sábado, 23 de abril de 2011

O INFINITO DESESPERO DE EMENTÉRIO

livro um


capítulo um

A água do veranico de janeiro escorrega ligeira pelas ladeiras carregando inúmeras pepitas de ouro, disputadas à tapa pelos moleques de Longoria. Nunca antes houvera tanto brilho nas beiradas das ruas. Parecia que Deus tinha, de repente, resolvido mostrar que era Pai de todos dando o pleno sinal da benevolência, assumindo o comando da situação. Há bem mais de vinte anos nenhum ser vivente dava o ar de sua graça por essas bandas, apenas a Igreja se lembrava do lugar, trocando de quando em quando o pároco. Assim, nós, pequeninos mortais, íamos seguindo em frente, driblando a vida e até mesmo a morte. Foi assim que tudo aconteceu.
Se alguém um dia ousou imaginar que Longoria seria visitada por duas pessoas, por decerto seria chamado de louco. Imagine visitada por um bando de tresloucados homens que varreram o vilarejo com a baba de seu ódio, rastelando túmulos e ares. O mundo tinha mesmo que ter um fim. E ele poderia ou estaria bem ali na cara de cada um de nós. Só não sei dizer se sabíamos ou queríamos acreditar.
Mas bem antes de o bando chegar, muito ocorreu. Pra ilustrar as acontecências é bem bom explicar um pouco de tudo, de cada vez, no sossego e aconchego do fogo do fogão à lenha, quando todas as verdades familiares são expostas sem medo e sem segredos. Ah! quê.
O silêncio antes cobria todo o vilarejo. Agora transformou-se em gritaria, informando a bamburra. Do pedreiro ao açougueiro, do padreco recém-chegado ao juiz de paz, todos queriam apanhar seu bocado de pedra dourada. O inferno tinha tomado conta de Longoria sem vivalma perceber a gravidade da situação.
Enquanto todos catavam o mais que podiam do ouro, a chuva dava demonstração raivosa querendo continuar por horas a fio. Ou era sinal do fim dos tempos, ou o diabo tinha tenência a mostrar seu poder como o do próprio bom Deus.
Se os lados opostos estivessem mesmo dispostos a iniciar a luta final, talvez não encontrassem lugar pra fazê-lo, tamanha a bagunça reinante em Longoria.
O divino e o profano não eram inimigos — pregava padre Colombo —, eles se sabiam irmãos, cada um se amando a seu modo.
De quando em onde a fúria assumia proporções desnusitadas e abusos aconteciam sem que — cristãos e bandidos — dessem muito valor ao resultado da pendenga.
O diabo por vez era mais assanhado e perdia as estribeiras, lançando impropérios, querendo impor suas vontades. Deus, em Sua quietude divina, fazia ouvidos de mercador, e assim a luta não chegava nunca ao fim.
Longoria nem de longe era pra ter esse nome esquisito. Ficava às margens do corgo Rico, o nome preferido por todos tinha que estar fundado nas origens. Porto Rico seria mesmo o melhor nome.
Padre Colombo, bisbilhoteiro como o dianho, deu de indagar: rico de quê? Só mesmo rico de pobreza. Segundo ele, aqui ninguém tinha nada de nádaras. Além de sonhos e esperanças, a cabeçorra do povo não pissuía espaço pra mais coisa alguma. Duvidava até que houvesse um lugarzinho sequer pro bom Deus. Ele, lá no Seu bom patrimônio deveras havera de compreender a longa ausência dos poucos filhos, pode até de ser por boa causa e razão. De momento em momento padre Colombo se adistanciava do Padre Eterno, questionando a imensidão da pobreza de uns e o desvario das riquezas de outros. No final, todos nem não nasceram das mesmas fudelanças e pernas abertas? Diferença havia? Explicasse Ele aos sofredores. Não deixasse o triste encargo pra que simples padre fosse martelar nas missas de domingo os tratamentos destinados pelo bom Senhor a seus filhos. A Bíblia não estava cheia de promessas de boa vida e riqueza pra todos que fossem fiéis seguidores do Cristo Rei? Ao depois, só miséria atrás de miséria. Eita mundão de promessa sem os cumprimentos devidos.
