésia fincou dois palmos de sorrisos na cara sulcada por frescos sofrimentos. Recebeu de bom grado Nhá Parteira e Plug, levando-os até a cozinha. Sorriu satisfeita como pressentisse cheiro de novidade no ar.
Pr’ela, Nhá Parteira trazia escondido um acontecido que ainda não conseguira desvendar.
Pra Nhá Parteira pairava no ar certo odor de desconfiança.
Mal entrou na imensa cozinha, o calor infernal tomou conta de tudo. Nhá Parteira sussurrou aos meus ouvidos que ali cada palmo de chão cheirava trepada, da boa, feita com paixão, durante horas. Perguntou se pousara antes naquela fazenda, causando em mim estranheza, raiva prematura, perturbadora. Seu faro de bruxa tinha pressentido fodelança futura no ar.
Siá Genésia chamou, batendo palmas seus empregados. Um deles me levou até o banheiro, onde pude deixar a água fria escorrer pelo corpo durante incontáveis minutos.
Por seu lado Nhá Parteira conversou longamente com Sinhá Mocinha, sempre intermediada pelas atenções de siá Genésia. Mas o pensamento das duas escapava dali. Uma se lembrando das trepações no mato, a descoberta do homem que a penetrara em todos os lugares. A outra entresonhando possibilidades de se sentir mulher desejada novamente, sendo possuída selvagemente por aquela perdição de capanga surgido em sua vida repentino, sem aviso, sem que ela ousasse esperar ou sonhar. Mas que no fundo de suas carnes vibrantes soube que mais cedo ou mais tarde aconteceria. Pois que sem ninguém pensasse se assucedeu de pronto, religiosamente.
Naquela noite não faria nada. Não estava de todo preparada. Melhor deixar o bom arrasta-pé comemorar a chegança de Nhá Parteira pra dar o bote depois. Foi assim que a noite varou em bordejar da oito-baixos conduzida por Neguinha Prampam, acompanhada por Dentuça nas cantorias e Bem-te-vi na viola. Foram tantos goles, uma engolição sem fim dos quitutes mais ricos que em nenhum cerrado perdido daquela porção dos Gerais dantes nunca se houvera notícias.
Nessa inesperada noite, ninguém atacou ninguém. Izé Cabedelo sossegou seu facho não bolinando nenhuma garotinha, velha especialidade sua.
Nhá Parteira se contentou em olhar de soslaio pro seu príncipe que já desconfiava não tão bem-encantado, mas, segundo criteriosos pensamentos, ainda seu. Se divertiu contando causos, distraindo ao lado do fogão a fogosa Genésia, a buchuda Mocinha. Bebeu todos os goles que sua vida enciumada pôde permitir naquela hora, sem achar desprezada ou diminuída.
Era de seu conhecer que novos rumos aconteceriam dali em diante, queria entregar-se inteiramente lúcida para cada momento das brigas. Sua mente jamais a dirigiria pra outras estradas.
Siá Genésia apazigou seus sorrisos se contentando com o marasmo do trabalho na cozinha. Só de longe em longe ouvia os risos de jagunços, capangas, cobras e lagartos.
Sua xandanga pegava fogo a ponto de obrigá-la a ir ao banheiro, onde retirou a calcinha de rendas que incomodava seu grelo entumescido. Voltou apressada sem descobrir desconfianças perdidas no ar. Tinha o controle da noite em suas mãos. Não permitira que ninguém o roubasse. Continuou festeira sem deixar de servir os convidados lá de fora, como acontecia desde que aquela fazenda fora aberta. Izé Cabedelo se gabava de ser o maior recebedor de visitantes do Vale do Urucuia, destinando grande porção da cachaça produzida em seus alambiques para presentear os chegantes. Quanto maior o consumo, maior sua alegria. Todos se encontravam ali unidos, reunidos em festança que atravessaria os cerrados, sertões, veredas, se projetando em inesperados futuros.
Siá Genésia era bem parte de tudo isso. Ninguém dava um passo, por mais pequenino que fosse sem o dedo de sua maquinação.