Nos repiques das discórdias, padre Colombo zombava dizendo que por isso mesmo as igrejas clandestinas cresciam e engordavam como boi no pasto. Num estava coberto de certezas? Pois bom! O Deus do céu decidiu pregar uma peça nos seus cristãozinhos debandando pro outro lado, ou por bem deveras o tal do coisa ruim acabara vencendo a dura luta. Mas será que ela já tivera bom começo? No avaliar de padre Colombo, tava tudo mais entranhado, nem podia perceber onde começava um e acabava o outro. O tempo diria. Somente ele e suas decisões.
Foi quando, abarafundado em suas divagações pós-missais, que Farnésio adentrou a capela de Santo Cristo. Se deu ao desplante de permanecer com as reluzentes armas, imenso crucifixo com Cristo pregado de ponta-cabeça, roupas negras, do chapéu às botas, até as esporas, tudinho dum negrume de reluzir, além de breu. Tinia de escuro! Tudo como jamais padre Colombo pudera ou havera de imaginar possível.
Ele sabia que pra tentar fazer prosperar sua pequena igreja, padre Colombo era chegado nos ouros. Fazia casamento de ajuntados, contrariando as normas cristãs, celebrava missa de corpo presente de suicidas, ou assassinos. Tudo no bom santo nome da sua santíssima e queridíssima mãe igreja. Quem era capaz de ter poder de recriminá-lo num mundo onde o mais dos sãos não passava de coxo, cego ou aleijado? No paço da igreja tinha todo tipo de pedra. O que se sentisse, ofendido apanhasse a sua e atirasse. Padre Colombo sabia protegido. Seus males e defeitos eram menores que os pecados de seus fiéis.
Pelo conhecer dos acontecimentos, padre Colombo tinha notícias de um Farnésio amancebado em Pirapora, amantíssimo querido de duas fazendeiras na distante Januária, casado em Vazante e, agora, arrastava as asas por moçoila casadoira em Longoria. Os pais da menina, temendo a sorte mais deles do que dela, se viam desprotegidos. Se corressem buscando adjutório em Paracatu nem lá chegariam, pois as balas de Farnésio os alcançariam antes. Na justa justeza só mesmo o amparo batinal de padre Colombo. Foi o que se deu e aconteceu... não sem baita confusão.
Nem bem Farnésio chegara na igrejinha com sua pompa criminal à vista, sentando na sacristia como se fosse o próprio papa, pigarreando e aguardando a aparição do bom padre Colombo, os pais de Malfada entravam pela segunda porta, como se não esperassem encontrar ninguém. Houve um rebuceteio geral. Arranca-rabo de fazer tremer quarteirões, se se tratasse de cidade grande. Mas ali naquele cafundó do mundo, nas fronteiras da donde o diabo perdeu as botas ou as precatas carreiras, foi tudo feito de pequeno susto. Farnésio levou mãos às armas, enquanto Tiana Madureira caía desmaiada e Mané Tiburcino, meio desregulado das ideias, sacava as duas num repente espantoso, provocando surpresa e emudecimento em Farnésio que já se considerava dono da situação. No por fim, eles se houveram por dar como mal-entendido. Arrebentara em seu palavrório dizendo vir pra comunicar ao padre Colombo a tenção mais bem-intencionada da paróquia em desposar em casamento religioso a menina Mafalda, por quem se enrabichara sem querer numa quermesse de Santo Antônio, quando ela nem bem prosperara nos seus doze anos. Daí em diante, e foram por mais de três anos, a dor de amor, sofrimento cotovelar, ou sabe-se lá até dor de corno foi crescendo, esquentando, e ele nem se deu por conta das loucuras que agora aparentava praticar. Tamanho amor sem resposta só causa dor incontida. O foguetório denunciador da situação comprovou.
Longoria perdoava o extremado sentimento de Farnésio. Só que nem não houvera ninguém combinado com Mafalda. Ela via, com outros olhos, outro desmesurado e sofrido amor. Dele e por ele a história de Porto Rico ou Longoria seria mudada e transmudada num breve espaço de tempo.

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TATÃO MALEMAIS, O CAPADOR DE ANJOS

capítulo 1

lembrança das folhas


Ficava ali na esquina do morro do Tempo espiando urubus e pássaros canoros. Sentado nos calcanhares, acendia fedorento cigarro com seu binga dourado, herança tardia recém-recebida após morte do barbudo Anastácio.
Muitos dizem, talvez por dizer assim investido em piedades, que aquela morte prematura o abilolara de vez. Agora estava ele prenhe de dor e assustamentos.
Acordava bem antes do amanhecer, contrariando todas possibilidades possíveis em um homem plenamente assumido nas preguiças diárias.
Não era de seu feitio se pôr sobre os pés antes do sol bordar os campos, as colinas, os ipês floridos, quando chegada a época. Nos poréns, por vezes inexplicáveis, o zunir dos miolos concedia a graça fazendo que pulasse da cama bem antes da hora.
Hoje, sábado bem morno, malemal a lua pálida em carregada formosura escondera a cara, os tênues fios do clarão do dia eram paridos pelo sol, estava ele prostrado, arranhando a bunda magra nos calcanhares rachados.
Apesar da poeira farta deu-se ao luxo de juntar mangabas, cajuzinhos-do-mato, gabirobas, cocos-xodós e até cagaitas, suas frutas prediletas. Caipiramente as chupava, deixando um grosso melaço escorrer entre os beiços de sitiante rude, depois olhava para a sombra do pequizeiro relembrando sonhos. Arrastava enorme quantidade de folhas secas formatando seu colchão, sabendo que, ao acordar, novamente teria aos pés alguns frutos para matar a incessante fome.
O sol lambeu a tarde trazendo na esteira o calor característico do verão tropical. Tatão Malemais respirou meio que dormindo, sentindo doce liberdade. Deixou-se relaxar suavemente antes de abrir os olhos. Aos poucos foi divisando longínquos horizontes, ora surpreso ora desconcertado. Estava a fim de sobreviver.
Arrastou consigo a modorra, separando alguns pequis, decidindo colocá-los sobre a pedra canga. Tão logo descansasse a vista, iria cortá-los jogando as gemas amarelas na pequena lata. Era, segundo ele, manjar dos deuses. Na falta de boa companhia, deixaria os ventos redobrantes partilharem a ceia pouco antes do sol ameaçar ir-se embora.
Fogo aceso no fogão improvisado, agora ele era senhor do tempo, dispunha de todos os minutos para pensar suas coisas.
Tatão ficava ali no quase sempre assuntando, espiando, comparando o olho de um boi imaginário com o olho de gente, pra sempre no depois decidir que um olho era só um olho colocado na cara de cada um, com suas vergonhas, seus encantamentos ou mesmo suas desistências. Ah bão! Assim era ele, Tatão, um sempre só em sua solidão de bicho quase homem.
Por ouvir dizer, tinha sempre notícias do mundo. Das políticas escutava tudo com atenção, pra no depois falar sozinho, bem alto no meio do mato, como querendo ser novidadeiro contando as notícias tim-tim por tim-tim pra cada pé de pau daquele seu cerrado magro.
— Eu neste vasto mundão de Deus tenho certeza tão somente dos meus ais. Ninguém enxerga a podridão porque quer. Ela viceja pelaí disforme e nos conformes de cada vidente. Por isso é que posso nos meus dizeres afirmar que fujo dos políticos, pois que eles se dizem e desdizem como cobra-cainana no seu desejo de botar mais crias nos campos cerrados. Cainana não pia nem despia quando quer mostrar suas vergonhas pra atrair seu macho. Mas o homem engravatado, o político, o que faz ele? Somente pensa nos enganos que pode, pois que sim, nos amedrontar com. Antão?! Hum-hum! Todo esse povaréu que passa aqui desimbala pro mundo. Arre! Uma carreira de fazer dó. Prefiro meu sossego, meus pitos, minhas desconfianças a sair desimbestado por aí afora, correndo atrás de promessas de políticos. O que tem de ser meu há de.
Absorto em seus pensamentos, Tatão Malemais nem num vê a noite escancarando a bocarra bem ali na esquina do diabo.
Ficou estacado sorrindo talqualmente bobo-lelé, olhando a chegada dos que deviam partir e a partida dos que deviam chegar.
Viu a brotação do capim novo após a primeira chuva setembreira, primaveril. Tudo se pertence, se assume como num sonho.
Ahã?! Tatão sabe que suas dores são apenas começantes. Os homens do lado de lá se sobram em mesuras, comesuras, acalantamentos, acobertamentos de roubos ou sem-vergonhices estranhas ao mundo seu, de cá de perto das vistas.
Se alembra da cara de jenipapo dum político vendido aos homens da revolução, eram todos falsetes de guerrilheiros, oportunistas, se abocanhando ainda mais da vida e dos corpos das filhas dos outros.
Tatão cerrou as sobrancelhas em tristeza-mor, deixando desabar na cara mal-anoitecida todas as angústias, frustrações de seu pequeno mundo. Tudo. Tudo se lhe era desalmado perrengueamento. Queria ir-se embora daqueles pagos. Avoar como um sofrê, batendo asas mansas na imensidão daqueles céus perdidamente tingidos de azul-anil de ferir olhos, mesmo os mais protegidos.
Sentia que sua missão naquelas bandas ia-se pondo ao fim, porém não sabia qual era seu norte. Dependesse só dele tinha muita força nas batatas das pernas pra encarar uma vastidão de estradas desconhecidas. O mundo havera-de caber na palma de sua mão. O faria girar como pião na gela, rodopiando, zunindo, deixando escapar aquele som choroso — zum-um-um-um — até tombar no meio do chão. Coisas suas repentinas, rebatendo na cabeça, causando sôfrego desassossego. Em bem verdade sabia sua sina, seu pesadelo, por isso acobertava desdizendo a todos.
Ele se reconhecia um homem-pássaro, sabiá-laranjeira preso àquelas paragens como tivesse enfiado os pés em visgo de mangabeira. Nas horas vagas do dia presumia-se cobra rastejando cerrado afora, modo descobrir ansiados segredos dos nambus. Calado, assistia dias a fio o festejado momento em que punham seus ovos debaixo de uns pés de paus rasteiros. Se anunciava nos mais diversos lugares como descobridor das vidas, pois não era raro aproximar dos ninhos no justo momento em que os ovos eclodiam brotando desinquietos passarozinhos de penugens ralas, de bicos abertos, batendo asinhas, esbaforidos pela fome.