Não escondeu a avantajada pança de Sinhá Mocinha, nem a ausência de Gregório Tomba-Tomba. Os desavisados podem ler que já era carta fora do baralho, bem a gosto de Izé Cabedelo, a quem o genro tão era somente um caçador de dotes que ali nas beiras do Urucuia fincou suas unhas macilentas à cata da mais rica jovem e inocente casadoura. Foi no que deparou com Sinhá Mocinha. Inexperiente, sonhadora, facilmente seduzível pelo moço da cidade grande, onde por deveras pode ter praticado com bastança de sucesso seu plano, pois que engavetou rápida gravidez em Sinhá Mocinha, sem necessitar ou provocar desconcertante visita ao delegado Porciúnculo Destrão.
Todos aceitaram com as pás-viradas o ajuntamento dela. Nem num era pra não ser diferente. Agora naquela hora avançada, quando a lua prometia inteirar total rebeldia, cheiando na noite seguinte, desconhecendo as fumaças das queimadas das matarias, tudo se conformaria em estreitas, estranhas mudanças, do vento e do tempo. Lá fora diante da fogueira, da claridade das brasas, recém-somada pela lua que invadira o terreno da ventania arrastando, de longe, um cinzento de há tempos esperado, a festança prosseguia como misturando outonos e primaveras, passados e presentes, coroando num belo chifre futuro que por certo os maldosos pinchariam na testa de Izé Cabedelo. Será que ele viveria nas indiferenças? Ou será que ele sentiria o calor dos cornos crescendo, mesmo que imaginário, por sobre a testa brilhante? Se aconteceu, o sentir morreu ali. Nunca ninguém ousou tocar no assunto, bêbado ou são. Mas que o chifre cresceu, ah! Pois que bom! Cresceu de imenso tamanho que o corpo de Izé Cabedelo começou a curvar nos meses seguintes sem que o falatório aumentasse ou diminuísse.
Siá Genésia nem não se apreocupou com nada. Naquele justo momento ela se destacava em saber seus modos de atender os que festejavam as presenças de Nhá Parteira ladeada por Plug. O de antes descrito era apenas fruto de pensamentos futuros e tão só isso.
Quando o dia aconteceu com seu causticante sol, muitos ainda bebidos, outros já desbebidos, dormitavam na grama orvalhada do imenso jardim de palmeiras imperiais, ipês amarelos, roxos, brancos, quaresmeiras desdormidas florescendo em frouxas flores matinais, trazendo aos olhos dos visitantes o encantamento de um cenário que só os loucos eram privilegiados de assistir.
Mas siá Genésia bem que queria outro final pra sua história. Não se viu, nem se via coberta por aquele estranho vestido que Izé Cabedelo trouxera de Belzonte. Sonhara outros sonhos, encabeçara novos voos que seu corpo ainda possuído por carnes duras, firmes, permitiam voar. Ela era dona de suas fuças, cansada das fudelanças de papai-mamãe que sabidamente sabia nas conversas travadas, traçadas com tantas outras sinhás em suas visitas de recíprocas voltas. Queria mais. Visualizava que mais hora menos hora alguém chegaria pra lhe ensinar com a língua e o pau duro o verdadeiro caminho do gozo supremo.
Siá Genésia determinou que os vaqueiros escolhessem um boi bem gordo pra matar, dando início às festanças do nascimento do primeiro neto. Foi um deus nos acuda de tanto movimento, primeiro no curral, depois na cozinha, por fim no pátio da casa-grande, onde cavucaram o chão enchendo de grossas achas de angico-vermelho formando intenso braseiro. As costelas cozinhariam por indefinidas horas, no fogo do chão, enquanto homens e mulheres descascavam mandiocas, catavam feijão, pilavam carne seca pro preparo de deliciosa paçoca de pilão.
Siá Genésia sabia que o neto demoraria ainda uma semana pra aparecer. Ela não podia desconvidar ninguém, então que todos se habilitassem com seus préstimos no preparo das longas refeições. Tudo era mais por distração que necessidade,. Ocupando os visitantes, eles não ficariam como barata-tonta bisbilhotando quartos, porões e outras dependências da casa-grande, nem se dariam ao trabalho de atentar mocinhas e mocinhos nas casas dos agregados. Bulir com filha de peão é como meter a mão em caixa de marimbondo, pensava ela.