Desde então se punha a conversar com todos os bichos, pelejando sem trégua nos ensinamentos. Quantas vezes bateu boca com nambus querendo que avoassem pro sol. Furibundo pela desobediência, calava horas seguidas. Nem o sábio sabiá ou o fogoso pássaro-preto nesses dias conseguiam arrancar uma palavra ou mesmo um sofrido ai.
Quando voltava às boas, destoava numa tagarelice sem fim, incompreensível. Só mesmo aqueles filhotes em pré-voo anunciado podiam entendê-lo balançando as cabeças, revirando os olhos como em desarroubos infantis aprovassem tudo que Tatão desatinava a falar, a gesticular.
Na boca da noite envinha aquela voz mandando ele ir embora, correr mundo, colher o futuro. O coração apertado insistia pra ficar, tinha medo de perder-se nas ruas do desconhecido. Mas como saber perigos sem tentar enfrentá-los? É preciso desvendá- -los, pra depois decidir se vale a pena continuar tocando em frente. Pro rumo dos rumos, soprava-lhe nos ouvidos a voz. Sem armas com que se defender, prometia que no amanhã buscaria novas pousadas. Carecia acalmar o coração pra modo do tinhoso não fraquejar nas estradas levando seus passos pro beleléu. Tinha que pôr carapaça de casca de jequitibá nas costas, vestir a alma das árvores, enfeitar o olhar com olhares de sofrê ou uirapuru, fortalecer as pernas com óleo de cabriúva, alimentar os sonhos com aquelas paisagens aprisionando ventos, flores e cantos dos pássaros em seus olhos de pica-pau.
Remoía as dores em silêncio, por vergonha de alguns bem-te- -vis descobrirem os sentimentos. Deserdava da memória a mais vaga possibilidade de ser o dono daquela esquina que o prendia, enfeitiçava, mormente naquelas noites parideiras de lua cheia. Estava perdido em um mundo que poucos conheciam tão bem como ele, mesmo assim tinha medo da próxima esquina ou dos próximos passos.
— Ai de mim! — dizia ele, querendo se desculpar consigo mesmo pela fraqueza relutante em deixar aquele lugar. Lá ele não fora parido. Ainda assim dava soco nas vozes que o incitavam a ir-se embora. Logo ele, um batalhador que enfrentava sol, chuva, pra conversar com árvores, bichos rasteiros e avoantes, ele que nas noites escuras reinava ao lado de imensos vaga-lumes, chorando copiosamente quando encontrava uma árvore morta ou restos de carcaça de veado-mateiro recém-banqueteado por solitária suçuarana. Batia-lhe aquela profunda tristeza paralisando o parco pensamento. O que dizer então quando suado parasse à beira de um córrego não mais encontrando matrinxãs e piraputangas para conversar, segredando acontecimentos novos, outros velhos, pois que nunca vira ninguém nesse mundão de Deus pra gostar mais de uma fofoca que as matrinxãs e as piraputangas. Os olhos marejados quase saltavam das órbitas, como quisessem buscar refúgio nas locas do córrego, que corajoso teimava resistir ao desmatamento de suas margens.
Tatão — posso dizer assim sem susto — é um quase santo, muito embora não tenha noticiado nenhum milagre seu, além das mirabolanças do conversar com o inconversável, no que se prova é que pássaros e árvores se lhes resposteiam as perguntas no justo silêncio que o momento exige. Acordo feito para não haver desconfianças, desavenças e traições. Curava seus bichos e arvoredo, no silêncio de duradouras conversas, gesticulando abruptamente, escancarando econômicos sorrisos quando um paciente dava sinal de melhora. Apois! Talvez fosse mesmo um santo aos avessos, protetor daquele cerrado manso, apaziguador de corações de corujas buraqueiras. Talvez guardasse seus milagres longe dos olhos gananciosos dos homens que moravam nas redondezas de sua esquina, talvez enfeitiçasse a todos com seus modernos, invisíveis milagres, que o homem de coração impuro jamais haveria-de ver ou sentir. Único no cerrado a falar a língua das flores, dos periquitos, vaga-lumes, embaúbas, pequizeiros. Herdeiro dos mais ancestrais segredos dos riachos e cachoeiras cristalinas. Folgado cantador de ternas melodias de amores passados que dobravam a curva do tempo sem deixar sinal de passagem. Esse o Tatão.
Nas conversas com seu umbigo deixava transparecer que o tempo da colheita se aproximava. Talvez antes das próximas chuvas saísse em busca do futuro, confiando um dia voltar e contar pra todos suas andanças. Ainda que as dúvidas fossem sobrepesando umas às outras, ele se fazia de bicho do mato pra dormir ao relento, tendo como proteção apenas um vasto cobertor de nuvens, rememorando passagens escondidas nos confins da memória, acreditando que no reino deste mundo será vencido e vencedor. Nos seus solitários monólogos anteouve, vozes empurrando para bem longe daquelas águas claras, do mágico trinar de diferentes pássaros recém-chegantes, que anônimos pré-anunciam sua prematura partida. Aqueles há que silenciam em protesto por pouco conhecerem Tatão. Também marcam presença presumidos, desconfiados viventes que não renunciam acompanhar o protetor aonde for.
Pensou momentaneamente metamorfosear-se em cigarra, sair cantando terna, suavemente, sua despedida, mas não era tempo de florescer cigarras nos ipês, lixeiras, mangabeiras e pequizeiros.
Cerrou os olhos se perguntando quando tempo restaria, talvez buscando entre suas artimanhas uma última maneira de atrair anjos para capá-los. Sobressaltado, levou a mão direita procurando a bainha do facão. Um suor frio percorreu o espinhaço como prenunciando mau agouro. Em vez de ficar preocupado, Tatão destrambelhou estrondosa gargalhada assustando preás, teiús, nambus, pássaros-pretos e joões-de-barro, estremecendo até os mais altos galhos das árvores da beira do riacho.

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FILISBERTO DAS ÂNCORAS

Acordou desajeitadamente feliz. Vislumbrou o azul do céu pelas frestas das paredes de pau-a-pique por onde um bafo de vento soprava-lhe na cara. Buscou sorrir seu riso maroto de quem não quer nada mesmo sabendo-se querer tudo. Caminhou como se levitasse buscando a cozinha. Riscou a pedra até sair faíscas com as mãos em conchas protegeu os gravetos. O costumeiro fogo alastrou-se. Filisberto das Âncoras atravessou a porta cofiando a barba com gestos mecânicos pegou o sarilho lançando a velha lata no poço arrancou a pouca água que seria parte do seu sustento no dia que prometia ser de um calor infernal. Virando as costas ao resto do mundo adentrou novamente na casa. O fogo crepitava. Sem lavar a cara coisa de luxo e não podia sempre se dar a ele despejou um pouco d’água na caneca cheia de folhas para a primeira beberagem do dia. Logo um cheiro forte invadiu recendeu na cozinha. Por sobre o fogão uma manta de carne de tatu recebia fumaça do angico da aroeira defumando calma diuturnamente. Com seu modo caipira de vaqueiro desgarrado retirou a faca da cintura lasqueou a parte mais gorda da manta. Na caneca improvisada de lata de massa de tomate depositou uma generosa dose de chá. Mascou a lasca da carne sorveu gole da beberagem. Por algumas horas o estômago estaria enganado.
Era tempo de pôr a cachola para funcionar. As arapucas precisavam ser armadas senão o almoço seria ainda mais minguado. Olhou de soslaio para as rachaduras dos pés esgaravatando até sangrar talvez buscando apurar o sangue. Apanhou uma folha de lixeira aparou as unhas. Acariciou a barba rala pensando seus setembros. Mais madura que sua dor somente a ausência da mulher que possuíra sonhando mas os calos nas mãos mostravam que ela jamais foi amada. Esparramou saudades do tempo que vasculhava a Chapadinha a Bitesga à procura de um nadica de nada daquelas mulheres que gostavam de rapaz com os primeiros fiapos de barba na cara. Ao longe a juriti lançava lamúrias aguçando sua fome despertando pra vida. Filisberto antes de sair precisava dar boas baforadas. Sentou sobre os calcanhares. Pegou a faca carcomida pelo tempo embora muito afiada preparou o cachimbo de talo de mamona sabugo de milho depositou dois fiapos de fumo enxertando o resto de ervas do mato para dar sabor ao prazer causado pelo amigo de perdidas datas. Ali naquele cafundó naquele tremembé onde o diabo perdeu as botas este era único companheiro um quase confidente. O cachimbar fazia-lhe um bem enorme quase do tamanho das estrelas. Mesmo houvesse outras pessoas nunca de núncaras repartiria essa alegria tanta. De quando em quando ele mesmo se pergunta se responde:
— O quitô fazendo aqui?
— Apois! Tô xurungando brincando de fazer saudades!
A vida era resumida nos poucos mas profundos encantos. Cada minuto espremia-lhe o cérebro com furor de vulcões seculares eternas surpresas erupções. A todas vencia com calma sabedoria de matuto preparado para a mais ferrenha das lutas: a sobrevivência num lugar onde nem o diabo aventuraria viver. Sair dali deixar aqueles pagos seja para buscar comida era martírio ele o cumpria com ritual que se repetia há não saber desde quando. Depois de bebido fumado estava teso pronto para começar a busca. Assuntou para o sol como perguntasse quão ardente seria no correr do dia. Deu meia-volta entrou no casebre. Abanou a cara com o chapéu de palha pegou o bornal o binga se benzeu diante da velha imagem de seu Santo Antônio como se novamente cobrasse uma mulher deu um basta nos pensamentos saiu com raiva por tudo que lhe batia na caçoleta. O chão de quase coisas pareceu-lhe escaldante seco inóspito gentil ao mesmo tempo. É preciso respeitá-lo pois a cada caminhar pode pregar surpresas inimagináveis.
Neste oco de mundo a solidão é recompensada com as alegrias causadas pelas descobertas nas entrelinhas das estradas. Filisberto espera vento mais forte fustigar-lhe as ventas para decidir qual caminho seguir. A lembrança dá-lhe a certeza de que um olho só lhe basta para enxergar a miséria do mundo. Sabia porém que aquela não era hora para distração assim preferiu enxotar tudo que não dissesse respeito à fome vindoura. Anuviou as idéias decidiu pôr os passos à frente do pensamento. Perto da cagaiteira-mãe assuntou ser bom lugar para colocar a primeira arapuca.

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sábado, 2 de abril de 2011

Não fala comigo! a história de um autista





O nascimento de uma criança diferente, não raras vezes, tem destruído uma família. Grande parcela dos casais aceita com relutância um filho deficiente. Talvez por não estar psicologicamente estruturada para carregar pela vida afora o “fardo” que não escolheu.
Porcertamente Martírio veio ao mundo abençoado por Deus, ainda que envolto numa aura misteriosa.
Somente no início Rutinha pensou ser a culpada pela deficiência do filho e se pudesse, teria escolhido um igual aos outros. A mesma tez morena, os olhos maiúsculos, azevichados, como os dela, os cabelos louros que, amiúde, contrastavam com a imensidão seca daquele sertão.
O tempo avança suas horas: o filho que viera em momento de quase penúria trazia consigo a diferença... e eles o amaram com todas as forças como prenunciassem que, diante de tamanha desigualdade, Martírio era o mais igual entre os iguais.
Não fala comigo! a história de um autista retrata, sobremaneira, que, embora não tenham planejado um filho diferente, Epigmênio e Rutinha souberam derrubar obstáculos, não permitindo à amargura do sofrimento privá-los de amar e ser amado pelo filho que, em sua diferença, conseguiu quebrar o gelo da desconfiança e os grilhões do preconceito.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