Por dias deixou de queimar pestanas sobre Plug. Esqueceu por momentos em como tê-lo por cima dela em vigorosas estocadas. Adiou seus planos, nada mais.
Todo mundo errou em seus cálculos. O forte garoto só veio à luz no décimo dia após a chegada de Nhá Parteira, pra inteira paz, alegria de Izé Cabedelo com siá Genésia. A partir daí as festas recomeçariam. Devidamente carimbados como avós, Izé e Genésia liberaram as frangas. Estavam prontos pro ataque.
O décimo dia de festa completou o ciclo com o batizado de Sinfrônio Cabedelo. Saído não se sabe de onde, apareceu meio desconfiado, com ares de quem tinha ido apenas procurar um montinho pra modo de dar uma cagadinha, Gregório Tomba-Tomba levou esculhambação a perder de vista. Só mesmo os bichos ou animais de criação não soltaram xingamentos. Mas burros e jumentos relincharam surdamente como desaprovassem seu chá de sumiço. Pra muitos ele não fizera falta. Uns até detestaram o retorno, pois estavam ensaiando investidas pro lado de Sinhá Mocinha. Além do dote, ela era muito bonita. Pedaço de mau caminho pra ser precipitadamente descartada.
Izé Cabedelo cofiou a barba, retorceu bigodes, esfregou as mãos como esperasse mortal disputa entre o genro e algum pretendente. Pois quê.
Siá Genésia torceu o nariz como se estivesse diante de ave de mau agouro.
Não deixaram Gregório Tomba-Tomba pegar o filho no colo. Saiu murcho como chegou. Entrou mudo, saindo calado. O caminho fora deliberadamente escancarado. Qualquer simpatizante responsável seria bem-aceito na vida de Sinhá Mocinha. O leilão estava aberto. O mais prendado, atencioso e gentil, arremataria a prenda. Se fosse do agrado de Izé Cabedelo mais siá Genésia, melhor ainda.
A música correu solta por três noites e três dias. Foi um rela-bucho imemorável. Muita prenhez ocorreu no meio do mato, nos galpões de guarda de mantimentos.
O casal festeiro continuava seu jejum sexual.
Siá Genésia mijava fogo de tanta vontade de entregar sua xuranha pra Plug. Se escondia no quarto por horas, se apalpando, se esfregando num grosso pepino que de quando em onde deixava penetrar numa firme e sentida estocada. Masturbar-se virou rotina. Borrifava a cama com leite de colônia pra disfarçar o bodum do sexo malfeito e solitário. Enquanto isso continuou pensando em como faria para comer Plug.
Uma semana depois do batizado Sinhá Mocinha começou a perder o sono. Não dormia nem de dia nem pela noite. O socorro veio pelas mãos de Plug que ofereceu um chá feito de plantas encontradas cerrado adentro. Era forte. Carecia ser enfraquecido com bastante água. Siá Genésia viu ali a oportunidade de realizar seus devaneios. Tinha ciúme danado das licoreiras de cristal importado, de seus conteúdos. Passava semanas fazendo as mais diversas receitas. A preferida era a de jabuticaba. Quando retirava a tampa o perfume adocicado se esparramava pelo salão de festas, inebriando visitantes que imploravam uma segunda dose. Nessa noite as coisas seriam diferentes, bem diferentes.
Desde o meio-dia a leitoa já se encontrava no forno de barro sendo assada devagarinho, como manda a cozinha dos Gerais. O couro ficaria pururuca, estalando ao primeiro toque da faca que trincharia os quartos dianteiros e traseiros. Delícia divina. Desgranhenta perdição.
Pra modo não errar na dose, siá Genésia experimentou a poção num amassado de farelo de arroz. Tinha separado bom cachaço pra fazer o teste. Tiro e queda. Cinco minutos depois de comer a porção, o porco dobrou os joelhos caindo em repentino sono profundo. Passou a noite em roncos. Siá Genésia não cabia em si de contentamentos. O peixe morre pela boca. Pela boca seus empregados e visitantes dormirão.