TARENÇO, O CAPANGA DE LATA


Capítulo I

Plug


Ia indo, solitário, lendo estrelas, revendo sertões, decifrando esquecidas, mal-dormidas luas sem que vivalma, por pequenina fosse, ousasse acompanhá-lo. Ele um pobre favorecidamente reconhecido deserdado das sortes, que, no bom andar de seu esquartejado destino, punha a cara bexiguenta à prova dos murros e urros da molecada. Em sua ruamundo tudo girava pra trás. Ele buscava sempre passear na contramão da vida, enquanto nos pequizeiros, as pombas do bando reinavam. Se dizia sozinho. Mas de suzim mesmo só tinha um buriti perdido no meio da selvagem vereda azul que sorrateira sobreviveu entre morrotes agarrados ao descampado, onde o Urucuia resolveu beber as águas de fracotes riachos.
Sentado sobre rachados calcanhares, escarafunchou unhas negras corroídas pelos pedregulhos, assuou duas vezes seguidas as narinas cabeludas, olhou vago pro céu assuntando as horas, sentindo pequena comichão na mão esquerda, ou foi na direita? O dedo indicador se torceu em contorcida dor de apertar gatilhos. Em sua paz mórbida, experimentou se renascer novamente no sangue derramado de próximos defuntos. Fosse pelo contrário. O sertão era sua roupa preferida. Nem o diabo travestido da mais faceira morena tomava sua atenção. Gastava horas magicando caminhos outras vezes regressos. O futuro não sabia como lidar com seus antecipados pensamentos. Era tão distraidamente perdido como se tudo não passasse de desafios pro tempo. De quando em quando se engabirobava esperando maduras cascáveis com intuito único de vê-las sofrendo, esperando despencar amarelado fruto que teimava resistência não cedendo nunca, antevendo de véspera que o chão daquele cerrado sempre foi sinônimo de morte.
Logo ele viril patrão de seu desanonimado destino. Por certo jamais se cedera em angústias, mesmo quando a fome, a sede, o cercavam nas mais plenas voracidades.
Acreditava que nascera pra se perder em derradeiras glórias encontradas nas bandas esquerdas do Urucuia ou, sabe-se lá, mesmo até nas próximas sofridas águas do desavisado Paracatu.
Ele que nunca foi seu dono, agora, depois de tanto sol resvalando pelo velho chapéu furado se via possuído por senhor desconhecido. Viramundo. Vira-lata faminto, sanguinário. Porco sedento, desenfreado. Herói de machucados instantes. Um só que se busca no buscar dos outros, que se olha penetrando no terceiro olho do que nunca foi ou jamais será.
Plug marcou sua vida sobre tantos destinos, pouquíssimos sóis, luas derradeiras. Descansou sob a sombra de esquecidos jatobazeiros, bebeu da água das pequenas cacimbas anfitriãs, jantou no descampado dos sertões milagreiros as carnes ensopadas de tatus encardidos pelos tempos imemoriais, sobressomados, sobreamassados por mandiocas amarelas de prenhez precoce. No sonhar de seu pesadelo príncipe, desejou mumificar todos os gostos como se o estômago satisfeito conseguisse reter o milagre da alimentação per omnia secula seculorum.
Mal completara vinte e cinco anos, quando decidiu arranchar a vida perto de secular cumbaruzeiro que o tempo pariu esquecendo no pós-depois das terras do coronel Teodoro Fuquefuque. Fincou ali dúvidas, saudades, dores, lembranças, sonhos e ilusões. Mais que isso. Jurou de pés juntos sair dali só morto. Suzim, suzim mesmo, não arredaria um piscar de olhos. Bom pois! Assim fosse, se sucedesse. No quê! Ele, seus santos, entrecortados por imensa curriola de santas, desafiariam sertões, cerrados, no justo distribuir de sentenças sem defesas ou desavenças. Se somaram alguns penosos anos de solidão, até que Nhá Parteira perdida, ou pode té ser deixada de propósito, pôde descortiná-lo peladão, peladim nadando num vai-vem profundo nas foscas águas do Urucuia. Meio que desavisada, desavergonhada ,gritou pelo moço implorando adjutório. Era de justa necessidade chegar o quanto antes nas terras de seo Izé Cabedelo onde assistiria Sinhá Mocinha em seu parto de difícil primeira parição. Um olho no tresoitão, outro meio que avermelhado na peixeira afiada, moveu o corpo vagaroso, mas acobertado de decisão. Ouviu os rogos da parteira, torceu a boca, coçou o subaco com a mão esquerda, deixando entender que a de bom uso estava livre. Peladão, peladim. Saiu das mornas águas como veio ao mundo, deixando seus balangandãs sacudirem ao ar em frenética música ancestral. Se pôs em guarda já sabendo que de graça ninguém chegava àqueles pagos.
Antes, bem antes, de mirar os olhos de Nhá Parteira, pegou pequeno pedaço de fumo goiano do picuá, preciso, mas com vagar, cortou esparramando em seguida sobre a fina palha de milho. Olhou pro longínquo horizonte sobrefechando seu olho ruim, ao mesmo tempo em que enrolava o palheiro. Desatencioso, procurou seu binga no bolso da calça mesmo sentindo o peso sobre o coração. Acendeu o pito. Somente após sentir na cara a fumaça quente, o cheiro suave do fumo, se deixou conduzir pela trepidante conversa da alquebrada parteira.
Ali lançara sua sina. Se conduziu ou foi conduzido pela contagiante conversa da velha-moça. Gastaram horas de perdidos sóis, enfraquecidas luas, até chegarem aos domínios de seo Izé Cabedelo. Três ou quatro homens descansados, de pronto, se ergueram quando ouviram os lamentos de Nhá Parteira. Pra eles naquela hora ela nem existia. Mediram de rabo a cabo o acompanhante. Relutantes, deixaram que o estranho seguisse em frente rumo à casa-grande.
Deus e o diabo seriam testemunhas do que viria daí em diante.

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Editora: Carlini&Caniato Editorial
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CONTOS DOS GERAIS


Moça na Bicicleta

Costumeiramente, nós a víamos pedalando sua bicicleta Leão de pneus finos pelas ruas do Santana, Alto do Córrego, caminhos estreitos da Chapadinha.
Na Direita, ela parava sempre pra trocar um fiapo de prosa com Julinha, Rosilene, Célia, Nira, dona Enedina e Preta.
Era muito singela. Lavínia, embora fosse da família mais rica de Nasquebradas, carregava no sangue a simplicidade.
Naquela manhã ensolarada, ela desceu da bicicleta e ficou especulando como tínhamos nos saído nas provas parciais. Segredou-me que estivera péssima em Matemática. Se esforçava pra compreender as explicações do professor Gesner, mas de nada adiantava. No segundo semestre, tinha que fazer média boa pra não ser reprovada, senão o destino seria o colégio São Domingos, em Araxá. Alguns minutos depois, Lavínia foi embora deixando-nos com o coração em frangalhos, acelerado. Também pudera. Estava vestida com um short minúsculo, deixando entrever que dispensava calcinha. Os bicos dos seios duríssimos apontavam em nossa direção como dois punhais. Corremos a turma toda pra casa grande, velha construção abandonada ao lado da Santa Casa de Misericórdia, e nos perdemos numa punheta que pareceu durar horas. Cada um de nós possuiu Lavínia inúmeras vezes em nossos sonhos. Loucuras de inverno prenúncio de primavera.
Todos tínhamos vontade de convidá-la pra passear mas na hora “h” perdíamos o fôlego com medo de um não. Nunca saberemos se recusaria um convite.
A sexta-feira amanheceu ensolarada, bonita. A Lyra Euterpe Nasquebradense, desde cedo, atacou furiosa com seus dobrados, marchas anunciando que o dia de São Cristóvão seria alegre, festivo com desfile de caminhões, charretes r carroças como acontecia todos os anos.
Depois do café com bolo de arroz em profusão como tínhamos combinado, iríamos à rua Goiás assistir ao desfile; lá pelas nove, rumaríamos pro São Sebastião, onde pretendíamos passar o restante da manhã até a tarde.
Vovô junto com Cadinho ficou encarregado de preparar as varas de pescar, iscas, faca, sal, farinha, matula e uma lata pra fritarmos os pescados. Quem sabe alguns piaus, na pior das hipóteses: no açudão havia uma fartura de piabas graúdas.
Do Santana até o São Sebastião, caminhada pra mais de hora. Sempre a fazíamos parando à cata de alguma fruta, às vezes de um tatu, ou de uma preá que, com sorte, abatíamos: início de nossa farra juvenil. Aquele São Cristóvão não havera de ser diferente.
No alto do céu azul despossuído de nuvens, o sol prometia brindar o dia com muito calor. Mais que isso, jamais sonharíamos.
Juntos, buscamos nosso recanto: João Queijo, Vovô, Cadinho, Edvar, Anum-Branco, Izebeiju, Pexico, Robertim, e eu. As meninas pediram, insistiram, choraram, rogaram pragas tentando nos convencer a deixá-las nos acompanhar. Nem que não. A estrada era longa, as meninas só atrasariam nossa jornada.
O sol estava a pino. Tiramos as camisas; as costas ardiam quando atingimos a porção norte do açudão. Era o ponto mais farto de piaus, piabas, além de guardar as pedras que transformávamos em fogão pra fritar ou assar peixes, nambus, tatus.
Da estrada, viemos de mãos abanando. Restava a pescaria ou a descoberta de frutas; fome, porém, não teríamos, pois trazíamos na matula farinha, rapadura, alguns pães.
Meia hora de pescaria. O jacá já estava quase cheio, pelo menos uns dez piaus que se debatiam movimentando de um lado pro outro aquele cesto de bambu deixado dentro d’água pra conservar vivo o pescado.
De repente, ouvimos um grito. Quem achou primeiro a bicicleta, logo depois o corpo, foi João Queijo que preferia buscar frutas ao invés de dar banho em minhoca, como ele definia nossas pescarias sempre.
Corremos todos. Lá estava ela nua. Os seios duros com sinais de mordidas selvagens; o sexo machucado, as pernas grossas torneadas longas manchadas de sangue. Os olhos expressando terror, incredulidade. A garganta com corte profundo. Nossa Lavínia morta, estuprada. Raspava os cabelos da parte de baixo em forma de estreito triângulo eqüilátero de cabeça pra baixo, pouca espessura, em olhar de relance acredito não mais que meio centímetro de altura. Apesar de machucada e morta, nunca vi Lavínia tão perdidamente linda. A lembrança de sua xandanga coberta por aqueles tênues fios de cabelo em forma triangular, até hoje decorridos mais de quarenta anos, não me sai da cabeça.
Nem sei bem como reagimos. Decidimos que Queijo e eu iríamos correndo pra Delegacia. Mais de uma hora depois, chegamos com o coração na boca, o terror estampado na cara. Só conseguimos dizer:
— Seo Adriles! Lavínia está morta na beira do açudão.
Ele gritou pelo Cabo colocou-nos na traseira do Jipe e rumou pro local indicado, seguindo a estrada que conhecia de cor, salteado.
Dez minutos depois, já estava examinando o corpo de Lavínia. Ao lado de um pé de caju do mato, encontrou pequena faca de cabo de chifre de boi. Apenas sorriu, pensando alto que o crime estava solucionado.
Mandou-nos pra casa. O Jipe levaria o corpo de Lavínia pro necrotério do Hospital do Vale. Foi a última vez que vimos Lavínia. Faltou-nos coragem para olhá-la dentro do caixão...

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Editora: Carlini & Caniato Editorial