Mal o relógio da sala expulsou o cuco anunciando duas da tarde, Siá Genésia dispensou os serviçais que moravam mais longe, cobrindo com pequenos mimos, tudo corriqueiro pra no depois não chamar atenção. Ficaram somente os imprescindíveis pra que o jantar fosse preparado, servido como assuntara.
Sinhá Mocinha dormiu cedo, esgotada pelo suga-suga do filho, ajudada sem cerimônia com a dose dupla daquela poção que acalmava os ânimos permitindo doces sonhos. Às oito da noite a imensa mesa da sala de jantar da casa-grande estava posta. Ao todo dez pessoas participariam da comilança. Siá Genésia pensadamente mal tocou na comida. Plug mordiscou rodelas de tomate, provou pequeno pedaço de pururuca regado com molho apimentado, bem a seu gosto. Dizia ele por mor de dar maior tesão, como se antevisse o que o esperava.
Aforante Plug, siá Genésia, cada um se lambuzava mais que outro, como se o mundo fosse acabar logo depois, em perdição de comida e lambanças que tais.
Ela, serena, se ria por dentro seu riso de vitória, contentamento por saber que todos recordariam anos a fio daquela noite, sem no entanto se alembrar do sono duro imposto sabe-se lá como!
Nem Izé Cabedelo estranhou quando ela se levantou indo servir o licor. Passou como normal, não merecendo destaque ou desconfianças. Ela era assim, dona de fazer o inesperado. Agrado supremo pra visitantes.
Isaura, mulher de Tonhão Carcará, lambeu os beiços estalando no depois a língua estridentemente. Mal conseguiu pedir nova dose, se esparramando no chão. Pouco depois só restaram sóbrios Plug, siá Genésia. De assustado ele nem viu quando foi arrastado até o porão, onde, mal entrou, viu a porta ser ruidosamente fechada a sete chaves. Num relance estava nu. Ela implorando que rasgasse suas roupas, chupasse sua xuranha afogueada, enquanto engoliria o mastro de sua bandeira flamejante. Foi uma chupação de mais de horas onde cada parceiro encheu a boca com o suco quente do corpo do outro.
Plug já perdera a conta das muié-damas que vagaram por sua cama. Mas aquela ali tinha vulcões escondidos em cada buraco do corpo. E foi por baixo, foi por cima sem cansaço, repetidas vezes. Quando o sol ameaçou surgir, ela pediu uma última vez. Pegou com as duas mãos o peru em brasa do amante, fazendo com que sua xandanga o comesse de uma só vez. Um cheiro de carne assada invadiu o imenso porão. Plug acariciou um dos seios de siá Genésia, duros, durinhos como um coco-babaçu. Sugou o mamilo com gosto, mordicou levemente, enquanto ela subia e descia, frenética cavalgada, transpirando prazer, satisfação, colocando um dedo no grelo, lambendo depois, saboreando seu próprio sumo.
Finalmente o dia antemanhou. Siá Genésia pediu a Plug que a possuísse mais uma vez, durante o banho. Implorou que enfiasse sua espada no rabo, coroando a primeira das muitas noites de amor que travariam juntos.
Por Romulo Netto - Jornalista e Escritor
VENDETA
As ruas estreitas da cidadezinha histórica foram seduzidas por grossa camada de asfalto, o mesmo aplicado na rodovia que rumava do Rio de Janeiro pra Brasília.
Paracatu era apenas mais uma entre tantas outras localidades encravadas na passagem da BR-040.
Os aventureiros não arriscavam demorar mais que algumas horas. Além do pouco casario colonial, igrejas barrocas pedindo a Deus pra serem demolidas, o lugar só tinha pra oferecer dois ou três butecos, o puteiro da Praça da Distribuidora, açougues, vendas e o bordel de Ferreirinha.
Não estava preparada pra receber os visitantes que fatalmente chegariam aos montes quando Brasília fosse declarada Capital Federal.
O dinheiro aqui era escasso fruto de pequenas lavouras, aluguel de casas caindo aos pedaços, garimpo dos muito ricos fazendeiros de cria recria de bois que sempre eram levados pra Barretos.
Somavam-se a eles os afortunados funcionários públicos dos Correios, da Coletoria, e professores do Colégio Estadual. O resto era pobreza que nem tinha linha de separação.