Preço: R$ 18,00

BOM-DIA, SENHOR PRESIDENTE


CAPÍTULO I

Os Jucas

Todo mundo vai estranhar esta narrativa. (Eu de mim ti digo como vão ser doídas essas doidas horas para narrar o que nos foi narrado de um Juca pr'outro. Somem-se também as dificuldades que eu tão deixadamente sozinho penarei pra dizer tudo que presenciei. Foi mesmo uma danada vida de cão. A deles. A minha.) Ela começou com meu tataravô Juca. Termina comigo Juca Tataraneto. As venturas e desventuras ocorridas durante a vida de Donabrina foram passando de pai pra filho. Por isso há algo truncado em grande parte da história.
Juca Tataravô disse repetidas vezes a seu filho como foi a longa travessia dos Campos Gerais até Goiandira. A chegada em Mimoso. Cada um de nós assistiu passivamente às conquistas dos meninos, dissera ele.
Juca Tataravô, o primeiro membro da família, desfrutou de regalias. Teve a afeição de Donabrina, Xixico e Rosendo. Vagava pela casa abanando o rabo. Sentava nos pés de Xixico quando politizava o caçula. Contou ao filho as agruras da separação de Zé Gargolino.
Juca Trisavô participou do crescimento de Rosendo, assistiu à morte de Donabrina quando ele ainda estava preso.
Juca Bisavô jamais perdeu um noticiário das oito da noite. Assistia desconfiado pré-sabendo que Rosendo estava sofrendo injustiças e ataques por parte dos adversários. Sem dar um rosnado sequer viu os apresentadores do Jornal das 20 anunciarem que ele fora derrotado pela primeira vez.
Juca Pai não era muito chegado aos telejornais. Como estava sempre sendo levado pela esposa de Rosendo pra cima pra baixo, acabou por se acostumar. Viu Ataliba Matusalém corromper mundos para eleger e reeleger. Morreu atropelado no dia em que o Jornal das 20 festejou a recondução do itinerante-presidente.
Sou o tataraneto. Acompanho a família desde a segunda derrota. Nasci do cruzamento entre Juca Pai que se enrabichou com uma cadela da vizinha. Foi um romance conturbado por não ser visto com bons olhos pelos filhos menores de Rosendo. Mas não houve barreira capaz de impedir o encontro dos dois. Escondiam-se no quintal de dona Gumercinda fazendo a festa. Uma semana inteira empregada em transas. Quando mamãe apresentou sua prenhez, Rosendo pediu um filhote. Por certo queria um substituto pra Juca Pai, morto de morte recente.
Cresci sem carinhos alardeados. A qualquer sinal de indisposição era levado ao médico veterinário. Para um vira-lata, fui bem tratado. Não trago recordação de ter sido colocado no colo por nenhum dos meninos. Somente dona Alaíde, mulher de Rosendo, dispensava alguns momentos do dia para verificar se não estava com sarna, pulga ou carrapato.
Rosendo de quando em vez estalava os dedos tentando chamar minha atenção não dava muita bola, pois, mal chegava perto, o maldito telefone tocava. Lá ia ele atender a compromissos. Assim achei que era melhor não criar muitos laços.
Herdei histórias de meus antepassados. Gostaria poder narrá-las sem repetição das palavras. Não fui educado para ser contador de causos. Repito como fosse o falecido Caburé-Falador os acontecimentos talequal os recebi.
Desde o início tinha decidido que seria o narrador sem estar dentro da narração. Por vezes a cabeça ficava rodando, talvez pela já avançada idade, não que esteja senil. As atitudes tomadas pela cúpula do poder, nelas incluo meu dono, abalaram minha convicção na liberdade nos homens. Hoje acredito que ela só pode mesmo ser de mentira.
Rosendo andou meio desconfiado que eu pudesse estar eternizando os desmandos dele. Ameaçou mandar-me para o pelotão de fuzilamento. Não estarei já muito velho pra tamanha humilhação? O que presenciei neste palácio ou o contado por meus ancestrais não pode ficar guardado, esquecido numa gaveta qualquer.
A noite cobre com um manto escuro todo imenso jardim causando arrepios. Sei que, ao fechar os olhos, verei Rosendo na sala dos espelhos dizendo: - bom dia, senhor presidente! Aí entrarei novamente no mundo dos meus pesadelos.

CAPÍTULO II

Retirantes

Muitos naquele sertão árido ainda cismavam ouvir últimos estrondos dos canhões, bombas caindo por sobre uma longínqua Alemanha embora vesp'rasse outubro, da guerra só restassem o caos, miséria, fome e destruição. Ali pouco se tomou conhecimento das cruentas batalhas nos gelados campos de além-mar. A vida tinha sentido, tomava rumo no guardar cabras, apanhar macambira, carregar pesadas latas d'água saloba por sobre a cabeça. Os meninos maiores caçavam passarinhos munidos de estilingue, bodoque, alguma arapuca armada escondida, pois que o milho quase sempre roubado fazia falta na alimentação diária. Um desperdício sem retorno no dizer dos mais velhos.
De há muito Zé Gargolino embuchara a mulher. Depois sumira à cata de emprego, vida melhor, deixando pra trás um bando de filhos quase desconhecidos.
Dona Setembrina maismente chamada pelos conhecidos de Donabrina matava as horas alisando a barrigona. Na certeza de outros partos, já sabia se avizinhando o momento de mais um. No escondido dos pensamentos escolhera nome: Rosendo. Tinha por si que seria mais um minino-home. Ainda banhada em naturais alegrias, imensas, havera de dar a ela, aos irmãos. Seus santos milagreiros de rezas sem velas alumiariam o caminho deserdado de bastanças mas refestelado em puras fés.
Apenas o ano outubreceu-se, ela desanda sentir dores, contrações múltiplas. Avizinhava a chegança de mais um na fila da fome. Malemal deu tempo pro Quincas sair correndo aos gritos chamando por Dasdores. Rezadeira, parteira que anunciou aos quatro cantos ventos a hora maior de Donabrina. Maslesperou Quincas sôfrego, cansado, gaguejante falar, desembalou-se em carreira descontida. Sina sua, sorte dela. O vivente nasceria em tresloucada paz.
No espremer das luzes a cria veio ao mundo. Sem cânticos, glórias, roupas, charutos ou qualquer tipo de beberagem. De pronto sugou a bom sugar o peito farto da mãe. Donabrina esparramava felicidade pela cara abatida pela dor, sofrimento. Deixara se envolver pela segunda cabeça do marido quando as crianças dormiam a sono solto. O vistoso resultado mamava sossegadamente. As mãos calosas repartiam carinho acariciando os cabelos pretos da criança.

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Editora: Carlini&Caniato Editorial
Preço: 22,90