Papai era afortunado. Funcionário dos Correios, tinha por profissão guarda-fios. Cuidava de uma distância de trinta quilômetros saindo de Paracatu rumando pra Uberaba. Sua responsabilidade consistia em limpar semestralmente dois metros à esquerda, dois à direita de toda a extensão por onde desembocavam os postes de seu trecho, fazendo um aceiro.
Ainda que funcionário público, o salário mal dava pra cobrir os gastos com a família. Fazia bicos como carapina, depois comprou uma máquina pra lixar, sintecar assoalhos, tacos.
Não era rico, mas não deixava faltar carne, verduras, legumes, até bacalhau, na Semana Santa e no Natal em nossa mesa.
Acompanhava pelo Correio da Manhã o que acontecia no país e no mundo. Via com bons olhos a chegada da STER, companhia responsável pelo asfaltamento da BR-040. Olhar bem diferente do nosso, pois os trabalhadores da grande empresa despertavam a atenção das moças casadouras da cidade.
Havia prenúncio de prosperidade. Os Botelhos, donos da metade do dinheiro circulante na cidade, anteviram o futuro, construindo na rua Goiás o primeiro hotel: Walsa.
Paracatu já era parada obrigatória para todos que buscavam Brasília, que fervia na sanha construtora do presidente Juscelino. Nossa terra estava fadada a sair do esquecimento. O Repórter Esso anunciou que Brasília seria inaugurada em vinte um de abril em homenagem a Tiradentes.
Os Botelhos, mais uma vez, previram o futuro. O Walsa Hotel não seria suficiente para receber tantos turistas que debandariam de seus Estados rumo ao Planalto Central para assistir à inauguração da capital.
Decidiram construir o Hotel Presidente.
Vez por outra, nós, alunos do Colégio Estadual Antonio Carlos, subíamos a avenida Deputado Quintino Vargas até alcançar a Olegário Maciel, onde o Presidente estava em construção. Fazíamos alguns biscates, quando ganhávamos poucos trocados, mas suficientes para saborear sorvete no bar do Jóquei Clube.
Quinze ou vinte dias antes da inauguração da capital federal, o Hotel Presidente estava pronto para receber visitantes: deputados, senadores, jornalistas, daqui ou das estranjas.
Nós passávamos pela entrada sem ousar adentrá-la. Seríamos escorraçados pelos recepcionistas, muitos dos quais nossos vizinhos ou ex-colegas de escola. Pra nossos olhos, que não conheciam nada além do que os filmes do Cine Paracatu nos mostravam ou imaginávamos pelas novelas da Rádio Nacional, um luxo.
Dizem que tinha copo pra água, vinho ou bebida destilada, um diferente do outro. Coisa de louco pra nós daquelas Gerais, acostumados a comer no mato em lata de goiabada, beber da água na concha das mãos.
Inaugurada a capital, debandados os das estranjas, os daqui, o Hotel Presidente nem não ficou jogado às traças e baratas.
Primeiro chegaram e se aboletaram num quarto que eles chamavam de apartamento, os irmãos franceses Cornier. Entendidos de som como o quê. Logo, sentiram que no hotel não realizariam suas experiências. Precisavam de espaço amplo sem preocupação de incomodar a vizinhança. Foi na casa deles que, pela primeira vez, ouvi um tal de som estereofônico.
A maquininha separava tudo. Eu podia ouvir violão, violoncelo, piano, voz, cada um por sua vez.
Mas o Hotel Presidente continuava lá, bem defronte da rua que despencava da BR-040 como fosse continuação do posto de gasolina de Walter Neiva.
Dali, olhava-se pro futuro ou menormente o mundo que rodopiava naquela estrada invasora da tranqüilidade cerradesca das Gerais.
Um dia, ele chegou suando às bicas mal descido do automóvel. Na recepção, mostrou os documentos. Pagou por mês. Só disse:
— Buon giorno!
Duas horas depois, já estava esparramado sobre a cadeira de descanso na calçada do hotel. Camiseta branca sem mangas, calças de caubói cortadas até o joelho grosso, trancelim de ouro pendurado no pescoço, relógio dourado no pulso esquerdo, chapéu branco de abas largas, um jornal nas mãos.
Gastei semanas pra decorar o nome: Corriere della Sera.
Eu o via com o jornal entre as mãos, mas como saber se dia após dia era o mesmo? Nem por sonho adivinharia em que língua estava escrito. Mas houve um dia em que fui mostrar meus iniciantes poemas pras sobrinhas de tio Luiz no centro espírita que ficava ao lado do Hotel Presidente. Tropecei no pé do homem. Ele levantou num só pulo. Esbravejou na língua dele. Emudeci. Enfiei o rabo no meio das pernas e escafedi.
Demorei quase um mês pra passar novamente perto do Hotel Presidente. Numa sexta-feira à tarde, o reencontro aconteceu. Estava sentado na cadeira de descanso com seu surrado Corriere della Sera. Quando me viu se levantou, pediu-me para arranjar uma puta. Disse o nome, colocando em seguida uma nota de cinco cruzeiros em minhas mãos. Fui pro bordel de Ferreirinha, indaguei por Diva. Disseram que ela estava na praia do Vigário. Com o coração apertado, saí em desabalada carreira. Quando cheguei na praia, lá estava ela deitada sobre uma toalha branca, o que ressaltava ainda mais sua cor. Nua como viera ao mundo. Pernas, coxas longas bem servidas de carne, seios lindos, xandanga totalmente raspada deixando à mostra aquele sexo rosado parecendo um bibelô, tamanha a formosura. Meu pinto endureceu. Tentei arrumá-lo pra que não percebesse minha excitação. Falei do recado do italiano. Agora, já sabia de onde era: da Sicília. Se levantou pedindo para ajudá-la com as roupas. Colocou com graça a calcinha, o sutiã, olhou maliciosamente pro meu pinto perguntando se já tinha fodido alguma vez. Disse que, se o pagamento do italiano fosse bom, me ensinaria. Quase nem achei o chão pra pôr meus pés. Minha cabeça foi às nuvens e voltou. Eu? Trepando com Diva a puta mais linda do noroeste das Gerais! Só mesmo em sonho.
Os encontros continuaram a cada quinzena. Sempre ia encontrar com Diva na praia do Vigário, ficava me remoendo de ciúme sabendo que o italiano comia a mulher de meus sonhos juvenis. Se estava satisfeita não sabia, pois não dava sinais de cumprir o trato, proporcionando minha primeira transa. Mas só o fato de vê-la nua, de onde-em-onde permitindo que tocasse os seios, os chupasse, já bastava. Houve uma vez que me deu um beijo na boca tão demorado provocando uma zonzeira, tremedeira pior que as das febres quando as amígdalas se inflamavam. Era praticamente seu cãozinho de guarda. O italiano ó! Só que trepava. Um dia contei as gorjetas economizadas, ofereci pra ela. Disse não. Pegou minha mão, escolheu um dedo, pôs no seu sexo, beijou minha boca tirando minha roupa, segurou meu pau duro, engoliu de uma só vez. Gozei na hora. Limpou a porra que escorria pelos lábios, perguntou se gostara.
Fomos pro Hotel Presidente. O italiano disse pra buscá-la na próxima sexta-feira treze. Não gosto de sexta-feira treze, principalmente quando é agosto. Mas trato é trato. Ganhava uns trocados pra isso.
Na tarde da marcada sexta-feira, soprava um vento frio, o sol brilhava sem esquentar. Mês do cachorro doido, das ventanias.
Subi a Quintino Vargas desapressado: quando dobrei a Olegário Maciel vi que, defronte do Hotel Presidente, havia uma pequena multidão. Alonguei os passos. Levei um baita susto quando vi o italiano caído com um buraco na testa, outro no coração.
O delegado fez perguntas. Ninguém viu ninguém, ouviu nada. Hoje, acredito que foi mais uma vendeta da máfia italiana.
Depois da morte de Domenico, nunca mais fui à praia do Vigário ou passei pela porta do bordel de Ferreirinha, mas guardei na memória enquanto pude o corpo escultural de Miss Brasil de Diva, a mais bela puta que meus olhos viram.
Por Romulo Nétto - Jornalista e Escritor
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